Apetecia-lhe matar alguém. Não era bem uma vontade, era mais uma necessidade. Seria assim que acontecia com os psico e sociopatas? Também não tinha um alvo específico, ainda que, de imediato, esta vontade se associasse à imagem de um ou outro totó, mas mais fortemente se colava à lembrança de uma centena de estúpidos com quem a sua vida se cruzava amiúde. Não seriam rigorosamente cem, talvez uma mão-cheia. Demasiados, ainda assim, para o seu saudável equilíbrio psíquico e bem-estar mental. De entre qualquer um destes grupos, qualquer um dos seus indivíduos serviria. Uns mais do que outros, mas qualquer um satisfaria essa urgência de descarregar violência sobre humanos.

Apetecia-lhe tanto matar alguém. Tanto, mesmo. Por pequeno que fosse esse alguém. Curiosamente, pensava, nunca tinha sido violenta. Odiava confrontos. Evitava-os sempre que possível e mesmo quando não seria desejável fazê-lo, que um assunto encarado olhos nos olhos é, por norma, um assunto resolvido, bem o sabia. Não interessava. Fugia deles sempre que os adivinhava, ou mesmo quando, muitas vezes, já lhe estavam a bater à porta. Fingia que não estava. Que tinha saído. Um ‘Volto Já’ eterno. Estava ausente por tempo indeterminado. Que não regressaria tão cedo de uma longa viagem à volta do mundo. Do seu mundo imaginário. Um lugar lindo e impoluto, onde todos os humanos a compreendiam e respeitavam condignamente e todos viviam numa beata harmonia que encorajava o tédio, e onde todos os animais, mesmo os selvagens, eram cordatos. Chegou a ser apanhada a espreitar por detrás dos ténues voiles, em uma ou outra ocasião, em que fazia de conta que não estava em casa. Era embaraçoso, mas melhor do que avançar para um bate-boca, onde raramente se saía bem. Não tinha a chamada resposta pronta e debaixo da língua guardava mais saliva do que rancor ou vocábulos amestrados, treinados para ocasiões de crise. Seria boazinha? Sentiu-se horrorizada perante tal possibilidade. Podia ser sinal de cobardia, o que não era vergonha alguma. Ninguém gosta de levar um estalo na cara. Mesmo que não doa, a humilhação, privada ou pública, pode deixar cicatrizes para toda a vida. Além de que é um modo inglório e muito primitivo de cair por terra, de se ser derrotado. É muito mais garboso entrar-se numa profícua troca de argumentos, esgrimir verdades e subjetividades, do que acabar tudo com um sopapo. Só a palavra sopapo… Enfim.

By Vivian Maier

Reconhecia em si esse pavor do vexame, da algazarra pública, da ofensa verbal, do eventual soco ou, pior do que isso, do estalo. Uma pessoa pode fingir ferimento grave, desmaio e urgência de auxílio médico após um soco, mas o estalo, aquele que exige resposta imediata é deveras embaraçoso para quem, provavelmente, desataria logo a chorar de humilhação e de raiva, antes mesmo de conseguir reagir com igual reparação de danos. Não há palavrão que exija um estalo, nem palavrão que o repare. Um estalo, exige outro estalo e para isso não se sentia preparada. Daí a ideia do homicídio, neste caso, premeditado de um qualquer rufia, um bully, que sanasse o desejo de vingança por cada estalo sofrido ou virtual. Por cada resposta que ficou por dar, por cada argumento perdido na arritmia cardíaca que o desbaratava no cérebro, impedindo que chegasse ao centro da fala. Talvez o seu centro da fala estivesse pejado de gente subcontratada e não passasse de um débil call center minado de indianos bem-intencionados, mas sobrecarregados de trabalho, ou apenas gente inapta para o ofício. Um núcleo de mão de obra barata e improdutiva, ou adepta de boas práticas civilizacionais que entorpeciam a vivacidade linguística ou impossibilitavam o seu mais arguto uso. Ineficaz, portanto.

Caramba, como lhe apetecia matar alguém. Por pequeno e insignificante que fosse esse alguém. Por fácil ou complexa que fosse a tarefa. Estava com tempo. Podia pensar bem sobre o assunto e dar resposta às clássicas perguntas do jornalismo, aquelas a que qualquer notícia deve dar resposta: quem, o quê, quando, onde, como e porquê. Por etapas. Quem. Podia ser, como bem percebia, qualquer um. Um dos muitos que gostam de espezinhar, de calcar e passar por cima, de tirar a vez no supermercado, de enviesar caminho pelas baias dos aeroportos, de provar a comida do nosso prato sem aviso ou autorização prévios – a autorização que jamais seria dada, o aviso que de nada serviria, pois seria negada a sua execução –, de se apoderar das ideias dos outros, de denegrir a imagem alheia, de humilhar gratuitamente, de não colocar máscara sempre que esta é necessária, que se colam atrás de nós respirando para o nosso pescoço em transportes públicos, o que já faziam antes da nossa ‘coronavida’, ou aqueles que se dedicam a despir as mulheres com olhos, violando-as com obscenidades e vulgaridades, apoderando-se de privacidades… São muitos e pululam por aí. Há até quem os tenha em casa, pobres coitados. Muitas vezes, sem se darem conta, pois que muita dessa gentalha tem tempo e espaço para ter duas caras. Umas vezes, tal acontece para exorcizar na rua tudo aquilo que não podem ou não conseguem ou não lhes é permitido em casa. São os chamados lança-frustrações. Carregados de fogo do inferno, aproveitam o espaço público e todos aqueles que acreditam não lhes conseguir dar resposta para vomitarem ódio, comiseração, complexos de inferioridade e superioridade, baixa-autoestima e outras tantas pragas psicóticas que enchem compêndios de psicologia. A mente é complexa e nem Freud, nem os seus mais célebres discípulos chegariam para alguns casos.

Pois bem, se o fizesse, quem escolheria? Talvez a Pipa. Sim. Quem se apresenta ao mundo como chamando-se Pipa, está mesmo a pedi-las. Temos o Gomes da contabilidade, a Sandra do economato, O Pedro Garcia dos RH e a… Pipa, da secretaria-geral. Qualquer reunião perde seriedade quando a ata é assinada por Pipa. A Pipa é uma velha armada em miúda, que masca pastilha elástica com a boca tão aberta que se lhe vislumbra o duodeno. À recomendação institucional de usar fato, ou algo ‘decentemente’ equiparado, Pipa responde com minissaias do mesmo tecido de blazers dois tamanhos abaixo do necessário e toda ela se esguicha para fora dessas duas peças o dia todo. Esse é o único ponto que lhe admira sinceramente: a coragem e ousadia de ser quem é a qualquer hora do dia, sem se importar com aquilo que os restantes possam pensar, mas calculando exatamente o tipo de pensamentos que provoca neles e nelas, mas fora isso, tudo o resto é insuportável. Sair com ela para o almoço é demorar toda a hora disponível só para que se consiga locomover no aperto da saia até ao destino, normalmente a copa da empresa que não dá mesmo tempo para mais aventuras pedestres. Pipa é aquela pessoa que criou uma personagem que veste todos os dias logo de manhãzinha, e à qual atribuiu um riso histriónico, um ar de pateta, uma vocação para se fazer de parva quando é tudo menos isso, um visual teen-porn, a atirar para o sado-maso-lesbo-homo-trans… Também não se pode deixar a Pipa solta numa sala com homens. Dois em cada sete – a estatística está correta – acabarão por conhecer o seu ‘pink apa’, que é como quem diz o seu apartamento rocha-choque, um reino de Barbie de imitação onde vive, ali para a zona da Expo, ou Sacavém, ou Bobadela, que não sendo rigorosamente a mesma coisa, alinham-se no mapa, pelo menos naquele que tem na cabeça.

Claro que também podia optar por um dos vizinhos, com particular apetite pelo do terceiro frente, sempre de olho espichado no monóculo da porta a cada movimentação na escada ou barulho do elevador. Tomaria notas sobre quem entrava, a que horas e com quem? Gente pidesca tirava-a do sério, sempre a darem fé da vida dos outros. Por falar em fé, e se fosse a beata da ‘Isabelinha’, sua prima, eleita de tios e avós, sempre tão sonsa e benemérita? Aquilo não era humano. Toda ela coração e oração. Com esse homicídio resolveria um milhão de problemas de uma assentada. Também podia ser o Adalberto, com aquela sua boca cu de galinha onde parecem não habitar dentes, o que ainda está por provar já que nunca se ri. Falta de pele no contorno labial, talvez, ou falta de motivos para rir… Pensar nessa possibilidade retirou-lhe vontade de matar o Adalberto. Deixaria a questão do Quem para depois.

Ao ‘o quê’, gostaria de contrapor com assassínio. Coisa séria, para capa de tabloide e não tabloide e abertura de noticiários em horário nobre, possivelmente seguidos de debate com especialistas em perfis psicológicos de gente estranha, detetives da PJ e afins. Um caso nacional que, de tão maquiavélico – ou belo, dependendo da perspetiva – e bem planeado poderia acabar em Hollywood, muito bem posto no guião de um thriller psicológico, ou a ser discutido no coffe break de uma daquelas palestras motivacionais sob o tema ‘O Mundo para Totós’, onde lhe apeteceria matar toda a gente indiscriminadamente: quem lava os cérebros e quem os tem sujos e os leva a lavar naqueles locais por um preço altíssimo. Há bons cabeleireiros de bairro que fazem bem mais e melhor do que isso por verbas escandalosamente menores. Teria de ser algo aparatoso, que envolvesse doses de pânico, número suficiente de populares aterrorizados, utensílios macabros e sangue q.b. Um local público, definitivamente, exceto se ponderasse não ser descoberta a autoria do crime. Tomou uma note pessoal, a fim de ponderar sobre esse tema mais tarde. “Público ou privado?” Divertiu-se com o que escreveu. Parecia a preocupação de um estadista.

Antonio Mora

Ok. Seria um crime, perpetrado barbaramente em local público, a ver, ou rocambolescamente inóspito e deserto, a decidir. O ‘quando’ seria fácil de solucionar. Aguardaria apenas um momento como este que agora a levava a tais considerações, avaliaria na hora quem – o que implicaria oportunidade, ou seja, quem dos odiados estivesse mais à mão, para o efeito, qualquer idiota serviria, se o desespero e a fúria fossem incontroláveis, ou aguardaria para se banquetear com um idiota específico. Um daqueles da sua extensa lista de alvos a abater. Por sorte, não era uma pessoa violenta, ou ainda ponderaria um ato com “várias vítimas a lamentar”. Tudo na medida exata era o seu lema. Nada de exageros. Porém, se optasse por um ato público e mais mediático, não era uma possibilidade a descartar.

O ‘onde’, em função do quando, podia ser em qualquer lugar. Definidos o ‘quem’ e o ‘quando’, logo se chegaria ao ‘onde’. Uma equação bastante simples. Se fosse um ato espontâneo, tudo sairia fora de qualquer plano predefinido. Caso aguentasse a sua urgência, podia, então, seguir um elaborado plano, com horas exatas, detalhes da execução, melhor local e todos os restantes procedimentos. Isso implicaria alguma espionagem, para avaliar movimentações, transeuntes, tráfego no local, horários dos moradores e transeuntes habituais, se os houvesse – dependendo do tal público ou privado, ainda não decidido –, melhor equipamento para sobressair ou passar despercebida. Podia, desde já, e fá-lo-ia logo que chegasse a casa, organizar uma mochila ou pequena bolsa com o necessário. Uma faca de mato, fita adesiva, algemas, spray mostarda, uma pequena pistola e aquela granada que o pai trouxe de África, como ‘recuerdo’, a qual, se Deus, quisesse, ainda estaria no prazo de validade explosiva, que os químicos são agentes resilientes e perniciosos, não se esvaem assim. Toalhitas, para alguma limpeza necessária, e acetona ou diluente para qualquer nódoa inesperada e comprometedora. Uma lata de petróleo não era de desdenhar, que uma boa fogueira limpa mais que alguns desinfetantes, não fosse dar-se o caso de ter de ‘descontaminar’ o local do crime. Sentiu um ligeiro arrepio pela espinal medula que fez caminho até ao cabelo. Só a palavra crime e já estava a sentir prazer, imagine-se o alívio e o empoderamento após o ato consumado. Lixívia. Deveria acrescentar lixívia à sua lista de itens de primeira. Nada como ela para eliminar vestígios de sangue. E luvas, claro. Ver muitos filmes compensa.

Com isto já quase tinha, mais ou menos, respondido ao ‘como’. Facada, tiro, explosão ou fogo posto e bem ateado sobre a pessoa a eliminar. Já utilizava vocabulário profissional. Por falar em profissional, talvez um abanico de palha desse jeito para alimentar o fogareiro humano. Era leve e podia dobrar-se sem estragos, pelo que era um bom item a acrescentar à sua lista de acessórios letais. Corda ou garrote para a hipótese de estrangulamento, uma pequena serra, em caso de necessidade de desmembramento, ou apenas uma dose generosa de medicação e sobre isso sabia bem o que podia utilizar. Se envenenasse um estranho, sobre quem descarregaria o ódio que alimentava por rostos específicos, quem poderia chegar a ela? Por que razão? Qual seria o móbil? Mas resolveria o propósito real de vingança e eliminação de gente supérflua? Tomava notas sobre tudo isto. Era melhor dispor de vários meios, pelo que um kit farmacêutico se impunha com dignidade àquela lista de equipamento necessário. Seria o seu kit básico. Sabia, até, que bolsa utilizar para o seu armazenamento e transporte. Era uma espécie de necessaire de pele, muito feminina e de ótima qualidade. Talvez por tudo isso chamasse demasiado a atenção. Mais valia um saco qualquer. Levanta menos suspeitas e quanto mais decadente menos curiosidade suscitará. Ainda bem que premeditava sobre o assunto. Planear o trabalho e trabalhar no plano é uma boa prática a seguir. Poupa-se imenso quando se tem tudo organizado mental e logisticamente. Se bem que podia ser já hoje, aqui e agora…

Levantou-se. Espreguiçou-se ligeiramente. A caneta escorregou-lhe da mão. Com o outro braço, onde agarrava o bloco de notas, engendrou um complexo gesto de malabarista, mas percebeu que as laranjas acabariam no chão. Essa tomada de consciência catapultou um esforço extra e ainda mais gesticulações no ar para que se salvassem alguns malabares. Foi demasiado. Tropeçou. Ao tentar equilibrar-se, agarrou inadvertidamente o tubo do soro, soro de vida, única seiva a manter vivo, ou pelo menos hidratado e alimentado, o paciente da cama 47, do quarto nove, da enfermaria cinco. Único naquele quarto, um exclusivo dos muito ricos, como era o caso. Um magnata. Uma já longa existência com excesso de álcool na vida, mas não tão longa, nem assim com tantos excessos, que não merecessem a pena todos os esforços da medicina para que fosse ainda mais esticada a linha da vida na palma daquelas mãos multimilionárias. Enquanto o dinheiro corresse, também aquele soro e todos aqueles equipamentos de fôlego artificial. Temia olhar para a outra extremidade do tudo, aquela que, dando seguimento ao pedaço de borracha que ainda tinha na mão, deveria estar presa ao braço do paciente da cama 47, quarto nove da enfermaria cinco. Não precisou de verificar. O equipamento eletrónico, começou a apitar todos os sons de que dispunha. Levantou-se de um salto, percebeu que o cateter tinha descarrilado, que estaria caído debaixo da cama, demasiado baixa naquela clínica para ricos, a fim de se parecer mais com um quarto do que com um hospital. Ajoelhou-se, foi palpando o chão, em busca da ponta do tubo que alimentava a vida naquele corpo de rico. Toda ela tremia. Sentiu algo entre os dedos. Puxou com força… Não o devia ter feito. Acabava de desligar algo da tomada. Julgou que tal não era possível, que tudo dependia de uma corrente central, impossível de ser manuseada nos quatros, a fim de evitar maléficas manietações… Agora, já não se ouviam apitos.

– Enfermeira Célia, saia da frente. Afaste-se. Rápido.

by Lillian Bassman

Em tribunal, Célia explicou porque andava sempre com uma faca de mato na mala (“uma mulher sozinha, em final de turno, não se sente segura a andar à noite na cidade”), e porque guardava em casa uma granada que o pai trouxera da guerra de África e que utilizava como pisa-papéis. “É uma memória de um passado muito doloroso para a minha família”, justificou-se. Em tribunal, Célia esforçou-se para provar que não desejava matar quem quer que fosse, menos ainda um dos seus pacientes e que no bloco de notas esboçava simplesmente aquele que esperava vir a ser o seu primeiro romance, talvez mesmo já algumas das suas páginas, centradas na figura de uma mulher perturbada e onde psicoses e absurdo definiam todo o ambiente, psicológico e físico. A acusação brincava, falava de um macabro diário, e solicitava que se oferecesse à enfermeira Célia todo o tempo do mundo para poder terminar a sua ‘obra’, sem a possibilidade de matar mais pacientes ‘acidentalmente’. Célia continuava a falar – tentando dar credibilidade à sua verdade – sobre um thriller policial, com personagens bizarras, em ambientes estranhos, sombrios e distópicos, algo com aspirações a David Lynch, entre o futurismo decadente de Ridley Scott e o tenebroso surrealismo negro de David Cronenberg. O juiz não tinha visto EXistenZ, nem era fã de ficção.

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