Não sabia bem como ele reagiria, partindo dela assunto tão delicado. Receava não ser compreendida, ou não o ser na totalidade. Que ele se melindrasse. Se sentisse humilhado. Pior. Que a odiasse e passasse a olhar com desprezo e vergonha. Com embaraço. Que isso, em última instância, os separasse. Não entendia bem as razões de tal comportamento, apenas sabia que os homens são fãs de libertinagem, ousadias e descaramentos, mas não dentro de portas. Não protagonizados pelas suas próprias mulheres. Não aceitavam atrevimentos vindos do lado delas. Deslizes que não os seus próprios. Menos ainda em assuntos de cama. Já aceitavam o passado delas, bastante vivido que fosse, do qual não fizeram parte. Já não se melindravam tanto com antigos amantes, mas colocado, na relação, o marco D.M. – Depois de Mim –, tudo se complicava. Ou por ciúmes, ou por receio do olhar crítico dos amigos ou familiares, com sogras e cunhadas a encabeçarem a lista dos maiores detratores, ou por insegurança, o certo é que gostavam de se sentir tranquilos, donos do pedaço, sem rivais por perto.
Isabel entendia. Ela própria não gostaria que Eduardo andasse por aí, a beber copos após o trabalho, ou em qualquer outro horário, apenas com colegas mulheres. Ou que ele se insinuasse em pequenas brincadeiras e subentendidos inconsequentes, mas, ainda assim, humilhantes para quem ama. Ser-lhe-ia inconcebível que ele imaginasse estar com outra mulher quando estavam na cama, ou que ainda suspirasse pelo seu primeiro grande amor. Compreendia mais do que bem. Daí o seu receio e o enorme pudor em abordar o tema. Por outro lado, sentia com enorme e crescente pânico que a relação estagnava. Que a comunicação encolhia e que até o entendimento sexual era deficitário. Amava-o, mas tudo aquilo que cimentava a relação – o amor, o respeito, o projeto de vida a dois, os objetivos e ambições – começava a não ser suficiente. Roçava, por vezes, o enfadonho. Aquele sentimento avassalador que os mantinha juntos, banalizava-se. Ela temia que ele se desinteressasse, por sentir que ela própria, muitas vezes, já dava por si a imaginar cenários sexuais e romances com estranhos. Algo estava mal.
Não era a primeira vez que as coisas esmoreciam e que falavam sobre o assunto. Acabava, porém, tudo por voltar ao mesmo. Talvez por comodismo. Voltava tudo àquela temperatura morna, que não desperta o palato, nem favorece os alimentos. Desta vez, Isabel tinha em mente uma solução. Algo que, sentia, resultaria consigo, pois apenas a ideia a excitava. Estaria Eduardo recetivo a algo tão íntimo? Em tempos, chegaram a abordar, apenas num plano teórico, se se sentiriam à-vontade num trio sexual. Claro que ele imaginou a cena com duas + um, enquanto Isabel discorreu visualmente e de imediato para ela + dois. Ele melindrou-se. Isso não. Era demasiado másculo para tal. Outro homem a disputá-la na cama? Que faria ele? Permitia? Dava-lhe a vez? Ficava a observar? Tinha de lhe tocar também? Difícil seria que os dois homens conseguissem evitar o toque e isso nem pensar. Seria à vez? Podia resultar em algo demasiado embaraçoso e deprimente, ao invés de excitante. Ou seja, todas as contingências de um trio amoroso que o excitavam quando se imaginava com duas mulheres, incomodavam-no soberbamente quando o cenário mudava de protagonistas. Ela considerou a reação dele demasiado homofóbica e exagerada, mas compreendeu os constrangimentos. Também ela os tinha. Entre o compreensível e o estapafúrdio, tudo aquilo foi esquecido, além de que viviam um para o outro e eram demasiado ativos, a todos os níveis, para houvesse marasmos ou necessidade de apimentar fosse o que fosse. Tinham os seus jogos de palavras, o seu entendimento e uma enorme atração física que era mais do que estimulante e excitante. Ultimamente, todavia, Isabel já não se sentia tão preenchida. Era preciso chocalhar aquela relação. Por isso, andava, há já algum tempo, a magicar na possibilidade do swing. Evitavam-se todos os constrangimentos de uma ménage à trois, obtinha-se uma nova dinâmica erótica dentro e fora do casal, e nenhum dos dois estaria em vantagem ou desvantagem. Isto, no seu caso particular, em que ela não apreciava ter outra mulher na cama a seu lado, nem ele outro homem. Assim, casal com casal, tudo parecia mais civilizado e não menos excitante.
Organizou as ideias, sequenciou uma série de bons argumentos e partiu a desbravar terreno. Precisava de saber se poderiam considerar essa possibilidade, ou se teriam de abordar a crise conjugal de outra forma. Era a primeira vez que lhe dava um nome, mas depois de dito, crise conjugal parecia a designação certa para aquilo que viviam nos últimos tempos. Tempos planos. Lisos. Desinteressantes. Um minimalismo que poderia acabar num preocupante nada. Queria evitá-lo. Havia que evitá-lo. Tentou no decurso do jantar, mas os hábitos quotidianos, os afazeres ritmados e sincronizados, não deram tréguas, nem disponibilizaram a abertura e o tempo necessários a tão sério assunto. Aguardou pelo café, altura já mais calma, que antecedia um serão na sala, que dedicavam a uma série de tarefas, que incluía leitura e resposta a e-mails pessoais e telefonemas familiares. Não teve coragem. Achou Eduardo cansado e preocupado com assuntos de trabalho. Não quis indagar sobre o que o preocupava. Qualquer outro assunto complexo e moroso comprometeria irremediavelmente o seu ímpeto e o timing correto. Não se podia dispersar. Concentrou-se, com rituais de obsessivo-compulsiva, a mexer o café. Ele percebeu. É a vantagem de uma vida de partilhas e intimidade. Conhecemo-nos. Quis saber em que matutava. Isabel, num rompante que, para quem estava fora da sua mente e daquilo que a ocupava há já tanto tempo, pareceria extemporâneo despejou tudo de rompante. Que passavam uma fase complicada. Que se afastavam. Que eram quase já só amigos. Que mal se tocavam. Que tudo parecia precipitar-se para uma sociedade e já não uma união apaixonada. Que nenhum dos dois podia, em rigor, afirmar convictamente que era feliz. Feliz de verdade. A propósito e a despropósito. No que isso implica de vivacidade e inspiração. Que tinham de tomar medidas. Avaliar o que se passava. Fazer coisas diferentes, que trouxessem novidade e alavancassem a vida sexual. Que condimentassem o seu amor. Que voltassem a excitá-los e a levá-los a correr para casa para se despirem.
A sua relação, que começou por ser digna de um poema escandalosamente erótico, com ritmo de puro rock, não passava, por esses dias, de um tristonho fado. Se não se acautelassem, acabariam musicados por um Tony Carreira da vida, lamentando-se sobre o que aconteceu, ao invés de investirem naquilo que desejavam que acontecesse. Isabel já quase não tinha fôlego, argumentos ou metáforas para melhor enquadrar o tema, quando percebeu que tinha de concluir.
– Até isto que te quero dizer, noutros tempos, não me teria custado tanto discurso. Agora, sinto que ando sobre cristal. O que te quero dizer é que tenho pensado em swing. Troca de casais. Acho que poderia ser o ‘tratamento’ para o nosso caso de apatia e desinvestimento. Vai tonar-nos mais argutos, de novo. Achas que estou louca?
Eduardo ficou uns segundos calado. Olhou-a nos olhos e, para grande alívio de Isabel, com um meio sorriso, avançou, sem gaguejos ou hesitações de outra ordem:
– Não estás louca, coisa alguma. E já sei do casal ideal. Que tal o João e a Maria? Discretos, giros, sociáveis, sexy…
Isabel gelou. O que era aquilo? Não apenas também ele sentia que precisavam de algo mais, sem nunca o ter referido, que necessitavam de tomar medidas, que nunca abordou ou discutiu com ela, e até já tinha a solução, a qual jamais havia mencionado, como, para pináculo de todos os cúmulos, já tinha a mulher com quem queria ‘sexar’ escolhida? Ali havia coisa. Ó se havia. Precisava de tempo para ‘esmoer’ toda aquela informação. A Maria? O que era aquilo? Desejava-a secretamente? Pensava nela em termos sexuais, isso era óbvio. Caso contrário… Nem sequer tomou algum tempo, como quem pára para pensar, avançou logo com o nome dela. A Maria. Muito bem. Pensemos, então, na Maria. Tentou recordar-se há quanto tempo a conheciam. Tudo piorou quando se lembrou de que era uma das amigas dele e não dela. Quando a conheceu já vinha com o João, pelo que Isabel nunca pensou na Maria sem o João. Eram um todo. Um par. Unos e inseparáveis. Mas houve Maria antes do João e Eduardo antes de si. Terá havido, algures no tempo, um tempo de Eduardo e Maria? Seria um caso mal concluído? Uma paixão antiga? Um desejo secreto e nunca realizado? Seriam amantes desde sempre e ela sem nunca o ter percebido? Não deveria ser capaz de captar essas coisas no ar? O que se passaria com o seu radar? Faltou a alguma revisão? Falhou uma reparação? Precisaria de mudar o óleo?
O seu silêncio já demorava demasiado tempo. Era preciso dar continuidade à conversa, mas Isabel sentia-se perdida em cogitações dramáticas, desconfianças vitais, que não lhe permitiam dar continuidade lógica ao diálogo que ela própria tinha forçado. Não podia, também, simplesmente atirar-lhe todas aquelas perguntas surdas, que ecoavam no seu coração, à cara. Com argúcia, lembrou-se de avançar com outra sugestão. Outro provável casal.
– Porquê o João e a Maria? Porque não o Luís e a Susana?
– O João e a Maria são bem mais interessantes, além de que o Luís é gordo, transpira imenso e já o vi nu no ginásio e deixa-me dizer-te que não é um cenário sexualmente promissor. E a Susana, por favor, é uma boçal, uma bimba. Só de pensar nisso…
Ele tinha razão, o Luís era medonho e a Susana não chegava a sofrível, além de que a celulite já lhe passava para a roupa. Lamentou-se por não lhe ter ocorrido melhor sugestão alternativa ao casal top-model.
– O que tens contra o João e a Maria? São progressistas e, ainda que possam não aceitar, não se vão escandalizar nem revelar o assunto a quem quer que seja. São discretíssimos.
– Só colocas a hipótese de ser com eles? Até parece que já tinhas tudo programado…
– Não te entendo, Isabel. Tu é que falaste no assunto, e com muita propriedade, de resto. Acho que tens razão em tudo aquilo que disseste. Logo que concordo, avanço com a sugestão mais lógica e retrais-te? Não percebo. Só estou a ajudar.
Isabel, já sem conseguir reprimir os ciúmes, atira:
– Sim, mas parece uma ajuda demasiado imediata e estudada. O João e a Maria. Nem pensaste no assunto. Saiu-te num ápice. Até parece que já pensas nela há imenso tempo e eu, feita parva, aqui estou a dar-te a deixa perfeita. Algum interesse especial na Maria?
– Na Maria? Eu? Então, mas… a Maria não era para ti?
Moral da história:
Se não tem estofo para o swing, tente o foxtrot. No fundo, vira o disco e ‘troca’ o mesmo.
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