Amélia não tinha os olhos doces, como dizia a canção. Antes tivesse. Também não tinha sapatos de tiras. Os seus eram sapatos de vento, de chuva, sol e lama, conforme os caprichos da estação, e as suas botas eram de cascalho, poeira e frio, dependendo do piso. Mas, também, quem precisa de sapatos quando tem pés de chinelo? Amélia tinha outras coisas, mas não tinha os olhos doces. A doçura vem com a liberdade e a despreocupação, coisas que nunca experimentara verdadeiramente ou, pelo menos, não da forma normal com que todas as restantes pessoas do planeta pareciam experimentá-las.
Sentia-se livre, é certo. De forma absoluta e singular. Aquele tipo de liberdade que lhe dava o direito, a necessidade, mesmo, de partir sem dizer para onde. De se ausentar sem necessidade de permissões ou autorizações e de caminhar sem destino horas sem fim, dias seguidos. Mas logo sentia a mesma necessidade, quase um medo indiscritível, que a mandava de volta. Que lhe sugeria regressar com urgências de demência. Que lhe ordenava o caminho de volta. Por isso tinha momentos em que duvidava da sua liberdade, da sua capacidade de a viver em pleno. Ser livre é não ter urgências de regresso ou horas para voltar. Ser livre dispensa o medo que obriga a arrepiar caminho. Bastaria sentir tanta vontade de regressar como aquela que a tinha levado a partir. Nem mais, nem menos. Uma espécie de braços de uma balança em equilíbrio, que ora oscilassem para um lado ou para o outro, mas por mero capricho ou vontade. Nunca o medo. O pavor de se encontrar sozinha, longe.
Era como se alguém pressionasse, à distância, um botão de pânico, ou manipulasse um qualquer controlo remoto que a fazia retroceder em aflição, como quem aguarda um castigo caso seja descoberta. É certo que em casa, os de casa, lhe ralhavam, lhe recomendavam que não o voltasse a fazer, que não repetisse a ‘gracinha’, mas essas são as particularidades colaterais de quem vive com outras pessoas. É compreensível que se preocupem, que se questionem, que notem a nossa ausência, mesmo aqueles que não a sentem no coração. Amélia entendia tudo isso, apenas não compreendia porque razão partia cheia de alegria no coração e planos em mente quando a mola que espoletava o seu regresso, de forma compulsiva e automática, cedia ao peso do medo. Liberdade seria também medo? Medo de não se conseguir sozinho? Medo de falhar aos seus próprios olhos? Aos dos outros? Mas que importava tudo isso ou qualquer outra coisa a uma pessoa totalmente livre? Livre de preocupações, sem remorsos, sem contas a prestar… Apenas livre.
Por isso, lá no fundo, enquanto levantava propositadamente poeira com os pés, ao caminhar, pensava que, se calhar, talvez não fosse tão livre como se imaginava. Tão livre como quando se via sempre que partia, já que a pessoa que regressava era uma Amélia diferente. Seria essa pessoa a Balecas? Muitas vezes, quando perguntava o caminho de volta, pessoas amáveis diziam-lhe coisas úteis, informação preciosa sobre como regressar, sorrindo, mas tratando-a sempre por Balecas. Tinha uma sósia – parece que todos temos, segundo dizem – e andaria perto. Não apenas isso, como seria muito conhecida por aquelas redondezas, já que o trato denunciava intimidade, por vezes mesmo proximidade física. Balecas era, obviamente, um petit nom, uma alcunha. Carinhosa, pode supor-se, já que tem sonoridade arredondada e uma terminação com sonoridade ‘cache’ como aquelas que dispensamos aos bebés e aos cachorrinhos ou gatos bebés. Pode mesmo prolongar-se esse som até estarmos satisfeito com o efeito. Certa vez, segredaram-lhe ao ouvido se gostaria de voltar à parte detrás do cemitério, onde a tal de Balecas levou o indivíduo sussurrante ao paraíso. A Balecas devia ser uma mulher iluminada, uma santa, para conseguir levar o céu àquele sítio nefasto e deprimente. Claro que Amélia apenas se fazia desentendida, sabia bem que a proposta era sórdida e de cariz sexual. Ela também gostava de sexo, o qual era sempre melhor quando partilhado. Era uma enorme liberdade, aquela que se experimentava através do sexo. Somos apenas corpo e sensações. Físico e etéreo a uma só vez.
Sempre se dá descanso à cabeça o que é uma coisa preciosa. Sempre que possível, Amélia não descurava os seus momentos de soltura, tanto pelo prazer, como pela pausa que fazia no seu cérebro, a qual prezava tanto quanto a um orgasmo. Era até bastante desinibida. Fossem conhecidos ou estranhos. Se eles podem, porque não podem elas solicitar sexo? Porque a olhavam sempre como se fosse o fim do mundo, quando, depois, verdade, verdadinha, acabavam sempre no meio das suas pernas? Já não lhes dava importância. Por isso, não se escandalizou com o sussurro daquele homem. Um motorista de autocarro, em fim de linha e de turno. Dizia que não era a primeira vez. Que ela costumava gostar. E se tentasse? E se tomasse o lugar dessa Balecas? Que mal viria ao mundo? Mas não lhe apetecia. Além de que trazia calças e demoraria uma eternidade, e arrefeceria e… Não. Ele que procurasse a Balecas, porque ela, Amélia, estava de partida. Quem sabe, para nunca mais voltar.
Amélia não tinha os olhos doces, mas tinha os olhos brilhantes. De felicidade, talvez. De lágrimas, seguramente. De alguma medicação, que os pós-modernos e as suas neuroses não passam sem ela, pois com certeza. De tudo um pouco, por certo, mas tinha os olhos brilhantes. Balecas não lhe saía da cabeça. Recordou-se da sua infância e de uma terra, em África, Moçambique, assim lho diziam, pois que disso não tinha memória, em que a palavra tinha significado de coisa. De verbo. Balecar, lembrava-se, queria dizer retirar-se, abandonar alguém, fugir, escapar. Ora, assim, balecas será a segunda pessoa do singular do presente do indicativo do verbo balecar. Tu balecas. Tu escapas. Gostou da ideia. Tanto que passou a ambicionar, a invejar até, ser essa outra mulher. A que abandona. A que foge. A que parte sem necessidade de retorno. A que vai e por lá fica, se assim o entender, que o que fica para trás nem sempre vale a pena ou o esforço do caminho de regresso. Apetecia-lhe balecar.
Percebeu que era já o que fazia. Que caminhava sem destino, fiando nas pernas fortes e seguras e no caminho empedrado, facilitando a partida, ajudando a fuga. Tudo o que poderia deixar para trás era tristeza, mágoa e dor, daí os seus olhos não serem doces. A doçura tinha balecado com o desejo por cumprir de ter filhos. Ou teve-os e tiraram-lhos? Não sabia bem porque sempre que pensava nesse que acreditava ser ou ter sido um sonho seu – o de ser mãe e ter filhos, assim, no plural, porque mais do que um era o seu desejo –, sentia o coração murchar em menos de um segundo. Primeiro, um aperto. O coração mirrava, então, ao ponto de deixar de existir. Sentia a última pétala cair-lhe no estômago. Seguia-se o vómito. O desmaio.
– Balecas!
– Balecas!
Alguém gritava por essa outra mulher. Iria conhecê-la. Veria se se pareciam ou não. Antes, tinha de fazer chichi. Estava numa rua da cidade. Nenhum descampado por perto e num café receava entrar. Olhavam-na sempre com má cara. Quando não se consome, não se pode fazer chichi. Já conhecia essa regra de ouro. Teria dinheiro para um café? Logo decidia que não. Pagar sessenta cêntimos, no mínimo, para fazer chichi, parecia-lhe roubo. Um escândalo. Além disso, não gostava do sabor do café. Trazia-lhe à lembrança qualquer coisa que identificava como uma felicidade passada. Algo que não poderia recuperar. Devia ter sido algum pesadelo. Tinha muitos. Misturavam-se com a realidade. Percebeu que já não tinha vontade de ir à casa de banho. Tanto melhor. Menos um problema para resolver.
– A Balecas fez chichi nas calças. Abriu as pernas e fez chichi nas calças.
Um miúdo gritava enquanto apontava para o passeio onde seguia. A Balecas deveria estar por perto e não devia ser muito civilizada, isto partindo do princípio de que o miúdo falava verdade. Ela bem conhecia a maldade da miudagem e ainda sublinhavam que as crianças são o melhor do mundo. Para os pais, esperava que assim fosse, mas exceto para os pais, crianças são apenas seres incompletos, cheios de manhas, crueldade, fraldas sujas e ranho. Pequenos seres histriónicos, para quem quase tudo é o fim do mundo e que para tudo requerem… Correção, exigem ajuda ou mesmo o trabalho completo. Não se queria deter com estes pensamentos. Queria ver a sua sósia. Parou. Refugiou-se na entrada de um prédio, encostada à porta fechada. Tentaria reconhecer-se em alguma das mulheres que por ali passassem. Nada.
Apenas uma velha de bengala. Um carteiro. Um homem de sobretudo castanho… Que horror! Um sobretudo castanho. Que mau gosto! Onde trabalharia, com quem viveria um homem que usa um sobretudo castanho? E logo naquele tom de castanho que só lhe lembrava diarreia. Não confundir com um elegante camel. Nada disso. O mais certo era ser de terylene. Não resistiu a seguir o indivíduo. Claro que logo mais à frente uma cabeleira postiça – que lhe fazia lembrar aquela daquele cantor muito popular que só saía de casa em dias amenos e sem vento – a fez rumar noutra direção. E mais à frente outra coisa que já não recordava. Amélia sentia-se confusa. Cansada. Entrou num autocarro, de onde a expulsaram por a terem confundido com uma mulher que apalpa jovens rapazes quando saem da escola. O motorista foi simpático. Disse-lhe que tinha de ser, mas ela que esperasse por ele no sítio do costume. Piscou-lhe o olho e tudo. Qual sítio do costume?, perguntou Amélia, sem entender. No Pingo Doce?
Os rapazes desataram a rir e, Amélia jura, foram muito indecentes com o motorista. Chamaram-lhe de tudo. Que se aproveitava dela, que não entendia que isso era desumano. Que se queria ação, que optasse pelo modo manual… Um pouco de tudo o que há de pior e mais ordinário. Sentiu-se incomodada. Saiu. Pela janela, a miudagem gritava:
– Balecas não tires as cuecas.
Olhou frenética em redor. Lá estava ela. Estava a ver a Balecas. Só podia ser ela. Era a sua cara. Penteava-se da mesma maneira e tinha os olhos brilhantes como os seus. Não doces, mas brilhantes. Era bem mais velha do que ela e tinha um péssimo gosto a vestir-se. Também parecia desleixada e não devia grandes favores ao banho diário. Via-se perfeitamente que não seguia os figurinos nem os figurões. Mas era igual a si. Teria sido adotada e poderia aquela mulher ser sua mãe? Caminhou na sua direção. Nisto. Uma porta de vidro abriu-se e deixou de ver a Balecas. Deve ter-se revisto em mim e ficou em choque, pensou Amélia num misto de felicidade e pavor. Ficou ali, à espera que a mulher voltasse a aparecer. Devia estar a espreitá-la, sem que Amélia desse conta. Escrutinou janelas, varandas e esquinas de onde a podiam vigiar sem se aperceber. Nada. Aborreceu-se. Se era, de facto, a sua mãe biológica, deveria ter vergonha de a ter abandonado. Ela que fugisse e nunca mais voltasse. Ela que balecasse pelo mundo. Ela se amanharia como até então.
Não admira que Amélia vivesse entre o desejo de ser mãe e o pânico de que tal acontecesse. Ou já tinha acontecido e roubaram-lhe os filhos? Há tanta maldade no mundo. Por certo tinham-lhe mesmo roubado as crianças. As três, achava recordar. Logo as três. Os seus anjinhos. Anjos, não, corrigiu. Há que ter tento nas palavras. Primeiro o outro com ideias de sexo atrás do cemitério, agora crianças que são anjos… Não gostava de assuntos funestos. A morte está certa. Segura e garantida para cada um. Não vale a pena falar das coisas antes de tempo. E por falar em tempo, Amélia sentia-se cansada e o coração batia a descompasso. Era a urgência do regresso a fazer-se notar. O seu cérebro doía-lhe, como se perfurado por agulhas, ou memórias, nunca as distinguia muito bem. Deveria estar a ter um pesadelo.
Também nunca os distinguia da verdade. Da realidade. Eram uma e a mesma coisa, pois vivia-os da mesma forma intensa e com a máxima entrega. Era tarde. Só podia. Sentiu o de sempre. Uma demente urgência de regressar. De arrepiar caminho. De voltar. De regressar a casa. Não conseguia balecar mais. Caiu de joelhos no passeio com a mão no peito. Segurava um colar de missangas, de onde recebia boas energias. Era um colar mágico. Sempre que o segurava com força e o erguia aos céus, tudo se recompunha. Acordava no hotel onde vivia temporariamente, ou perto dele, e podia voltar a dormir, ou, pelo menos, a deitar-se, a pensar na fuga do dia seguinte. Pedia room service, metia-se na banheira, ligava a televisão. Tudo voltava ao normal e podia sentir uma espécie de paz. De formigueiro no corpo. De quase-bem-estar.
Mais uma vez, o colar funcionou. Não havia magia como aquela. Olhou para ele. Hoje, tinha letras e números e imagens abstratas que lembravam um pequeno telefone e até o seu nome lhe pareceu ler. Nem sempre era assim. Dias havia em que o colar lhe mostrava rostos e paisagens. Noutros, falava consigo e tudo eram vozes de missangas. Mas hoje eram números e palavras. Amélia, seguramente e… Balecas? Não. O que seria!? Estava tão, mas tão cansada que acreditava que os seus olhos estariam doces. Precisava de um espelho, rápido. Mas nisto… Lá estava o jardim do hotel. Do seu hotel. Não era bem um hotel, até porque não ostentava estrelato, mas era da mesma família, era um ‘Hos-tal’, muito em voga por estes dias, e o serviço, apesar de bastante intrometido e invasivo, não era mau. Fugiria amanhã. Balecaria logo pela madrugada. Por agora, estava exausta e amedrontada, sem saber bem porquê. Seguramente, por causa daquela outra mulher. Era urgente descansar. Os seus passos, rápidos e titubeantes, conduziam Amélia ao seu lugar. À entrada, já depois de percorrido o jardim, do lado direito da porta principal, por onde apenas tinha passado uma única vez, inscritas numa placa de latão dourado, as já bastante sumidas letras pretas anunciavam ‘Hos tal Psiquiátrico’. Estava em casa. E hoje era dia de arroz doce. Doce, como gostaria que o seu olhar fosse.
Intenso e emocionante. Cada vez melhor. Obrigado
Obrigada, Carlos, por estar aí desse lado!