Deveria ter percebido, logo que o primeiro beijo caiu. Dei por isso, ainda ele não tinha tocado no chão. Fiquei meio desnorteado. Sem perceber bem porque se tinha ele desequilibrado dos nossos lábios. Como foi que não se conseguiu agarrar ao meu queixo, que fosse?! Como foi que a minha mão não o alcançou a tempo?! Facilmente o recolocaria onde de nunca deveria ter escorregado. O pobre. Tu olhavas-me, com naturalidade, ou assim me pareceu. Fiquei embaraçado, sem saber o que fazer. Não queria que tu visses um dos nossos beijos por ali, caído, no meio do chão, sem amparo, sem boca onde dormir. Ao relento. Senti até vergonha, por tamanho desastre. “Que horror!”, dirias, “Como foi isto acontecer?”. Culpar-me-ias, seguramente, mas sem necessidade. Já me sentia culpado. Julgo que foi a culpa que me fez agir sem pensar e sem demoras. Fiz o que sempre se faz numa situação de total embaraço, em que tentamos ocultar o óbvio de alguém que também lá está a presenciar, a julgar, a avaliar. Tentei escondê-lo com o pé. Tirá-lo do teu campo de visão e, enquanto pestanejavas pela primeira vez após o desastre, atirei-o com perícia para debaixo do tapete. Um clássico, eu sei. Nada original, também concordo. Mas um clássico é isso mesmo. Um clássico. Não passa de moda. Serve em qualquer ocasião, lugar ou hora. Serviu-me, a mim, ali, naquele instante de desespero. Mais tarde o resgataria e trataria de o cuidar. Tratar arranhões, esfoladelas. Teríamos Betadine em casa? Álcool serviria. Na falta de tudo isso, beijá-lo-ia, que um beijo cura tudo, mesmo outro beijo.
O gesto fez com que me sentisse culpado. Por que outra razão teria reagido e feito tudo isto na clandestinidade se não fosse culpado? Sabendo que o beijo não tinha caído da minha boca, onde não chegou, porque me retrataria como causador daquele apocaLIPS? Senti vergonha alheia? Quis privar-te do embaraço da tua falha? Seria falha? Não terias também tu dado por isso? Não teria sido propositado? Um sinal, à laia de aviso? De que os hunos estavam a caminho? Avaliar tudo isto agora é do mais simples, mas naquele momento foi estranho e inquietante e eu não sabia bem ainda o que pensar. Poupei-te ao embaraço. Ou poupei-me à previsível dor?
Saíste. Não te despediste. Despediste? Não ouvi. Ouvi apenas a porta da rua. Os teus passos na escada. O silvo do elevador. A sua aterragem no nosso piso. A porta. O início da descida. Achei ainda que ouvi a porta da rua. Corri à janela. É sempre bom ver-te, mesmo de longe. De costas. Inebriada já com tudo aquilo que te espera. Ideias postas no trabalho, antes disso, no acesso ao trabalho. O trânsito. O telefone. A tua vida privada de mim. Não te vi. Abri a janela. Percorri a varanda. Julgo que te vislumbrei. Gorro laranja. Sim. Eras tu. O ruído do aspirador. A empregada que chegava à sala. Nisto corei. Tinha de aguardar. Não podia ir a correr resgatar o nosso beijo. O primeiro a cair em tantos anos. Não podia expor tamanha privacidade. Demasiado íntimo para ser confessado ou denunciado. Quando voltei a entrar na sala, já ela andava noutra parte da casa, atrelada ao seu pónei de metal. Corri. Ergui a ponta do tapete. Olhei. Nada. Palpei. Nada. Levantei bem mais do que a ponta, que um beijo caído também sente vergonha. Corre a esconder-se de olhares alheios, para poder corar à-vontade no isolamento da sua vergonha. Nada. Nada de nada. Os meus dedos tremiam já, repetindo os mesmos gestos de segundos antes, como se a repetição operasse passes mágicos e o que lá não estava acabasse por surgir. Vindo do nada. Vindo da manga do mago. Apenas aparecendo.
A empregada de regresso. Olha-me com desagrado e ofensa.
– Escusa de verificar. Eu também limpo debaixo dos tapetes.
O olhar dela disse o resto. Sabia. Mesmo que não o tivesse visto, mesmo ainda que não tivesse desconfiado, pois que nada indiciava a queda de um beijo, ela tinha percebido. Claro que sim! Um beijo seria notado. Bateria com estrondo no tubo de sucção e gritaria desalmado uma vez chegado ao estômago do bicho, quando se visse preso no saco de pó e despojos. Apenas lixo. Como recuperar um beijo ferido do saco de um aspirador? Como repor a sua autoestima e vigor? Como reabilitá-lo e fazê-lo compreender que foi sem querer? Que não se voltaria a repetir. Que era um tremendo e grosseiro engano. Que seria reparado até ao fim dos meus dias.
Parece que apenas eu não sabia. Apenas eu fiz por não perceber. Por me enganar. O beijo sabia, que apenas a vontade de um não basta. Que a queda não tinha sido inocente. Que tinha sido assassinado antes de ter hipótese de alcançar os lábios dele. Que ela o atirara de fugida, falhando o alvo e a dose mínima de amor que qualquer beijo requer. Não, que qualquer beijo exige. Sem ímpeto, sem velocidade, sem força, ao beijo restou-lhe apenas estatelar-se no chão. Agradecer a piedade do pé que o empurrou, depois, para debaixo do tapete, onde teve tempo para se lamentar. Lamber as feridas e o orgulho mortalmente brutalizado. Abandonado, nem resistiu ao vácuo do aspirador, acolhendo-o com a dignidade de um condenado perante o pelotão de fuzilamento. Um beijo sozinho… Atirado ao calhas. Mais valia morto.
Não percebi que tinha sido um tiro certeiro num submarino. Que muitos outros se seguiriam. Que a bolsa do aspirador acabaria a abarrotar de beijos defeituosos, sem capacidade de voo e enlevo. Que o porta-aviões estava a apenas uns dias de afundar e que o olhar cínico da empregada ganharia tonalidades de compaixão. Muitos outros se seguiram. Beijos ao chão e olhares de misericórdia. Tantos que já não havia frota sobrevivente. Apenas perdi o primeiro, aspirado sem dó nem piedade. Deverei confessar que ainda o vasculhei no lixo, no dia em que a empregada esvaziou as entranhas do aspirador? Talvez não. Há tantas e tantas coisas que é preferível ficarem por dizer. Frases que nem devemos formular. Ideias que vivem melhor recalcadas na dor, onde alcançam um qualquer tido de existência própria.
Só perdi o primeiro. Sufocado no pó. Afogado nas minhas lágrimas de desespero, aquele que nasce do medo e dos anseios de quem procura sem encontrar. Os outros, todos os outros que se seguiram e que cumpriram o mesmo destino, caírem ao chão, guardei-os com a perícia própria de quem já aguarda. Tenho-os num frasco de compota. De alperce, acho eu. Eles não desgostam. Sempre é uma casa. Aromatizada, ainda por cima. Com amplas janelas, de vão inteiro, de onde nos observamos, entre a lástima e o conforto de nos termos uns aos outros nas mesmas circunstâncias. Eu sem beijos no sítio certo, eles sem lábios no lugar esperado. Companheiros de infortúnio. Um pouco mais tristes do que vivos. Um pouco mais de volatilidade e menos de matéria. Menos de tudo e em tudo, na verdade. Viciei-me neles. Nos beijos caídos ao chão. Nos ósculos desperdiçados, engaiolados no meu frasco de perdidos e achados. Em momentos que não consigo descrever, de tão inéditos e intensos, antes de perder aquela última força que permite ainda respirar, inspirei beijos caídos ao chão enfrascados no meu cofre de solidão. Snifava-os com sofreguidão, na ilusão de que sentia a outra boca na minha.
As drogas são assim. Iludem. Fazem-nos acreditar em coisas que elas jamais nos poderão dar. São banha e são cobra, disfarçadas de unguento e vendidas como salvação em feiras e becos escuros. Permitem-nos o engano de sentir o que não se sente. Com medo de os ferir ou esgotar, passei a consumi-los com parcimónia, mas mais vezes ao dia. Ia dar ao mesmo. Tentei gerir o consumo, mas a adição não permite bons cálculos, apenas voracidade e urgência. Mais. Mais uma vez. Mais quantidade. Mais e mais. Pensei o que seria de mim no dia em que já não fizessem efeito. Em que necessitasse de os injetar nas dobras do corpo. Diretamente no sangue. Diretamente na saudade. Bem fundo na tristeza. A que saberiam, então? Diluídos assim, no profundo vermelho. Qual o efeito?
Coloquei-me depois, no lugar do outro. Dos beijos perdidos, caídos ao chão. Dei-me conta da sua forçada subserviência. De como concediam os seus préstimos num fim de vida que beijo algum merece. Sujeitos ainda aos meus caprichos de enjeitado. Às necessidades do adicto. Um exercício útil, mas sempre difícil, o de tomar as vezes do outro, tentando pensar e sentir as suas vicissitudes e emoções. Lamentei-os, aos meus beijos perdidos enfrascados para ali. A ganharem cheiro a compota de alperce que parece não largar as paredes de vidro. Lamentei-me, a mim, preso num outro frasco com cheiro de compota de memória. Tive pena de nós. Percebi a prisão deles ao perceber a minha. Que o frasco mais não era do que gaiola e eles aves a quem depenava dia após dia. Tinha de os soltar enquanto as penas ainda permitiam o voo. Enquanto no peito ecoavam ainda ecos do seu piar. Enquanto eles ainda fossem capazes de beijar outras bocas, noutros lugares. Um dia, abri-lhes a gaiola e informei-os da suprema decisão: eram livres. Totalmente e sem condicionalismos. Ficaram parados no mesmo lugar. Uma espécie de cerimonial de despedida. Um silencioso agradecimento. O mais certo é que estivessem a sentir pena de mim. A pensar no que seria agora da minha vida, sem o alento do sonho. Era a morte da esperança? Sosseguei-os. Abriria o meu frasco também. Podíamos até partir juntos, andar um pouco lado a lado e, depois, lá mais para a frente no caminho, poderíamos, então, decidir que rumo mais nos convinha. Se juntos ou apartados. Se presos ainda ou voando já. Sem destino. Sem pesos ou grilhões.
Um dia pareceu-me ver-te. Sim. Eras tu. Estavas de regresso. “Voltei”, disseste, com a naturalidade de quem voltava a casa no final de mais um dia de trabalho. Como se fosse mais uma volta na meada de que se tecia o nosso quotidiano. Tentei ser cortês. Gentil, até. Afinal, guardei durante tanto tempo os nossos beijos caídos, estimando-os como diamantes, que não podia apenas e simplesmente fazer de conta que não te conhecia, ou que te odiava. Expliquei-te a história do aprisionamento dos beijos nossos, todos aqueles que caíram ao chão. Sim. Eram muitos, mais meus do que teus, na verdade. Contei-te da minha dependência e da minha desintoxicação. De como me convenci de que os nossos beijos caídos ao chão eram ainda parte de ti. De que junto deles te tinha comigo. Expliquei-te como tudo não passava de fraude. Quem deita beijos ao chão deixa de ser dono, segundo a lei do coração, num qualquer decreto cujo número, sem alíneas, agora não me ocorre. Falei-te depois de como reabilitei os beijos. De como o amor tudo cura e de como de nossos eles passaram a meus. Nessa altura, quando percebi que éramos apenas uns dos outros, eu e os meus beijos jogados ao chão, e depois num frasco de compota de alperce, se não me engano, estava já próximo o dia em que abri o frasco e todos voámos do chão, onde nos encontrávamos, a aguardar que um aspirador nos descobrisse por debaixo da dobra do tapete da nossa vida. Agora tínhamos asas e permanecíamos na vida uns dos outros. Ganhámos autonomia e percebemos que sempre a deveríamos ter tido.
“Gostei de te ver e perceber de perto o que já sabia de longe. Ainda bem que vieste, mas não lhe chames voltar. Regressar é chegar ao local onde se é esperado e eu nada aguardo, senão felicidade e liberdade. Voltar implicaria que ficavas e eu já não moro aqui. Sabes, agora, tenho asas. Vivo por aí. Se precisares de um bom cofre, podes ficar com o meu frasco de compota de alperce. Queres?”
* Este é o conto com o qual respondi ao desafio Ordem Inversa, a convite da ilustradora Andrea Ebert, no qual o ponto de partida para um pequeno livro eram as suas ilustrações, à volta das quais o texto nasceria e no qual se inspiraria.
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