Não me recordo exatamente. Não consigo precisar se percebi primeiro quem ele era, ou antes quem me parecia que pudesse ser, e, por causa dessa coincidência, passei a prestar atenção àquela família recém-chegada à praia, ou se o meu obsessivo voyeurismo foi espoletado muito antes de tudo isso, com a frase: “Deixa-te de merdas, que ainda agora chegámos, ouviste?”, proferida, em voz alta e descompensada, por um pai e dirigida a uma das três crianças que o acompanhavam. A mais velha não devia ter ainda oito anos, a mais nova era um bebé de colo, e o mimo tinha como destinatária a miúda do meio, a quem atribuí, sem pestanejar, idade insuficiente para tamanha grosseria, insensibilidade e insensatez, numa linguagem e num tom desadequados a qualquer que fosse a situação, em qualquer idade. Há uma menoridade para palavrões, isto para quem lhes atribui, algum dia, maioridade, mas, compreendo, palavras são apenas isso e, longe de puritanismos descabidos, cada um utiliza-as como bem entende. Tentava não julgar, mas era impossível. Aquele era, de forma aberrante, um caso de menoridade, tanto no que se refere ao tom e ao modo, como à linguagem empregue.

O meu coração acelerou no peito, o que é curioso já que o sangue parecia gelar-me nas veias, não obstante os 50 e muitos graus que estariam naquele meio-dia de agosto. Ergui-me na toalha, ganhando tempo e coragem para perceber se haveria de interferir. De intervir a favor da criança. Se deveria. Imaginando já os argumentos e palavreado que se seguiriam do outro lado, tendo em conta a forma como um adulto tratava os filhos, perante o olhar aprovador da mãe… Não me deram tempo. Uma pá de plástico vermelha, carregada com areia suficiente para as fundações de um completamente novo estado de espírito e ainda um anexo de jardim, atingiram a minha indignação antes que me fosse possível reagir. “Estás a olhar para onde, vaca?” Precisei de tempo para processar o sucedido e encaixar a frase. Melhor, para aceitar que a mesma tinha sido dita pela vítima do ralhete paterno, um micro-ser que não teria mais do que cinco anos, que, tentando não dar importância às palavras do pai, mas sentindo-se um pouco acabrunhada com a situação, ou apenas irritada – será mais acertada esta segunda conjetura, a avaliar por tudo o que seguiu –, decidiu virar as atenções para outro lugar. Reconhecia aquela forma de lidar com a frustração e a humilhação, que consiste em espelhar esses sentimentos numa terceira pessoa. Eu era a infeliz contemplada. Independentemente do que poderá ter-me acometido primeiro, a sensação de falso reconhecimento ou o tom histriónico de toda aquela gente, o certo é que seria necessário estar morto naquela praia, para não prestar atenção àquele grupo sui generis. Eu daria sempre por eles. Por eles e por aquela pá que quase me partiu a cana do nariz.

– Não se importa de devolver a pá? É sempre o mesmo, quando chegamos ao fim do dia ninguém sabe dos brinquedos. Raio dos miúdos!

Era a mãe. Não era um pedido de desculpas, era uma preocupação patrimonial. Venha a mim o que é meu. Não era sequer um pedido, antes uma exigência e proferida num tom que me incriminava por ter o brinquedo na minha posse, ou algo do género. Olhei em redor, enquanto tentava tirar areia e lágrimas dos olhos, do nariz e da boca, o que só conseguiria, com insatisfatório sucesso, com litros de água. Pensando bem, ainda hoje sinto os minúsculos grãos vítreos na boca, o que justifica o receio que mantenho de partir um dente ao trincar um desses pequenos diabretes. Mais uma vez, faltou-me o tempo de responder, de agir em conformidade ou apenas de procurar a porcaria da pá. Faltou-me mesmo a resposta, se é que havia uma a dar. Voltei a sentar-me. A miúda mais velha, com um sorriso trocista já estava em cima de mim a reaver a pá, deixando a minha toalha… inabitável e mais uma dose de areia na boca lançada pela correria e pela ostensiva má educação.

Aguardei apenas que o Vasco regressasse do mar para discretamente nos afastarmos daquela família de todos os horrores. Agradeci aos santinhos não estarmos presos numa área concessionada e podermos sair dali naquele instante. Por essa altura, acreditava que não podia ser a mesma pessoa que julguei reconhecer inicialmente, que estaria a confundir aquele energúmeno. Não era, seguramente, o homem que julguei conhecer. Impossível. E ainda bem, pois ainda que fosse, jamais denunciaria que o (re)conhecia. Só o receio do vexame… Ainda assim, fosse pela dúvida, fosse pela bizarra atração por aquela família disfuncional, onde as crianças não paravam de fazer gordos disparates entre si e incomodando quem estava por perto, e de receber ralhetes ordinários, gritos e palavrões, afastámo-nos apenas o suficiente para não sermos vítimas de bullying por parte daquelas miúdas infernais, mas não demasiado, para conseguirmos observar.

Incluo o Vasco neste plural abusivamente, já que ele não estava minimamente interessado, nem na agressividade das crianças, nem na linguagem dos pais, nem em ver de perto os retorcidos mecanismos de uma família abusiva, abusadora e completamente a Leste de como amar, respeitar e sociabilizar crianças. Esse era o meu departamento, o meu guilty pleasure. Observar. Colocar pessoas em lamelas. Entreter-me depois a observá-las sob as lentes micro e macroscópicas. Tentar ouvir o que dizem… Um bom livro sobrepor-se-ia a este tipo de espetáculo, mas também não era o caso. Andava às voltas com uma obra que me fazia sempre recuar uma série de páginas antes de retomar a leitura. O que significava que o livro não me tinha agarrado, ou eu não lhe tinha dado oportunidade suficiente. Entre ter de reler mais umas quantas páginas até tornar a situar-me no enredo e voltar a atribuir nome às personagens, percebi que o melhor entretenimento estava ali, mesmo à minha frente, e iria desfrutá-lo enquanto não me fartasse ou vomitasse de repulsa.

Depois de minimamente instalados, com os seus trezentos pequenos volumes, mochilinhas, bolsinhas, quatro chapéus de sol pequenos, baldinhos, regadores, cadeiras… Era extraordinário como nem conseguiam desenvencilhar-se minimamente com a logística de um dia de praia. Porque não optar por sacos volumosos onde se colocam coisas por atacado? Toalhas num cesto, um chapéu ou dois mas de tamanho grande, transportados em bolsas ou com alças para permitir que se carreguem às costas, o que libertaria as mãos para outros volumes, um trolley… Três crianças não necessitam de levar brinquedos repetidos, três pás, três baldes… Não sabem partilhar? E porquê um balde para a criança mais velha? Ainda brinca com areia? Claro que não brinca, tal como nenhuma das outras brincou, apenas devem exigir, e os pais anuem. E com crianças demoníacas como aquelas também eu anuiria, pensei sem espaço para dúvidas. Na verdade, grande parte do dia foi passado em redor de dois grandes temas fraturantes, invariavelmente fonte de discórdia e inspiradores de profícuos mimos entre todos: as idas ao banho e a partilha dos telemóveis dos pais. Claro que os infinitos lanches, a berraria pelas bolas de Berlim com areia – acho que todos eles as conseguiram deixar cair –, a ininterrupta exigência de gelados, a louca disputa pela ocupação das duas únicas cadeiras, as brigas entre crianças, as discussões acesas entre os pais e as escandalosas reconciliações… Tudo era suscetível e capaz de, do nada, gerar uma crise emocional em qualquer dos indivíduos, sendo que, independentemente da idade, todos eles gritavam, insultavam, ofendiam e praguejavam como velhos marinheiros em dia de excessos em terra. De tão mau, aquilo tudo era fascinante. Eu oscilava entre encantada e estupefacta. Era um privilégio que seguramente jamais se repetiria com aquela intensidade e colorido à minha frente, pelo que tinha de o aproveitar.

Houve mesmo um furto. As crianças mais velhas roubaram a carteira do pai e saíram disparadas para o bar da praia, enquanto o pai, sem o mínimo de pudor, todo nu, trocava lentamente de calções de banho, o que suscitou a indignação de alguns pais das cercanias que, incautos e alheios à estirpe desta família, se atreveram a pedir decoro e a lembrar que a praia não era exclusivamente deles e que havia menores por perto, que a praia de nudismo não era assim tão distante para ter de estar nu ali, em ambiente familiar… O reboliço que aquilo gerou permitiu às duas garotas – obesas todas elas, a bebé incluída – ganharem mais três quilos cada, com tudo aquilo com que se alambazaram, enquanto o pai, provocador, aproveitou para dar continuidade à discussão com os “cagões betos”, como lhes chamava, mantendo, intencional e despudoradamente, os calções em baixo, como se o ato de falar o impedisse de qualquer outro gesto que não fosse gesticular veementemente com mãos e braços e dedos no ar, ameaçando virar-lhes as costas. O que até seria bom para ver se os ânimos se acalmavam, acontece que aquele virar de costas era acompanhado com insinuações sodomitas e a dada altura o homem já falava sozinho, pois todos os ‘betos’ tinham vestido as suas camisas de linho e levado os fatos de banho matchy-matchy de toda a família para outro lugar. Do sítio onde me encontrava, fazendo de conta que dormitava debaixo do meu chapéu de abas gigantes e sob as lentes pretas dos óculos de sol, a imagem era absoluta e ironicamente caricata. A mulher, também ela a debitar, em todas as direções, pregões ofensivos com combinações de palavrões que jamais me teriam ocorrido – e até me considero criativa – parecia estar a fazer um felácio ao marido. Ele de pé, nu, com o corpo a mexer-se convulsivamente perante a indignação dos seus pares progenitores e ela sentada na toalha, inclinando ritmadamente a cabeça para a frente sempre que avançava com mais uma ofensa. Do lugar onde me encontrava, não fora estar a acompanhar todo aquele rocambolesco episódio, e a silhueta daqueles dois só diria uma coisa: sexo oral à descarada.

– F…, agora só mudas de calções quando estiverem secos para estes p….. saberem que não somos cães de circo, f…, amestrados para obedecer ao que estes f… da p…. querem, seus c… A tua mulher não se está a queixar, só tu…

Não consigo ir mais além desta breve reprodução. Tentativa de reprodução, devo sublinhar. Não estou, nem de longe nem de perto, à altura do evento para me considerar boa relatora. The F word, the P word, todas as combinações de palavrões possíveis e ainda um dom especial: o de fazer qualquer palavra soar a asneira e a ofensa pessoal. Reconheci alguma arte nisso. Jamais me foi dado presenciar alguém que dominasse de tal forma essa capacidade de tornar tudo ordinário e vulgar, mesmo com palavras banais e de circunstância, mesmo quando usava os corretos termos anatómicos, ou apenas se limitava a rir. O tom satírico era uma cirúrgica preciosidade. Tudo era extraordinariamente ofensivo e intimidatório. Aquele casal era a versão humana da construção gramatical ‘Gostar de criancinhas’. Genericamente todos gostamos de crianças, exceto quem não gosta – como é o meu caso e do Vasco, felizmente –, mas ninguém quer ser conhecido por alguém que gosta de criancinhas. Percebem? Ora elas agarravam em qualquer palavra, por mais doce e inocente e conseguiam sempre esse mesmo efeito, o de as violentarem e deturparem. Era fascinante! Tive de tomar notas, já que questões linguísticas são a minha área, além de que acalentava a ideia de escrever um guião… Enfim. Fui anotando tudo até que me comecei a enjoar com todo aquele lixo.

Definitivamente, aquele não era o homem que cheguei a achar que era. Se bem que até a voz seria capaz de me enganar. Muito mais gordo, este indivíduo tinha forçosamente outro timbre, mas… Não era e congratulava-me por não ser. Afinal, ainda que apenas durante três anos, tínhamos convivido de perto e nada do que dele conhecia e do que com ele passei, fazia antever tamanho descontrolo, tão despropositada falta de civismo, trato interpessoal tão abusivo, ordinário, vulgar e despropositado… Aquela família parecia retirada de debaixo de uma pedra, onde viveriam isolados do universo deste a Idade do Bronze. Ou deveria dizer do bronzeado?

Saturada de assistir a mais do mesmo, decidi dar uma nova oportunidade, a última, ao meu livro. Além de que um dia inteiro daquilo e os comportamentos começam a ser previsíveis, ainda que nunca estejamos preparados para a intensidade, desproporcionalidade e duração dos impropérios, atirados a quem quer que seja, e por qualquer um dos membros da adorável família. Entre si ou com outros banhistas a propósito disto e daquilo, a troca de mimos foi constante, bem como a gritaria e uma brutal má-educação, intolerante, irascível, rufia e temperamental. Desisti daquela família. Fomos ao banho. Ainda temi que as filhas do Demo me viessem roubar. Jogando pelo seguro, convenci o Vasco a descermos mais para perto da linha de água. Duas toalhas, um chapéu e uma cesta não impediam uma breve recolocação. Estava com a sensação de que as miúdas mais velhas todos observavam com segundas intenções. Talvez estivessem treinadas para roubar, enquanto os pais chamavam as atenções sobre si, com números que pareciam tirados das docas de Amesterdão de outros tempos. Varriam a praia com os seus olhos diabólicos e depois largavam em correrias loucas, lançando o pânico e a areia nas toalhas. Se fossem mais crianças, seria um arrastão. O fascínio inicial começava a ser substituído por um misto de medo e piedade. Lamentava os mecanismos de vida e de sobrevivência que haviam projetado aqueles pais, lamentava o fatídico encontro entre ambos e que tudo junto e mais outro tanto fossem o promotor daquelas pobres crianças, destinadas a serem réplicas de um mundo em que não nos queremos reconhecer, em que, felizmente, não tivemos de viver.

Só me enganava a mim própria. Não era falta de dinheiro ou estatuto social. Aquilo era apenas desencanto e nele todos podem tropeçar. Acontece que ali, além do tropeção, havia ainda o prazer brejeiro de chocar a plateia, de incendiar ódios, de incitar à violência física, o gosto escatológico de tornar tudo mais feio e ordinário e, por cima de tudo isto, de dar nas vistas com o seu mau gosto, atirando as suas opções e os seus palavrões a todos indiscriminadamente. Não deixava de ser uma imposição, uma consciente perversidade, uma urgência de público para o seu pequeno circo de aberrações, uma forma clara de bullying sobre tudo e todos. Havia ali muito mais do que mera falta de dinheiro, a qual, aliás, a haver não era notória. O cenário era pobre, incluindo visualmente, apenas por reinar uma falta de bom gosto e de bom tom em tudo o que dizia respeito àquelas cinco personagens. Até o bebé era medonho, gordo, com roupa fluorescente, uma crista, uns fios ao pescoço que sufocavam até o olhar de quem os via… Sentia-me feliz por não ser ele, como inicialmente me pareceu. Teria sido brutal. Vasco e eu fomos finalmente ao banho. De regresso, um casal olhava-me fixamente. Não apenas um casal, mas aquele casal, objeto apurado de todo um dia de incrédula e meticulosa observação. Dirigindo-se a mim, com a mulher atrelada e com cara de zero amigos, o homem atira, enquanto instintivamente quase me escondo atrás do Vasco:

– Então não é que é mesmo a minha ex-mulher? Ora esta! Vem cá Guida, vem conhecer a Júlia, que a nossa família bem que podia ser a dela. Olha-me isto! Este mundo é uma ervilha, c…!

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