Só o assunto do e-mail – Almoço de Família – já que causava indigestão, o que acionava automaticamente o fluxo gástrico, que tanto descia ao último piso da cave estomacal, como subia a pique até ao céu da boca tornado inferno. Que azia que lhe davam os almoços de família. Era, a bem da verdade, a razão por que sempre se congratulara por não ter família. Sem esta, não havia almoços com a mesma. Nem almoços, nem jantares, nem batizados, crismas, funerais, casamentos, lanches e encontros de qualquer natureza.
- Sem% família! Este era o seu lema.
- Sem% chatices
- Sem% mal-entendidos
- Sem% sogras viperinas
- Sem% cunhadas invejosas
- Sem% maçadorias
- Sem% obrigações e deverzinhos
- Sem% favores
- Sem% aquela mãozinha na hora da mudança
- Sem% tios pegajosos
Aceitava que pudesse haver algumas regalias, pequenas benesses, certos privilégios, mas não concebia um que fosse pelo qual valesse a pena deixar de ser completamente livre de laços de sangue. À conta da genética, apanhavam livremente boleia abusos vários, excessos de confiança, confidências a despropósito, abraços sufocantes, intimidades intimidadoras e toda uma seita de disparates invasivos que se libertavam de supetão na corrente sanguínea, por mais distante e insignificante que fosse o elo.
Dos piores inícios de conversa que conhecia, o mais constrangedor era:
– Ah, és a filha de beltrana? Eu sou filho de sicrano. Não te recordas de mim? Andei contigo ao colo. Mudei-te a fralda, bolsaste-me o fato de casamento… Sou teu primo!!!!
– Não, és só parvo.
Isto é sempre o que apetece sempre dizer, mas por qualquer razão que desconhecia, raramente era dito.
“Somos primos em septuagésimo oitavo grau, que maravilha!” Que susto!, diria antes. Que despropositado! Só porque num dia de que já não há memória nos cruzámos no casamento de alguém, cujo nome se desconhece, e que até nos pode apenas ter convidado por causa da tal coisa do sangue – “Tens de os convidar, afinal a mãe é cunhada por afinidade do tio do teu primo Eduardo, que ainda é padrasto dos netos da Augusta” –, quando um dos dois usava fraldas não pode dar a quem quer que seja o direito de a apertar nos braços, medindo o pulso à sua copa de sutiã. Desculpem, mas é apenas idiotice e oportunismo.
Raquel era constantemente acusada de cinismo, mas a verdade era outra. Raquel apenas odiava pessoas. Não suportava os seus pequenos dramas, os seus umbigos dilatados – mais ainda sempre que isso também tinha aplicação literal (UHG!) –, os seus universos cheios de coisinhas que tinham mesmo de partilhar connosco, as manobras diretas ou rebuscadas para se servirem dos outros, as suas crises, a sua halitose, a necessidade de toque físico, de mexericos diversos, as suas maleitas… Não há nada mais tóxico do que o elemento humano. Sempre alguém a querer impor-se, sempre alguém a desejar aproveitar-se, sempre alguém a insinuar-se, a quer usar de poder sobre alguém. Sempre alguém e aí residia todo o problema. Em alguém. Sempre alguém. Ninguém é tão melhor! Como Raquel amava Ninguém.
O pior eram os carismáticos. Pessoas com um certo magnetismo para nos atrair e quase encantar, mas que, no fundo, não passam disso mesmo, de pessoas, logo, nem por isso tão distintas de todas as outras, mesmo das mais maçadoras, entediantes e aborrecidas. Raquel fugia de todos os tipos e tinha mesmo tentado uma vida de eremita, da qual fugiu quando uma família de morcegos-ocupa se instalou na mansão abandonada onde tinha remodelado dois quartos e um wc, mesmo ao lado de um lar de terceira idade, onde, todos sabemos, ninguém vai, exceto os idosos, no dia em que dão entrada, e os funcionários, por obrigação, e os agentes funerários, únicos com verdadeiro interesse na visita. Parece mesmo que nem a Segurança Social os visita, a avaliar pelas notícias.
Por isso, toda ela era azia e maus fígados quando olhou para o e-mail. ‘Almoço de Família’. O suficiente para emigrar para uma favela no Afeganistão. Era um convite, o primeiro do género, desde que andava com Joaquim. Casas separadas, encontros esporádicos, já que ambos viajavam muito. Raquel tendia para a fuga, pelo que encontrara o seu espaço profissional enquanto fotógrafa freelance de revistas estrangeiras, em que dificilmente voltaria a encontrar as pessoas com quem se cruzava. Joaquim era demasiado workaholic para dar problemas. Todavia, já deviam ser considerados um casal há demasiado tempo para que fosse contemplada com tal convite.
– Não vou.
Assim, sem mais, foi a resposta que deu a Joaquim. Ele anuiu. Não estava minimamente preocupado, pois teria seguramente e-mails a que dar atenção e um ou outro problema a que dar despacho, mesmo em dia de almoço de família. Assunto resolvido. No corpo de Raquel realinharam-se os chakras e a sua energia fluía em todos os sentidos oportunos ao bem-estar. Sorriu. Um ato quase exclusivamente reservado a si mesma. Percorreu-a uma breve felicidade, que testemunhava interiormente sempre que conseguia impor ao mundo a sua reclusão.
No dia seguinte. Novo e-mail. O mesmo assunto. O mesmo tenebroso título: ‘Almoço de Família’. A contragosto, e na esperança de que Joaquim se tivesse enganado e a tivesse colocado em CC, talvez na resposta que deu à família, Raquel leu:
“Olá, Raquel,
Espero que se encontre bem.
Sou a mãe do Joaquim.
Não nos conhecemos ainda, para grande pena minha, mas não tardará que isso aconteça, pois terá sempre de acontecer mais tarde ou mais cedo. E pelas minhas contas já se faz tarde, pelo que julgo ser esta uma oportunidade que não devemos deixar passar. O que lhe parece?
O meu filho fala-nos imenso da Raquel há já demasiado tempo, para que não venha a este encontro familiar, um petit comité, não se apoquente. Só os mais íntimos.
Não aceitarei um não como resposta, minha querida.
Venha, pois temos mesmo de nos conhecer.
Fico a aguardá-la.
Já sabe, sábado às 12h30. Cocktail e almoço
Até lá
Clementina”
Clementina e cocktails. Para desanuviar os nervos, já em franja e bem curta, foi apenas isto que Raquel reteve. A mãe chama-se Clementina – até tinha piada, podia sempre atirar-lhe o nome à cara sempre que lhe apetecesse – e podia sempre contar com cocktails. Só esperava que não fosse a pessegada costumeira, apenas com fruta e sombrinhas de papel. Como odiava tudo isso. Bom, haverá sempre vinho, pensou, e nisto sentiu-se aterrada. Já pensava dando como certo que iria. Em que ponto daquele e-mail se terá sentido coagida a acreditar que lá teria de ir?
- Não ter de cozinhar e ainda ter uma refeição caseira, era um bom argumento.
- Haver aperitivos, era outro.
- O facto de Clementina se chamar Clementina aguçou a sua imaginação e estava agora desejosa de perceber se era boa a avaliar pessoas à distância.
- A ideia de ver ao vivo a casa, que agora imaginava pela primeira vez, a atmosfera e os seus seres vivos em movimento no seu aquário social, em ambiente real, surgia-lhe como apelativo.
- No fundo, compreender que não podia andar há já dois anos com um tipo e sempre ter recusado encontros familiares, também pesava nesta decisão inconsciente que a fez render-se sem esbracejar, como era seu adorável hábito de solitária.
Enfim. Iria, mas iria tal e qual como é: execrável para humanos e sem vontade de sociabilizar. Esta última disposição não era sequer uma opção, era simplesmente assim que Raquel sempre fora. Uma antissocial nata. Deu por si, no entanto, a magicar na Clementina. Pelas suas contas, riparia o cabelo, o qual lavaria apenas no cabeleireiro, uma vez por semana e referindo-se ao ato, como ‘lavar a cabeça’, o que era sempre medonho de nojento e fazia logo lembrar problemas de couro cabeludo… Adiante. Tentaria passar por mais nova e gostava que o filho a tratasse por Tina. Dava-se ares, mas só tinha mesmo isso, ares de ‘benzoca’. O quadro estava alinhavado. Estava doida para confirmar tudo isso.
Sem perder mais tempo respondeu:
“Lá estarei.”
Só e apenas isto. Seco e informativo. Era quanto baste, pelo que bastaria. Joaquim estranhou, mas logo aceitou, pois não tinha tempo para dedicar pensamentos ao assunto. Se Raquel tinha mudado de ideias, ou quais as razões para que o tivesse feito não o apoquentava. Se queria ir, que fosse. Assunto resolvido, na mesma. Perguntou-lhe apenas qual das versões deveria assumir como real, para arrumar o assunto e seguir em frente com coisas mais prementes. Raquel quase vacilou, achando que era a oportunidade de ouro para seguir o seu instinto básico, mas a maldita curiosidade continuava a inquietá-la. Iria, sim. Também ela deixaria de voltar a ruminar na indecisão.
Algo de estranho aconteceu nos dias seguintes, para grande desassossego da sua alma. Dava por si a pensar qual a indumentária que levaria ao dito ‘Almoço de Família’, sendo o tema já tão importante quanto a vontade que tinha desde o início de corrigir o assunto do e-mail para ‘Almoço da Família do Joaquim’, pois que ‘de família’ era demasiado abrangente e corria o risco de incluir na família membros que não lhe pertenciam como, em seu entender, era manifestamente o seu caso. Não era um almoço da sua família, pois que esta não existia, mas sim da família de Joaquim, o homem com quem se relacionava intimamente, mas nem por isso com tanta intimidade quanto isso.
Depois de comprar, exclusivamente para o efeito, um vestido-túnica comprido, com pendor hippie-sexy, com um elegante padrão de dois tons, e umas sandálias rasas de um chic descomprometido, experimentar um milhão de outros vestidos que já tinha, ponderar os clássicos jeans com um top e sapatilhas (para não pensarem que tinha pensado muito no assunto, ou que o assunto lhe interessava ao ponto de se preocupar com roupa), acabou na mais séria das toilettes: um fato branco e camisa preta. Impenetrável. Entre o profissional e o esmero fúnebre. Uma barreira de moda a impedir aproximações e gracejos, abraços e beijos, facilitismos e perguntas intrometidas. Tudo muito próximo de um frio passou-bem institucional. Uns loafers completavam a toilette, conferindo-lhe um look andrógino que muito a satisfez. Um impeditivo ainda que acharem que seria a nora parideira que asseguraria a descendência de apelidos hifenizados, com um rancho de crianças vestidas de igual que um dia disputariam os escassos bens de uma herança desbaratada durante gerações de petulantes ociosos. Ensaiou desfiles de mãos nos bolsos, formas masculinas de segurar no cigarro e um penteado weat que colava em evidência o seu rosto anguloso. Pretendia mais escudar-se do que escandalizar, mas podendo conseguir ambos os resultados, tanto melhor. Chegou a pensar num detalhe feérico ao estilo Harry Styles, como uma estola garrida ou uma mala de pelo fluorescente… Optou pela simplicidade minimal. Levaria tudo na não ou nos bolsos. Tal como Joaquim faria. Que pena não ter buço, pensou. Faria o melhor com aquilo que tinha, conformou-se.
Joaquim ficou fascinado com o visual, quando a viu abrir a porta de casa à hora combinada para a ir buscar.
– Temos de levar esse outfit a passear à noite. Estás incrível!
Raquel reagiu desconfortavelmente ao elogio. Teria avaliado mal o statement que emanava da sua escolha? Não tinha sido esse o seu propósito, mas acreditava que aos critérios estéticos da mãe Clementina ocorressem outras avaliações.
Raquel passou para o volante. Joaquim tinha sempre mensagens para ler e enviar, e-mails a que dar resposta e articular informação entre uma infinidade de gabinetes ministeriais. A estopada do costume, que Raquel tanto adorava. Gostava de conduzir, de ouvir a sua música e de não ter conversas alheias a interferirem com os seus pensamentos. Tudo imaculado. Tudo arrumado por secções, em caixas que não se tocavam para mínimo contágio de assuntos e problemas. Todos sabemos que a maior parte dos problemas se resolve, por vezes mesmo por si mesmos, desde que não se encadeiem com outros de natureza, dimensão e escala diferentes. Assim, com Joaquim enfiado em intermináveis feeds de comunicações, meias palavras proferidas em voz alta e total atenção aos seus chatos afazeres, Raquel sentia-se sozinha. Plena. Feliz. Adorava conduzir. Só ela, o mundo e o destino. Mentira! Havia ainda a Priscila, com a sua voz robótica, a mandá-la sair na saída (como se isso fizesse sentido) e a virar em 300 metros. Já? Gostaria de continuar a conduzir, mas Priscila não se calava.
– É já aí à frente, estamos a chegar. A casa da minha mãe é a de pedra.
– Da tua mãe ou dos teus pais?
– É igual. É indiferente.
Raquel sabia bem que não era igual. Não era indiferente. A mãe seria, obviamente, a pessoa mais preponderante e dominadora da família. Ou isso, ou Joaquim era um garoto da mamã. Não a escandalizava. Ou ambas as versões estavam corretas. Somou mais uns blocos à construção que já levava de Clementina, a poderosa. Tinha ainda de avaliar a casa, para se munir de mais preciosa ‘intel’ antes do primeiro confronto.
As portas, de batente duplo, estavam abertas por completo. Uma ausência de barreiras que tornava ainda mais intimidatória a entrada naquela moradia, por onde se percebiam bem os cuidados profissionais de jardinagem. Algum dinheiro ainda haveria, ou muita vontade de o tornar visível, ainda que escasso. Raquel não estava, em absoluto, interessada no dinheiro dos outros. Tinha uma vida mais do que confortável, roçando mesmo o luxo de ser um dos nomes mais cobiçados pela alta hotelaria, onde as suas fotos e artigos na primeira pessoa valorizavam destinos, os quais já se acotovelavam para a receber. Nem sequer se tinha apercebido de que Joaquim poderia ter dinheiro de família, sempre entendeu que, tal como ela, tudo se devia a trabalho próprio, o que poderia ser verdade, ainda assim. Também nunca suspeitou que fosse ‘abetalhado’. Com tudo isto, Raquel tentava apenas determinar com que tipo de armas se teria de munir para driblar e sair por cima daquela situação, a qual, agora, já não lhe parecia tão entusiasmante, como no dia em que sentiu poderosa ao ver-se ao espelho num reflexo que tanto dizia ela como ele. Tal como avaliava os hotéis por onde cirandava, um pouco por todo o mundo, detinha-se nos detalhes. As pedras estavam polidas e brancas, sem vestígio de limos, mesmo estando-se perto do mar. O telhado reluzente, os metais pintados e um esmero de asseio exterior que fazia antever interiores lambidos a lixívia perfumada. Raquel gostava de limpeza e desinfeção, sabendo bem distinguir ambos os procedimentos que ladeavam o seu pódio de higienização onde permanecia, indefetível, a esterilização. Bom prenúncio. Clementina sabia o que fazia. Não se deixaria impressionar por simples higiene básica. Havia todo um vasto escrutínio a ser minuciosamente levado a cabo.
De dentro da casa voavam graciosas até ao jardim umas boas notas de jazz e uma sonora gargalhada. Raquel não teve dúvidas de que aquela voz rouca era de Clementina. Não que a tivesse imaginado com laivos de álcool e cigarros, como agora lhe soava, mas porque só alguém muito à-vontade, só alguém que tudo pode sem parecer rude, riria daquela forma desbragada naquela casa que parecia inabitada de tão asseada. Afinal, era a casa ‘da mãe’. E ‘a mãe’ tudo pode. Ao pensar nisto sentiu-se manipulada. Clementina tinha mesmo conseguido levá-la a aceitar aquele estúpido convite para um abominável almoço de família, que Raquel pretendia, desde o início, recusar. Vacilava. Suspeitava agora de que não tivesse sido movida a curiosidade, mas vítima de uma mente hábil, controladora e isso irritou Raquel. Como não tinha percebido a manobra? Como se deixara manietar, logo por uma ‘sogra’, alguém se deve sempre, mas sempre, desconfiar. Raquel estava possessa. Sentia os vapores da raiva a evaporarem-se por todos os seus poros.
Antes de atingirem a entrada, um elegante e sofisticado pórtico decorado com luxuriante e gigantescas plantas tropicais – Raquel investigou, rasgando uma folha de palmeira, e não eram artificiais –, uma figura exuberante, com uma túnica vaporosa e de padrão garrido, mas absolutamente irrepreensível, segundo qualquer padrão de moda e que o imaginário de Raquel atribuía às que a princesa Margarida de Inglaterra tornou célebres em Mustique. Não foi necessário perder-se em conjeturas e adivinhações, e nem tempo haveria para isso, já que a esvoaçante figura, com um cocktail em riste se apresentou com entusiasmo. Era, obviamente, Clementina. Gira. Jovial. Denunciava uma ‘manutenção’ cara. Entre tratamentos de pele, unhas, algum hialurónico em torno dos lábios, cabelo impecável, personal trainer – que um corpo com a idade do dela não se tonifica por si só –, joias, roupa… Tudo aquilo consumia facilmente um ordenado mínimo por mês. Vivia-se, portanto, muito bem, por aqueles lados. Outro tanto se poderia dizer em relação à manutenção de uma casa como aquela, cm aquele ar de esmero, aprumo e limpeza, e ainda aos serviços extras: jardineiro, motorista, cozinheiro, assistência à piscina…
Já no interior da casa, as obras de arte, as peças de design e o requinte diziam outro tanto sobre essa afortunada conta corrente, até à data, desconhecida de Raquel. Sem ostentações, na medida exata. Pleno de bom gosto. Irrepreensível. Nada contra os ricos, mas tudo a enojava nos betos. Notou ainda que o petit comité não era, afinal, tão petit como isso, mas já sabemos como são as famílias dos betos, que deixam a contraceção nas mãos de Deus, quando é sabido, mesmo para os mais beatos, que Deus não interfere em questões de sexo, nem conseguiria controlar todas as cópulas do mundo. Todavia… O ambiente era descontraído e agradável. Todos a cumprimentaram com genuína simpatia e curiosidade, sem afetações, sem juízos, sem as traumáticas questões sobre família e passado, sem pressões ou olhares de esguelha. Interessavam-se por ela, hoje, o que fazia, do que gostava e tudo, de forma muito natural, era simpático e convidativo. Não estavam ali para a avaliar, apenas para passarem um bom bocado. Todos conversavam, bebiam, riam e a acolhiam de forma empática, sem esforços nem exageros, fazendo-a sentir-se parte natural e legítima de tudo aquilo. Fosse aquilo o que fosse. Sem assuntos ou episódios que a excluíssem por falta de um passado em comum, sem relatos embaraçosos de relatos sobre o passado de Joaquim. Aquilo parecia fazer parte do guião de um filme bem escrito e melhor encenado. Raquel sentia-se bem, segura… Feliz? Uma estranha e inédita sensação de pertença que primeiro agradou, mas logo deixou Raquel desconfortável.
Clementina era fascinante. Atraente, sedutora, inteligente, sentido de humor culto, brilhante e refinado e uma anfitriã encantadora. Sem afetações, nem olhares intimidatórios, com um jeitinho insidioso e cheio de charme fazia Raquel falar, sentir-se à-vontade, sentir-se querida, apenas mais um deles, trocando confidências, rindo com vontade, rivalizando cultura e esgrimindo inteligências, relatando aventuras, viagens e leituras… Raquel sentia-se fascinada!
Ainda antes do prato principal, porém, Raquel sentiu-se fraca, indisposta e por todo o seu corpo formigava um prurido quente que lhe queimava a pele e o ânimo. Começou a sufocar, mas talvez apenas por ver manchas roxas invadirem cada centímetro da sua pele. Veio o INEM e veio a febre, talvez apenas não por esta ordem. Seguiu-se uma estada no hospital. Uma alergia inédita à lã de seda e alpaca que compunha o seu fato. Essa a versão clínica. Raquel sabia bem que não havia fibra que justificasse o seu estado de saúde. Tinha sido envenenada com simpatia e espírito de família. Logo ela, que sofria de alergia a tudo isso. Como era possível ter adorado toda aquela gente? E como toda aquela gente a recebeu como fazendo já parte deles. Apenas mais um deles. Tamanha empatia, cortesia e boa vibração. Raquel nunca imaginou que hevia algures, um ninho a que chamar de seu e, mais importante, que tivesse dado por ele de forma tão natural e orgânica. Era desconcertante. Era inaudito. Era também impossível. Insuportável. Sabia bem o que tinha a fazer. Raquel sabia que jamais sobreviveria à felicidade e ao excesso de amor. Raquel sabe bem que era hora de partir. Seria o fim. Foi o fim.
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