Na mesa ao lado, uma americana falava alto e alarvemente, como, de resto, todos os norte-americanos fazem, principalmente aqueles que vamos encontrando fora dos Estados Unidos. Como se, hoje, meio mundo e mais um quarto não compreendesse tudo aquilo que é dito ou escrito em inglês. Será que falarão igualmente tão alto, sem respeito pelos circundantes, sem consideração pela sua própria privacidade e daquilo que vão debitando, quando estão nas cercanias das suas casas? Usarão dos mesmos altos índices de decibéis e despudor no café ou mercearia de todos os dias? Era um bom tema para uma qualquer tese.

A mulher já galgava os chamados anos sénior, qualquer coisa como setenta anos, ou mais, que o dinheiro ajuda a conservar as pessoas e, por qualquer razão que desconhecia, é sempre mais difícil de avaliar a idade dos estrangeiros. Principalmente os de outros continentes. Como avaliar a idade de um adulto chileno? Ou de um tailandês? Era-lhe, achava, mais fácil acertar na idade de um europeu, como ele próprio. Seria mesmo? A conversa parecia-lhe agora mais jovial e entusiástica. Voltou a olhar para a mesa. A americana falava com um homem, mas reparou que não era o mesmo idoso com quem a tinha visto entrar no restaurante. Onde estaria o outro? Este era bem mais novo, ou assim parecia, do que o primeiro homem, aquele outro com quem a mulher tinha entrado. O par da mulher era mais débil. Não em tamanho, era um homem grande, mas em idade. Era um idoso com mais dificuldades locomotoras, com menos audição – tinha notado a forma como ela se esforçava por falar-lhe mais perto do ouvido –, que mal participava na conversa, parecendo entreter-se apenas a ver os lábios dela moverem-se. Seria, talvez, ou seguramente, a avaliar por tudo aquilo que tinha observando, mais velho do que a mulher, mais carente e menos autónomo. Um casal de reformados em viagem pelo mundo, de visita a Itália.

Estava agora mais curioso em perceber quem era este outro homem e para onde tinha ido o outro. Era notório, pela conversa e entusiasmo, principalmente dela, que não se conheciam. Que tinha sido aquele enigmático íman que puxa dois corpos estranhos quando, partilhando uma mesma língua e geografia, se encontram numa parte remota do planeta. Era isso, sem dúvida. Terão percebido que ambos eram norte-americanos, o que para este outro homem, também ele idoso, mas desenvolto e bem-parecido ainda, não terá sido difícil já que a mulher falava alto e o seu olhar era um bem afinado radar. Ele terá parado para dar dois dedos de conversa, saber de onde eram, para onde iam, à laia dos ricos e bem-fadados viajantes que vão fazendo amigos de curta duração em cada paragem. Ou terá sido ela a convidá-lo. Era o mais provável. Foi, estava em querer, a mulher quem tinha percebido um dedo de familiaridade com aquele estranho bem-apessoado, mais novo e apetecível do que o seu parceiro de viagem, e lhe terá feito o convite para se juntar a eles. O velhinho teria ido, entretanto e sem que ele tivesse dado por isso, à casa de banho e ela terá redobrado os trinados do seu tom de voz para com este outro homem.

By Bill Perlmutter

Escandalizou-se e enterneceu-se com aquele clima de sedução não recíproco. Era-lhe óbvio que o entusiasmo dela era bem maior do que o do homem que agora, meio de lado na cadeira, como quem partirá a qualquer instante, se sentava à frente da mulher. Escandalizou-se, porque era claro que ela não estava sozinha, que o seu parceiro tinha apenas ido satisfazer uma necessidade fisiológica básica e não tardava – isto se não morresse pelo caminho, já que o homem desta mulher estava mais visivelmente perto do fim –, porque aquilo tinha aromas de traição barata e avulsa, porque da leitura que fazia, ela não respeitava o homem com quem estava. Enterneceu-se por perceber que a idade está apenas nos olhos de quem vê. Fosse a americana uma jovem de 20 anos a tentar a sorte, uma melhor sorte, com outro jovem em viagem, enquanto o seu parceiro se ausentava e pensaria ele o mesmo? Claro que não deixava de ser desrespeitoso, mas seria facilmente interpretado como a eterna busca do amor, ou da paixão ou apenas de melhor sexo. Assim, como eram velhotes, parecia-lhe a ele mais indecoroso e descabido assistir a esta cena de engate. Houve espaço para sentir um pouco de vergonha de si mesmo, por considerar tudo isso sobre aquela mulher que nem sequer conhecia, mas que já estereotipava. Um pensamento que rapidamente se esvaiu.

By Berenice Abbott

A conversa entre aqueles dois estrangeiros com quem agora se entretinha em exclusivo, denunciava que respondiam às perguntas básicas de quem acaba de se conhecer. De onde eram, quando tinham chegado, quando partiriam… O nível básico de qualquer primeira conversa daquele teor, naquelas circunstâncias. A mulher, consegue perceber, diz ao homem que este é o seu quarto casamento, que ele é mais velho, o que torna tudo mais penoso e lento. Ela ri-se imenso. Demasiado. Sem necessidade. O homem, sentado de lado na cadeira, como quem partirá a qualquer instante, sorri apenas, o que torna tudo mais constrangedor. Não estão exatamente na mesma frequência. Deveria ele levantar-se e segredar isto ao ouvido da norte-americana, para evitar aos três – à americana, ao homem de passagem e a ele próprio, o observador – mais constrangimentos? Claro que não. Aquilo não era cena de filme. Era a vida a acontecer. Direto e desconcertante – aos seus ouvidos que não conhecia o homem e estava pouco habituado a franquezas – o homem pergunta à mulher, e isto foi bastante compreensível, não obstante o facto de o homem falar um pouco mais baixo do que a mulher:

– Porque está com ele, como se casaram?

Apurou a audição, concentrando-se em absoluto naquilo que ela diria. Quase lhe apetecia olhar também, para ver se, lendo-lhe os lábios da melhor forma possível, nada ficaria de fora. Sem rodeios, quase como se lançando um pedido de ajuda, ou deixando cada vez mais claro que amor é elo que não a une necessariamente ao homem com quem se casou na sua quarta tentativa de acertar o passo com a vida afetiva, a norte-americana responde:

– Conhecemo-nos, estávamos ambos sós e, sabe como é, we have to go where the money is.

Teria ela dito aquilo mesmo? Teria ouvido corretamente? A sua mesa era perto. A mulher não falava baixo, mas… Que outra mistura de sons poderia resultar semelhante àquela frase em inglês? O que poderia ela ter dito em vez daquilo que ele julgava que ela tinha dito? Onde poderia estar a confusão? E porque lhe custava tanto a aceitar que aquilo fosse verdade? Ou, pior, a escandalizar-se com a sinceridade? Uma mulher sénior, com três casamentos fracassados, com menos tempo de vida pela frente do que o que já tinha para trás, obviamente sem o dinheiro que considerava suficiente para viver ao seu ritmo… Que mal tinha em procurar uma companhia que lhe desse conforto e a ilusão de felicidade? Que mal tinha? O que poderia ser condenável na assunção sincera dessa verdade? O facto de ela a confessar, assim, sem pejos ou vergonha, a um estranho? Talvez. Nesse ponto, voltou a sentir-se mais incomodado com o seu preconceito e permanente juízo de valor do que com o discurso desbragado da mulher. Maldita cultura europeia, sempre tão bota de elástico e conservadora. Sempre tão agarrada a nostálgicas e falsas verdades, principalmente sobre o amor.

O que era o amor? Melhor: o que era o amor puro e sem mácula? Não seria amor, viajar pelo mundo com um velhinho pela mão que talvez ninguém mais quisesse passear senão ela? Não seria igualmente amor, aceitar a vida ao lado de alguém que não se ama da forma tradicional, mas que consentimos em fazer feliz? Restava saber se aquele outro velhinho, que nunca mais regressava da casa de banho era feliz. Se também com ele ela usava da mesma brutal sinceridade. Se era apenas um acordo de amizade e simpatia aquilo que conscientemente os unia.

Temos de ir atrás do dinheiro. Foi assim que, na sua mente, gravou as palavras da americana. Primeiro com escândalo e repulsa. Depois, com reprovação. Depois ainda… O velhinho, o quarto marido, como agora sabia, regressava. Tinha acertado, vinha da casa de banho. Meio desfraldado, arrastando os pés. Sentou-se pesadamente e mal abriu a boca, participando apenas na conversa com meios sorrisos e acenos de cabeça. Ou era-lhe difícil fisicamente, ou penoso a qualquer outro nível. Ou era apenas um velho rezingão e antipático e a americana, afinal, fizesse muito bem em tentar a sorte noutro lado.

Um breve movimento fê-lo desviar os olhos. Um pombo depenicava frenética e descansadamente a pizza que o restaurante tinha à porta. Seria um convite aos estrangeiros, uma espécie de amostra ao vivo do que poderiam encontrar lá dentro, ou o almoço regular dos pombos da rua? Quando voltou a olhar para a mesa dos estrangeiros, o casal já estava só. O homem que, meio de lado se sentou na cadeira como quem estava de partida, tinha mesmo partido, como se previa. Terão marcado encontro para outra hora? Outro lugar? Ou ter-se-iam despedido com um vago ‘até qualquer dia’? Ainda que mantivesse a curiosidade, entendia que tinha apanhado a parte mais interessante da conversa. Pelo menos, para si, a mais desconcertante. Tentaria, agora, perceber qual o grau de intimidade e felicidade daquele curioso casal. Tentava concentrar a sua audição novamente no diálogo da mesa ao lado quando, por cima da voz da americana, agora sem tanto para dizer, e com menos entusiasmo em fazê-lo, lhe começam a chegar o som familiar das vozes ‘made in home’. Era a mulher, os miúdos e os sogros que regressavam. Tinham insistido em subir até à torre de Pisa, na necessidade de por ali ficarem a manhã toda a tirar fotos e a visitar o batistério…

By Elliot Erwitt

By Jerry Cooke

Ele tinha visto que a torre de Pisa não passava daquilo que já lhe tinha sido mostrado em bilhetes postais um milhão de vezes, com melhor nitidez e enfoque, pelo que toda a curiosidade estava já satisfeita e bem saldada, sem necessidade de escadarias e acotovelamentos com outros turistas. Conferira que estava, de facto, inclinada, que não era erro de perspetiva ou ilusão de ótica, leu sobre quais as razões… Estava tudo visto ao cabo de dez minutos. Cansava-o aquele tipo de romaria por entre rebanhos de gente encarneirada, esperando em fila para tirar aquela foto, daquele preciso ângulo que todos os outros procuravam. Porque não se limitaram simplesmente a passear por ali, de mão dada… Claro que tinham ido com os miúdos. Claro que tinham ido com os sogros, que se equiparavam em deslumbramento e maçada aos três filhos menores e as suas pertinências. Com a desculpa de encontrar um bom restaurante, para que depois não tivessem de aguardar numa outra qualquer fila para almoçar, deixara o grupo entretido de fila em fila e vagueara pela cidade de Pisa. Por qualquer razão, talvez já a antevisão do pombo na pizza, ou a possibilidade de silêncio, ou antes a perspetiva de um copo de bom vinho enquanto escutava conversas alheias, aquele e não outro restaurante pareceu-lhe o ideal. Não se tinha arrependido. Tinha-se abstraído…

Eles chegavam. Barulhentos. Transpirados. Os miúdos olhavam as fotos nos ecrãs dos telemóveis. A mulher abanava docemente um leque que lhe fazia esvoaçar o cabelo preto. Pensou se seria amor. Se alguma vez teria sido amor. Mas não por muito tempo. O sogro, também ele no registo da norte-americana, a falar alto e a mostrar desagrado. Claro que não gostava do restaurante. Claro que era escuro e desagradável e quente. Claro que teria sido melhor uma esplanada. Que ideia peregrina aquele local, sem vista alguma… Alguma vez tinha decidido algo que agradasse ao sogro? Alguma vez tinha correspondido ao homem com que o sogro sonhara para a filha? Haveria esse homem? Teria sido inventado, algum dia? Já teria morrido, entretanto? Seria apenas uma invenção daquele velho casmurro, que ninguém jamais se atrevera a contrariar? Um velho mimado e impertinente. Como é óbvio, teria de pagar o vinho que consumira e procurariam algo mais agradável, ou apenas diferente, ou apenas igual ou mesmo pior, mas eleito pelo velho que governava as suas vidas. As vidas de todos aqueles cujos gastos custeava, cujas viagens pagava, cujos destinos, a troco disso, decidia de forma muito clara. Pelo menos para ambos: para o sogro, que assim o exigia e para ele, que assim o aceitava.

Sorriu com amargura, enquanto tirava a carteira do bolso interior do casaco e deixava uma nota sobre a mesa. Já de pé, agarrou ainda no copo de vinho e bebeu o que nele restava. Virando-se para a mesa da americana disse:

– É mesmo verdade. We all go where the money is.

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