Não sabia há quanto tempo eram amigos… O texto não deveria começar assim. O correto seria iniciá-lo dizendo que não sabia há quanto tempo conviviam. Isso. Assim tem mais acuidade além de que permite não incorrer em desnecessárias, ainda que não propositadas, inverdades. E mesmo falar de convívio era já uma liberdade literária, daquelas que a ausência ou desconhecimento de palavras mais acertadas força. Coabitação. Era isso. Era isso mesmo. Vale a pena reiniciar tudo de novo.
Não sabia bem há quanto tempo coabitavam. Pertenciam ambos àquela espécie de indivíduos que os socialmente aptos gostam de catalogar como bichos do mato, pelo que, pode dizer-se sem excessos, começaram por se ignorar mutuamente, não obstante o parco espaço físico que ambos partilhavam e que dificilmente iria além de um aconchegado T0.
Os inúmeros afazeres de ambos, vocacionados para áreas demasiado distintas para que coincidissem em termos de horários ou de interesses, fez com que não dessem um pelo outro, ou, em caso da mínima suspeita ou indício de mal-estar, pensassem sequer no outro enquanto fonte de problema. Simplesmente não existiam na vida um do outro. Ou assim imaginavam, na tola ingenuidade de quem prefere não saber ou, pior, no estúpido desleixo de quem não se preocupa. Não será um desleixo verdadeiramente estúpido, a bem da verdade, seja esta o que for. Para alcançar alguma paz de espírito, não podemos, a todo o instante, apoquentarmo-nos com todo o tipo de suposições e possíveis cenários, vestindo-nos de todo o tipo de previdências, entrando na loucura de assegurar imprevistos. Não se pode viver tentando impedir a cada segundo que a vida aconteça, que o destino se cumpra, que Deus execute os seus planos, ou esboços ou o que quer que seja que o ocupa os Seus (caixa alta pois dizem que Ele é supremo) dias. Viver assim é não viver. Estar à altura básica de viver implica um certo desprendimento, uma razoável dose de despreocupação e a fé de que coisas boas nos aguardam. Sem nos projetarmos minimamente no futuro, a vida não se cumpre. A vida não acontece. Em seu lugar fica uma outra coisa qualquer, mas não será nunca vida. Se achamos que vamos ser atropelados em cada berma, jamais atravessaremos uma estrada que seja. Claro que temos de parar, olhar e escutar, como recorda o código e o bom censo, mas nada mais do que isso. Algo que vá além desses mínimos olímpicos é psicótico, é paranoico e doentio. É não viver.
Daí que esses primeiros tempos tenham sido de total ignorância da presença mútua. Achava, olhando agora em retrospetiva – que é a maneira mais informada de se olhar –, que talvez tivessem chegado a cruzar o olhar uma ou outra vez, o qual desviavam no mesmo instante, num misto de deferência e receio e até de elegância, já que a discrição é, sem reticências, a mais nobre das elegâncias. Não incomodar, a mais elogiosa forma de respeito. Não maçar, não se impor são expoentes máximos de educação e civismo, não obstante o que os extrovertidos e histriónicos observam sobre o tema. Assim, ficamos com olhares fortuitos que a educação reduziu a meros e insignificantes relances que, de tão ténues e breves no tempo, tinha sido possível, não apenas ignorá-los, como esquecê-los por completo. Era por isso impossível determinar quando começaram a viver juntos, a partilhar tão exíguo espaço. Muitos duvidarão. Acharão escandaloso ou mesmo pornográfico ou obsceno que dois seres coabitem sem darem pela presença um do outro. Então e a privacidade?, perguntarão. Pois perguntem. Nem tudo tem resposta. Nem tudo tem resposta certa ou errada. As coisas simplesmente acontecem. Aconteceu consigo, pelo que sabia como tudo se podia passar. Apenas não deram pela presença um do outro.
Tudo mudou naquele dia. Um dia que permaneceria indelével na sua agenda pessoal. Um mero acaso. Um fatídico mero acaso, pode dizer-se. Um dia a partir do qual, por muitos esforços mútuos, nenhum dos dois poderia jamais ignorar a presença do outro. Nomear seja o que for é outorgar-lhe a existência é assumir que a coisa existe. Foi aquela sua amiga médica quem os apresentou, ainda que a contragosto, já que também ela não nutria particular simpatia pelo fulano, mas, por maioria de razões e força das circunstâncias viu-se obrigada às contrariadas introduções. Ainda que não tenha sido totalmente antipática, percebeu a sua reserva e até inquietação na hora das apresentações:
– Maria do Carmo, este é o Cancro. Cancro, esta é a Maria do Carmo. Imagino que já se tivessem cruzado, mas agora é forçoso que se conheçam melhor.
Assinalou esse dia como sendo o da sua morte, marcando-o com uma cruz no calendário. Não com um X mas com um T, o mais semelhante à cruz de Cristo. Era a sua cruz. Já não podia ignorar o seu inquilino. Seria demasiado estúpido da sua parte, considerou. Enquanto os seus olhos não se cruzaram, enquanto não estiveram frente a frente, enquanto não foram ditos nomes, tudo era possível. Tudo foi possível, de resto, mas, a partir do momento em que se fala em alguém e se dá nome a esse alguém, ele materializa-se à nossa frente, passa a estar lá na nossa vida. Cristaliza-se. Ganha corpo e voz. Era o caso. O mais dramático dos casos.
Antipatizou desde logo com o tipo, de caráter displicente e arrogante, percebendo porque tinha preferido evitá-lo durante o despreocupado e indeterminado tempo de coabitação. Alguns médicos falavam-lhe de que teriam sido meses senão mesmo anos. Restar-lhe-iam ainda outros tantos? O que se seguiria? Como expulsá-lo? Averiguaria junto de especialistas qual o código vigente e quais as vantagens que se lhe assistiam enquanto arrendatária, mas já se sabe que expulsar um inquilino, de má índole, então, não é coisa fácil, não obstante as novas leis em vigor e os contínuos avanços científicos na área. Apercebeu-se, no início dos inícios daquela sua nova condição de senhoria de cancro, que tal como pensamos, antes de nos acontecer, que cancro é algo que acontece apenas aos outros, logo que se sabe que se tem cancro pensa-se que também a cura total é coisa que apenas beneficia os outros. Isso, naqueles primeiros instantes, em que mal se consegue digerir a informação e em que ao despertar ainda acordamos sãos, assombrando-nos o tema nos primeiros segundos de vigília, nos quais nos perguntamos ainda, nos quais ignoramos ou duvidamos para, a cada despertar sermos martelados com a dolorosa informação, confirmada por nós próprios e assinada pela nossa memória: “Sim, é verdade. Tens cancro.” No início, todos os dias acordamos para a brutal revelação: “Sim, tenho cancro.” Depois, já nem essa breve benesse diária de alguns segundos a acreditar que terá sido um pesadelo, coisas do desassossego da noite. Depois, passados muito poucos dias, já se acorda canceroso e apenas isso toma conta do nosso pensamento.
Segue-se algo inacreditável: a coragem. Das batalhas dos templários surgem armaduras abençoadas por Cristo, ele próprio, com as quais nos vestimos de uma imperturbável fé. Lemos tudo o que nos vem parar às mãos… Mentira, lemos toda a informação que vorazmente procuramos, de forma ativa, na internet, em chats de doentes e sobreviventes. Colocamo-nos à partida, ora do lado dos derrotados, ora do lado dos que venceram, dos que se ‘curaram’ (“Tem mesmo cura?”, pergunta-nos, em segredo, uma parte do pensamento que nos apressamos a amordaçar). Tratamos de colocar o nosso diagnóstico junto dos casos mais favoráveis, arvorando-nos em arautos das ciências. Enchemo-nos de esperança ao ouvir casos clínicos de curas inimagináveis. Depositamos esperanças na medicina, na oficial e nas alternativas, nos bancos das igrejas e nas idas a Fátima e passamos os dias a acreditar até mesmo em dietas. Uns dias acreditamos mais, outros menos e incomodamo-nos com todos aqueles que nos recordam a importância da prevenção e dos exames de rotina. Como podemos tornar rotineiros os exames? Vivendo nos médicos? Há inúmeros exames que nada dizem sobre ‘n’ possíveis problemas. Além de que é sabido que mesmo quem mantém uma agenda médica rotineira também adoece e que muitas vezes, de tão mínimo, o cancro passa pelas frestas das análises, pelos interstícios das ecografias e até pela inexperiência ou desleixo dos analistas.
Entretinha-se a magicar, melhor, a desculpar-se, dizendo para si mesma que, pelo menos, fossem meses ou anos, tinha-os vivido na paz do Senhor, sem médicos ou hospitais, tratamentos ou operações. Na verdade, sem doença. Essa só irrompeu pelo seu corpo no dia em que a conheceu. O dia precisamente em que foi ao médico. Nem antes nem depois. Apenas nesse instante em que um qualquer resultado inquestionável tinha dado positivo. Lá estão as palavras de permeio. Não se deveria antes dizer que tinha dado negativo, pois não é esse termo mais adequado? Se deu positivo, deveria ser bom, certo? Como nos restantes testes do planeta. Se tens positiva a Matemática quer dizer que fizeste a disciplina, que passaste e não que chumbaste. Até aí começa mal. Porque se celebra a negatividade em medicina? Ela era um caso positivo e isso, sabia-o agora, não era motivo de festejos. Pensava ainda: E se não tivesse ido ao médico? Se não sabemos uma coisa ela não existe, positivo? Ou negativo?
Começou por necessitar dos outros. Do seu ruído e euforia, da sua preocupação e amizade, mas tudo isso não tardou a ser recebido com desprezo e azedume. Não suportava a normalidade dos outros, as suas rotinas de gente saudável. As suas vidinhas rotineiras, apressadas e preenchidas. Acima de tudo, tinha tolerância abaixo de zero em relação à sua despreocupação. Viver sem preocupação era o derradeiro luxo humano, ou de qualquer ser vivo. Era a paz para as nações do mundo e a saúde para os seres ‘respirantes’. Equivaliam-se. E despreocupação era algo que jamais poderia voltar a experimentar. Passou a espiar-se com sensibilidades ensandecidas. Pois se não tinha dado por aquela presença que crescia, se disseminava e alimentava de si mesma durante o tempo que tivesse sido, como poderia estar segura ou quem lhe poderia garantir que não continuava a ser comida viva? Cada nova sarda no rosto, excesso de apetite ou falta dele, cada estado de alma ou pequena alegria – que passou a achar despropósitos calamitosos – eram avaliados como possíveis mensageiros do fulano que nela habitava. O indesejável inquilino. O que estaria ele a fazer naquele instante, dentro da sua própria vida sem que por ele desse conta? Como pode um exame dizer-nos mais do que aquilo que sentimos? No seu caso, umas ligeiras tonturas e pouco mais que tivesse real significado. Parece que tinha. Significado, queria ela dizer. Parece que o fulano era um bom encriptador. Lambuzava-se com a sua carne acalmando a dor que daí pudesse resultar, como um exímio espião infiltrado. Tinha sido invadida pelas forças do inimigo, logo ela que não era dada a inimizades, as quais apenas resultam de potenciais amizades, nas quais não era perita nem prolífica. Mantinha tudo no grau zero do aceitável. Parece que nem isso lhe garantia escapatória.
Claro que todos morremos, contrapunha à conversa de chacha das suas amigas e colegas de trabalho. A questão é que ninguém quer saber quando isso vai acontecer. Faz parte do mistério da vida. Essa ignorância é elemento-chave dos desígnios, do tratado base da humanidade com um qualquer criador ou apenas com a biologia. Cruel era saber que tinha a cabeça a prémio. Pelo seu corpo deambulava macabra a mira de luz vermelha de um sniper profissional que não descansaria até cumprir a sua missão. É certo que podiam retalhá-la, reduzir a zona de alvo, torná-la mais ou menos invisível com doses, elas próprias, assassinas de químicos, mas a minúscula mira vermelha teria sempre um poiso possível. A dor física e emocional que tudo isso causa, somada à loucura obsessiva que se instalara no seu cérebro não justificariam que desistisse? Que pusesse ela própria um fim digno à sua existência? Sem dor, sem dramas, sem tubos hospitalares, sem atos desumanos ou caridosos? Sabem que mais? Isso é aquilo que pensam alguns, mas todos eles estão de fora. Logo que a grossa laçada da forca se aninha no nosso pescoço, pensamos apenas em sobreviver. Em ter mais um dia. Pode ser um dia péssimo, mas é um dia nosso. Não queremos que no-lo tirem. Apenas quando a dor se transforma em agonia essa libertadora sugestão de outro tipo de vida nos assola.
E se tivesse sabido antes? Faria diferença? Não, não teria feito a menor diferença. Isso apenas representaria mais tempo de morte, de sofrimento, de tormento consciente. Seriam apenas mais horas a ter conhecimento de que iria morrer, um desses dias. Essa ideia de que faríamos e aconteceríamos tem muito de mítico. Que vontade temos de viajar pelo mundo, ou alguém connosco, se tivermos de pagar um bilhete extra para esse outro passageiro que nos ocupa tanto espaço cá dentro? Mais encontros com os amigos? Apenas para ter de enfrentar os seus olhares de comiseração, as suas constantes perguntas acerca do seu bem-estar…
Queria mais tempo, mas de qualidade e isso implicava não ter preocupações. Isso implicava ser outra pessoa. Uma pessoa saudável. Isso já não teria. Tentou drogas recreativas, que a fizessem esquecer a doença. Mas a doença ganhava sempre. Encontrava formas de se insinuar, de entrar no delírio, de a atormentar fosse de que forma fosse.
O pior de tudo era não ter saída. A fim de, ainda que ilusoriamente, prolongar as possibilidades de vida, a possibilidade de existir sem dor, a hipótese de uma qualquer forma de normalidade, ou a esperança máxima da cura, restava-lhe apenas o corredor de sentido único que a medicina coloca ao dispor dos pacientes. As quimio, as radio, o bloco operatório, seguidos ou não de mais quimio e radio e, quem sabe, mais operações. Tudo o resto é inexistente. Até poderia arriscar, mas quem consegue ou está disposto a suportar a dor? Qualquer uma, seja ela física, psicológica, emocional, imaginária… A dor é a morte em vida. Assim, quais as hipóteses? Quais as escolhas possíveis? Fazer de conta que está tudo bem é um caminho, claro, assumidamente suicidário, e que não se incomodaria de tomar, mas que, miseravelmente, não é isento de dor. O pior de tudo é que odiava médicos, doenças e até doentes e os hospitais estavam cheios disso tudo. Sentia náuseas sempre que entrava no hospital. O cheiro de doenças e medicação era-lhe insuportável. Médicos antipáticos e arrogantes eram-lhe insuportáveis. Médicos simpáticos e ternurentos também… Enfermeiras indiferentes eram odiosas. Pior de tudo, a dor dos outros era-lhe insuportável. Preferia, de longe pensar e centrar-se na sua dor, porque a dos outros era intolerável, sensibilizava-a de uma forma inexplicável. Antes morrer do que ver morrer. Antes sofrer do que ver sofrer, pensava.
Aquilo que mais a atormentava era a dificuldade em obter prazer. O estuporado do inquilino não lhe permitia retirar prazer da vida. Mesmo quando era bom, era mau, por ser algo com finitude à vista e ainda pela incerteza de não saber se seria essa a última vez que faria esta ou aquela coisa, que veria aquele tom de amarelo nas árvores, que voltaria a ver o princípio de uma estação do ano, ou saborearia o seu gelado favorito – o de alfarroba, para quem se esteja a questionar –, ou se voltaria a apaixonar-se, mesmo que de forma não correspondida… Todos os dias eram o último. Todos os dias eram o primeiro. “Sabem que mais? Não adoeçam”, recomendava em tom imperativo aos que ainda ia suportando por perto.
A doença, esta doença, é engenhosa. Coloca as suas vítimas perante constantes afazeres e na eminência de tomar decisões a todo o instante, como que para desviar a sua atenção do facto vital de que estão na Rua da Morte. Nesta fase, questionava-se sobre a necessidade ou não de usar peruca. Se sim, quereria gastar uma fortuna numa de cabelo natural ou passaria bem com uma sintética? Se não, optaria por usar lenço ou bonés? Ou apenas cabeça rapada numa espécie de cancer pride que de orgulho nada tinha? Percebem a enorme artimanha de tudo isto? Qual o interesse de nos mantermos presos a questões estéticas? Claro que não nos podemos isolar por completo dos restantes humanos, mas… A sua vida era agora um enorme, gigantesco e fluorescente MAS. Estava, como todos os outros que conhecia com a mesma doença, determinada a expulsá-la, a aniquilá-la com quantos químicos e pensamento positivo que conseguisse. Havia dias de uma total cegueira, em que a esperança na vitória era inabalável, e outros em que a morte parecia deitar a cabeça na nossa própria almofada, de frente para nós, como o faria um amante apaixonado.
Não era fácil. Porém, pensava que mais difícil deveria ser a vida de tantos milhares de milhão de outros: sozinhos, abandonados, humilhados, violados, decepados, operados a sangue frio e pensava que, afinal, a vida era apenas isso mesmo: um carrossel e o seu baloiço apenas agora rebentara. Falta de manutenção, talvez, ou excesso de uso. Acreditava, já desde há algum tempo, que o mais certo era mesmo aproveitar, enquanto a sua cadeira ainda se mantinha a girar no ar. Apenas a dor começava a tornar-se insuportável. A dor ia e vinha. Ia e vinha. Era o baque resultante das chicotadas compassadas que a primeira corrente de ferro a soltar-se do carrossel provocava na sua carne, enquanto dançava ao ritmo circular das voltas daquele macabro engenho de diversão.
A sua cadeira ainda no ar. Aquela dor insistente, madrasta, impiedosa, mas a cadeira ainda a rodopiar no vazio. Bebia sofregamente o ar fresco que lhe afagava o rosto e emaranhava o cabelo. O vento que acalmava a dor. De novo uma vergastada no corpo, mas logo a brisa.
Já sabia o que fazer. Cair? Jamais. Não seria apanhada desprevenida, quando alguma outra corrente se soltasse e lançasse a sua cadeira no abismo. Riu às gargalhadas. Fortes e sonoras. Genuínas. Era tão simples: aprenderia a voar.
Deixe um comentário