ELE conta que não demorou mais do que cinco segundos a apaixonar-me perdidamente por ela. Nem tanto. Logo que a viu, mesmo antes de os seus olhos se afundarem nos dela, ele já a amava. Uma certeza insana que lhe vinha do fundo da alma, do centro do pensamento, do núcleo profundo das verdades não comprováveis, como se fosse uma evidência matemática. Como se escutasse uma voz muda que simplesmente anunciava, entre o excitado e alívio: “Aqui está a mulher da tua vida”. Quase um desabafo, na medida em que, consciente ou inconscientemente, acreditando piamente na existência dessa mulher, percebesse finalmente que já a tinha encontrado. Que não teria de aguardar mais. Que a espera tinha chegado ao fim. Bastava, agora, que agisse com cautela e de forma tão apaixonada que ela percebesse o mesmo, que eram um do outro. Não podia assustá-la. Caso para ela a informação não fosse tão óbvia quanto para ele, isso exigiria da sua parte, da parte dele queremos dizer, uma delicadeza, concentração e dedicação tais, que a fizessem entender aquilo que intuitivamente ela não tinha percebido. Ora, colocar-se no lugar do destino, dar-lhe voz, anunciando predestinações pode parecer coisa de louco, se não for feito com tato e subtis delicadezas. Ciente disso, travou o ímã que puxava os seus lábios para os dela. As suas mãos para a cintura dela. O seu peito para o coração dela. Se não tivesse sido suficientemente forte para travar as ondas invisíveis desse magnetismo, teria sido detido e internado antes mesmo de ela o reconhecer. Antes dela aceitar o inevitável: que eram o par um do outro. Que no mundo inteiro, que de todas as pessoas do planeta, era junto dele que ela deveria estar.

By Yale Joel

Ora, como fazer tudo isso sem parecer louco ou depravado? Sem cair no papel de lunático? Ainda nem se conheciam. Apenas se tinham olhado. Convinha, primeiro, talvez, saber o nome dela, ser-lhe apresentado condignamente. Até poderia ser ele a apresentar-se, desde que com alguma arte e desprendimento, para que parecesse natural, normal e até divertido. Acima de tudo, tinha de ter tudo para ser aceitável. Não podia agir com demasiada distância – um comportamento tipicamente feminino, que consiste em fazer de conta que alguém simplesmente não lhes interessa, quando essa pessoa é tão somente aquela que mais lhes interessa –, para que ela não desinvestisse antes mesmo de investir algo. Não podia ser demasiado óbvio, para que ela não o julgasse prematuramente superficial e doido. Apenas um tolo interessado, mas jamais um homem apaixonado. E era como tal, nada mesmo do que isso, um homem real e brutalmente apaixonado, que ele tinha de surgir aos olhos dela. Sem mais isto ou menos aquilo. Apenas isso. Isto requeria um guião singular. Algo nunca antes escrito ou tentado. Uma abordagem única, com uma alma ímpar, uma interpretação sem máculas ou artifícios, para que ela, perante a sinceridade de uma entrega tão extraordinária, não tivesse qualquer dúvida de que ele a amava. De momento, apenas isso interessava àquele homem. Um homem que esbarrara de frente com a mais simples e complexa das questões humanas: o amor. Não era paixão. Não era interesse sexual. Não era o desafio de uma conquista. Não era mera curiosidade. Era tudo isso e mais o resto, era tudo isso somado àquilo que verdadeiramente importa: o elo invisível, o ritmo acelerado do coração, a secura da boca, a respiração descompassada, o calor nas faces, o suor nas mãos, a incapacidade de falar, a prisão muscular, a dor no estômago. Essa inquietante condição física que tanto pode estar na base de um estado febril de origem bacteriana, como no cerne de um sentimento esmagador. Acreditando que não estava doente, ele sabia que só podia estar apaixonado. Não necessitava de antibióticos. Precisava, sim, de um primeiro beijo certeiro na boca dela. Algo que pudesse ser, para ela, tão inquietante e desconcertante quanto a simples imagem dela para si. Bolas! Não ia ser fácil.

ELA lembra-se do preciso instante em que o viu pela primeira vez. Ele estava ainda de costas para ela e ela já sabia. Não tinha ainda visto a cara daquele estranho e já era amor. Não se inquietou por não ver ainda se ele era ou não bonito, porque algo lá dentro já lhe anunciava que era ele. O messias tinha chegado à sua vida. Era o início do seu Novo Testamento. Assim. Sem mais. Num dia de frio e chuva, absolutamente cinzento e desengraçado, bem longe dos idílicos encontros de primavera em que tudo é cor e feromonas. Em que tudo é uma possibilidade de romance. Isto porque, bem distinto de tudo isso, aquilo não era nem uma possibilidade, nem um romance em lista de espera, aquilo era o amor. Não era ‘um’, era ‘o’. O amor. O seu amor. Aquele que a todos está reservado, desde que nele se acredite. Desde que ele se aguarde com resiliência. Com fé. Importava agora que ele reparasse nela, ou apenas que ele a visse. O resto, sabia-o nas entranhas, aconteceria naturalmente, pois é naturalmente que coisas do género acontecem. Olha-se e pronto. Ama-se. O que o amor tem de bom, é que não necessita de verificações, atestados ou prova dos nove. Desde que lá esteja, não há resultados errados. Funciona e é tudo. A única exigência é que exista em ambos os lados e, para tal, os olhos têm de se cruzar. Claro que os cegos também amam, pelo que o cruzamento a que ela se refere não é meramente visual. É aquele que permite que dois universos se encaixem. Naquele caso, porém, o primeiro passo teria de ser que os seus olhares se cruzassem. Há teorias metafísicas segundo as quais, se olharmos com intensidade e vontade concentrada para alguém, esse alguém acabará por se voltar para nós. Mas ela não pretendia virar garfos ou colheres com o olhar, queria até que quando ele a visse pela primeira vez, aceitasse como verdade absoluta que ela ainda nem o tinha visto. Ele teria de ser colocado no lugar do explorador, que alcança pelo seu próprio pé o pico da montanha. Apenas ele. Sozinho e em primeiro lugar. Para que tal acontecesse, ela vigiou os movimentos dele. Calculou os seus gestos. Ela reposicionou-se. Confiou na sua visão periférica e no gorro cor de laranja que usava. Aguardou. Já estava. Ele tinha-se virado. Ele observava o espaço em redor, como luz de farol patrulhando as vagas da noite. Parou o olhar na sua direção.

    

Mesmo sem ver, ela sabia que, agora, ele a olhava. O faroleiro fixava a luz naquela embarcação específica, dando-lhe a conhecer a proximidade da costa. O navio que aportasse, mas com cautelas. Indicar-lhe-ia o caminho. Surdamente, antecipando cada acontecimento, com uma precisão calculada, ela obedeceu ao mestre faroleiro. Seria como ele achava que deveria ser. Olharia com surpresa aquela luz que ela própria acendera quando ele ainda dormia, quando ele ainda ignorava. Representaria admiração, quando os seus olhares se cruzassem. Fingiria aquele primeiro instante que vivera há apenas cinco minutos. A inquietação, o medo e a alegria ainda estavam demasiado presentes no seu peito para que almejasse o Óscar e o Golden Globe a uma só vez. Já tinha os agradecimentos preparados. Sabia que venceria. Há coisas para as quais não procuramos explicações, de tão perfeitas que se nos apresentam. Aquela era uma delas. Era o mítico amor à primeira vista. Ao primeiro relance. Uma coisa do destino. Uma coisa dos diabos. Uma coisa de tiro e queda. Ouviu, vindo do palco, chamarem o seu nome. Tinha ganhado a estatueta. Agarrou no pequeno bilhete onde rascunhara agradecimentos.

Tanto ELE como ELA sabiam, no seu íntimo, que todos os artifícios a que recorreram, que todas as cartadas que dispuseram na mesa eram insignificantes. Apenas pequenas achegas a um metaplano que em muito os transcendia. Aquilo entre eles estava destinado. Eles limitavam-se a obedecer a ordens superiores. Jamais poderiam viciar aquele jogo, por mais trunfos que tirassem da manga, ou da papaia, que para o efeito era igual. Aquele amor tinha de acontecer, desse por onde desse. Eles apenas se limitavam a cumprir o plano. Como autómatos ou marionetas bem amestradas, já que as cordas se dependuravam do desejo de cada um deles.

Ainda assim, ambos interpretaram os seus papéis na perfeição. Como se tudo dependesse apenas deles. De certa forma era verdade. Feitas as apresentações, cada um deles tinha de zelar por aquele amor. À vez e em conjunto, que o destino não pode fazer tudo. Assim, ele cortejou, deu o primeiro passo – achava ele –, denunciou o seu encantamento, revelou os seus afetos. Apresentou-se no seu melhor fato de macho Alpha, protetor, arrebatado. Arrastou-lhe a asa com requintes sedutores. Colocou-a naquele primeiro lugar a que qualquer mulher aspira na vida do homem que ela elege. Acarinhou-a. Afagou-lhe o ego. Prometeu-lhe galáxias de paixão, universos paralelos de infinito amor e compreensão. Demonstrou-o com loucuras e insanidades, gargalhadas e patetices. Houve surpresas e anéis de noivado. Ela mostrou o quanto o amava, ignorando-o no início, como é da praxe, e rejeitando-o sempre que possível. Dizendo-lhe que não se podiam encontrar quando não desejava ela outra coisa, mas é assim que as coisas são. Foi lentamente baixando a guarda, cedendo em alguns momentos e acedendo a algumas coisas, o que a ele lhe transmitia a tola ideia de que era ele quem conquistava, era ele quem derrubava barreiras com a força musculada do seu tonificado amor. Porque ele via mais além do que ela, pelo que, da altivez do seu paternalismo, ele tinha de a conquistar. Fazê-la ver a dimensão daquela inevitabilidade. Tanta ingenuidade. Ela deixou que tudo isso acontecesse, ao ritmo que ela determinava, sem que ele jamais percebesse como ela manietava e controlava. Como era ela quem determinava os tempos e os compassos. Quando ela achou que era hora de darem o passo decisivo, encontrarem uma casa e passarem a conduzir o mesmo barco, tudo manobrou para que ele ganhasse coragem e, julgando que tudo nascia da sua vontade, lhe propusesse uma vida em comum. A dois. Numa mesma casa. Ela mostrou-se reticente, mas feliz em simultâneo, que não se pode assustar a presa, para que esta não corra na direção errada. Tudo muito bem feito. Tudo muito a preceito.

ELA e ELE não concebiam maior felicidade do que aquela. Daquele início de vida a dois, com tanto amor no peito que tiveram de alargar o peito, o que exigiu umas pequenas obras de ampliação, e quando também esse novo peito se revelou exíguo para albergar tanto sentimento,  erigiram um anexo e um avançado e colocaram algum amor em prateleiras e práticas caixas e outros contentores, em espaços exteriores ao peito, mas não fora dele. Tudo ordenado e catalogado a preceito, pois não há outra forma de organização, para que se saiba onde procurar logo que se precise de algo. Atenção, autoestima, carinho… Tudo por ordem alfabética num muito intuitivo arquivo. Amor com amor se paga e eles não contraíam dívidas, pelo que o saldo era sempre exponencialmente positivo e a contabilidade prosperava de forma quase dramática.

Davam e retribuíam amor numa relação imperfeitamente perfeita. Sim, ambos sabiam que o paraíso era uma construção mental de idealistas, que mesmo territórios paradisíacos e paisagens exóticas e exuberantes, ou seja, tudo aquilo que tinha tido a mão inequívoca de Deus, era igual e singularmente imperfeito. Mais ainda o seriam qualquer depósito afetivo de humanos, por muito que se quisessem bem, por muito que se amassem e respeitassem. Tinham apenas de criar o seu adequado nível de imperfeição. Trabalhavam para isso numa base diária. O tempo tratou de dilatar essa periodicidade. De diária passou a semanal, a mensal, a bimensal, trimestral, semestral, anual… Quando se julga que o amor não tem fim, começa-se a acreditar que os cuidados não precisam de ser dispensados tão amiúde nem com tanta acuidade. Não deixa de ser verdade, mas também não deixa de ser mentira. Uma parede sólida, só protege realmente se não tiver fissuras. Uma telha perfeita não admite rachas, sob pena de não cumprir a sua função básica, a de proteger do frio e da chuva. Por outro lado, se a mesma telha for constantemente pisada, a fim de verificar o seu bom estado, pode acabar por ceder ao peso do cauteloso caminhante. Achando que tudo faziam na justa medida das suas necessidades e porque o amor entre ele e ela nunca se extinguiu, não obstante alturas de maior ou menor intensidade, eles lá erigiam a sua felicidade diária. Com maior ou menor perícia, com melhores ou piores resultados.

By Hannes Kilian

Houve sucessos partilhados, agruras divididas, felicidades multiplicadas. Houve filhos e desentendimentos, êxtase e zangas. Houve de tudo um pouco, como em qualquer relação normal, saudável e imperfeitamente perfeita. Houve até momentos de rutura em que ambos entenderam que, talvez, quem sabe, o melhor seria dirigirem os olhares em direções opostas, conhecerem outros amores, desbravarem outras possibilidades. Quase o fizeram. Nunca o fizeram. Voltava a paixão, os cuidados redobrados e a confiança naquele permanente elo de amizade e de crença de que o lugar de cada um deles era junto do outro. Ele junto dela. Ela junto dele. Entendiam-se mesmo no desentendimento. Muito importante: mantinha-se a atração sexual. O desejo e a vontade de juntos avançarem para o futuro. Ingredientes vitais, como bem o sabiam. Nunca outro corpo ou outras vontades se sobrepuseram às que ambos partilhavam.

Claro que a repetição, o mesmo seguido do mesmo limou arestas que se devem manter agrestes e cortantes. A erosão acabou por polir rugosidades necessárias à proliferação de vegetação rastejante, a qual, por sua vez, permite uma maior fixação dos solos, o que resulta na possibilidade de arbustos e árvores de bem maior porte se instalarem, conferindo maior diversidade e dinâmica a qualquer paisagem. Principalmente em paisagens amorosas que, tal como as costeiras, estão sempre tão expostas aos elementos, sempre tão suscetíveis a erosões e corrosões indesejadas. Ecossistemas delicados requerem delicadezas de jardinagem.

Entenderam sempre, que tudo era podado a tempo e horas e que a necessária manutenção estava assegurada. Era bem verdade, isso, mas também não deixava muito espaço à surpresa, à espontaneidade de flores imprevistas, cujas sementes surgissem no bico de uma ave de passagem, numa qualquer paragem das suas longas migrações. Não tinha sido mau que tal tivesse sido permitido e contemplado. Um certo improviso, uma outra cor resultante de loucas misturas e soltas pinceladas.

ELA era feliz. Não tinha dúvidas. Mas também não duvidava de que a sua era uma felicidade morna. Confortável. Doce. Constante. Ao perceber isso, foi como entender que também o amor tem gradações. Diferentes tipos de refinamento. Perceber isso foi dar espaço a uma outra certeza: havia outros tipos de felicidade lá fora. Outras formas de amor igualmente válidas e possíveis. Que o destino também é aquilo que dele fazemos e que qualquer livro permite várias leituras, até quando relido pela mesma pessoa. O tempo é outro. A pessoa traz mais coisas consigo e aporta novos sentidos e significados à leitura. Compreendeu que o amor deve nascer de forma espontânea, não há formas de se semear amor. Não há sementes de amor, nem semeadores de amor. Ele é que decide se nasce, quando e onde nasce. Mas que a partir do momento em que haja amor, que ele também depende da vontade de amar. Também depende da forma de se amar. Aí, sim, admitem-se jardineiros de amor. Há quem saiba cuidar e há quem saiba menos e até quem desconhece as melhores práticas de o fazer. Como em tudo na vida, profissionalização é necessária, já que a mera paixão de amadores pode permitir ervas daninhas, capazes de dizimar todo um relvado. Isto sem esquecer as toupeiras. Agentes invasores que outra coisa não querem do que satisfazer as suas necessidades, sem se importarem de interferir em vidas e amores alheios. Há ainda os adeptos mais naturistas e liberais, e aqueles que não dispensam o uso de químicos tóxicos, crentes de que só esse controlo apertado e asfixiante à base de pesticidas conseguirá evitar pragas. A felicidade, para dizer pouco ou nada, é um gás demasiado volátil para que nos deixemos guiar por manuais outros que não os da nossa própria intuição. Assim achava ela, razão pela qual toda aquela sua divagação metafórica mais não lhe dizia de que havia doença naquele pomar. Mosca da fruta, talvez. A sensação de que as estações mudam, o corpo cede aos caprichos do tempo que se esgota e aquela inquietação amarga de que talvez não se tenha feito tudo aquilo que se podia para ser ainda mais feliz. Ou apenas para conhecer outro tipo de felicidade. Outro amor. Qualquer dúvida é já uma certeza. Mas como e porquê anunciar o fim de uma coisa que era boa? Uma coisa que era tranquila e que tinha sido construída com tanto amor e empenho ao longo já de tanto tempo? Como saber que saindo no próximo apeadeiro ou estação, não se acabaria num destino mais sombrio? Numa cidade menos interessante? Num clima mais inóspito? Com gente menos hospitaleira e amiga? Mas como saber se tudo isso não era mentira se não experimentasse? Tudo isto foi crescendo no peito dela e quanto mais isto crescia no peito dela mais espaço ia ficando para aquele monte de amor extra que tinha arquivado no exterior. O mesmo é dizer, que o amor encolhia, ou, pelo menos modificava-se, condensava-se e não tardou que o arquivo externo fosse ocupado com outras coisas.

ELE não entendeu logo o que se passava. Sabia apenas que se impacientava com mais facilidade e que já não corria como outrora para chegar cedo a casa. Não que desejasse ir para qualquer outro local, ou ir ter com quaisquer outras pessoas, apenas já não estugava o passo. Deixava que as suas passadas encontrassem o seu ritmo natural, sem lhes impor pressas ou ansiedades. Matutou no assunto. Era feliz, sim senhor. Mais ainda conhecendo alguns dramas pessoais de amigos e familiares. Histórias de traições e outras mentiras, que o faziam estar grato todos os dias pela base de confiança e de amizade que tinha com ela construído. Na verdade, só agora o percebia, há muito que ela era ‘o seu melhor amigo’. Só confiava nela. Eram, de facto, os melhores amigos do mundo. Nunca tinha tido outro amigo como ela. Aquilo assustou-o mais do que se tivesse percebido que já não a amava. Amava. Nunca fora outra coisa que não amor. Apenas, era agora um amor diferente. Mais plano. Todo ele planície. Sem elevações. Sem sobressaltos. Sem inquietações. Sem alarmes. Aquilo que os unia estava perto da irmandade, quando esta é saudável, claro está. Apenas diferia dela por entre ambos haver sexo, que é coisa que não ocorre a irmãos com relações saudáveis. Já divagava, um pouco. Mas voltou atrás. Na verdade, o sexo era agora uma espécie de ritual higiénico. Apenas para manter normais os índices mínimos de satisfação física e de exigência mental. Sempre acreditara que não se pode ser verdadeiramente amigo de uma mulher. Que, em ambiente hétero, claro, há sempre uma certa tensão sexual entre ‘amigos’ de sexos opostos. Todavia, ele ali estava, sentado sobre aquela certeza estranha de que era o melhor amigo da mulher e de que esta era o seu melhor amigo, ou amiga, que para o caso pouco importa a questão de género, ou será mesmo tudo aquilo que importa? Amigos? Amigos não são amantes.

Não lhe apetecia especialmente envolver-se com outra mulher, mas começava a perceber que aquele tipo de velocidade cruzeiro era demasiado maçadora. Não seria desejável algum desconforto pelo caminho, mesmo que isso implicasse medos e enjoos? Arrelias? Zangas? Estaria a ser completamente idiota em pretender agitações marítimas? Seria aquele o desfecho natural de um amor maior, como o deles tinha sido? E porque usava tempos verbais pretéritos? Porque falava no passado? Não era ainda um grande amor? Não era a amizade o derradeiro amor? O pináculo do querer bem? O cerne de toda a frustração que ambos sentiam resumia-se a uma questão aguda e quase estapafúrdia: Bastar-se-ia o amor? Só por si, será o amor suficiente para manter unidas duas pessoas? Poderão conseguir ser felizes, vivendo juntas, duas pessoas que ‘apenas’ se amem?

Naquele momento das suas vidas, ELA e ELE perceberam uma coisa inédita: que o amor não é autossuficiente. Compreenderam o rocambolesco e a ironia de tudo aquilo. Com incredulidade aceitaram ambos que o amor com amor também se apaga.

Partilhar