(F)Ato I
Minissaia amarela
Tamanho XXS
Cliché avançou seguro. Peito feito, a arrotar soberba e confiança. Esmagaria a vadia em meia dúzia de frases feitas, a serem debitadas no café, entre o abatanado e o pastel de nata ou a meia-de-leite e o pão de Deus com fiambre e manteiga. Os comensais concordariam com tão sensata sabedoria matinal e antes da bica que selaria a primeira refeição do dia, já pouco restaria da fornicadora do bairro, grande destruidora de lares felizes e harmoniosos.
Há muito que a vida dissoluta da jovem devassa do terceiro esquerdo era falatório diário. Dos micro-calções ao vomitado noturno, no regresso das suas deambulações pelos antros da perdição, passando pelo rol de homens a quem abria a porta a qualquer hora do dia ou da noite, Celestina era o grande tema da vizinhança. Não havia guerra na Ucrânia, nem derrota na Luz que superasse o interesse que todos dedicavam à sua vida privada naquele pedaço de paraíso urbano, minado de casamentos abençoados.
Desta vez, o caldo tinha-se entornado um pouco mais. O homem era casado. Pior, o homem era casado e era morador do bairro. Uma vergonha! Cliché não conseguiu elaborar mais sobre o assunto e avançou para aquilo que fazia melhor: maledicência e coscuvilhice. Se era exímio na primeira excedia-se em excelência na segunda.
– Uma pouca-vergonha, é o que isto é. Um homem de família, respeitador e respeitado, que nunca faltou com nada à mulher e aos filhos, envolvido agora nesta escandaleira. Tudo por causa daquela vadia, que abre a porta e as pernas a quem quer que seja.
Foi quanto bastou, que o rastilho dos costumes é sempre demasiado curto para permitir outras considerações para lá do chavão fácil e misógino. O medo que todos sentem de que lhes possa acontecer o mesmo, leva à crucificação dos mais inocentes ou, neste caso, dos mais livres.
– Tem toda a razão. Pobre do homem.
– Mais uma família desfeita, por causa de uma desavergonhada.
– Desde que se mudou para o bairro, logo o bairro mudou.
– Vivíamos no paraíso, antes dessa provocadora aqui chegar.
– Tão jovem e tão pecadora.
– Ela vive para fornicar e nem olha a quem.
– Se fosse minha filha, outros ventos soprariam.
Cliché, refastelado no seu canto habitual, um lugar de onde observava toda a sala, suspirou de contentamento. Pareceu-lhe, todavia, que o assunto esmorecia, por conta do preço do gás e do atropelamento do carteiro, substituído por outro que nunca acertava na caixa correta e não sabia que toda a correspondência da D. Idalina tinha de ser entregue na mercearia, pois a coitada mal conseguia descer a escada do prédio e era o bom do merceeiro quem lhe fazia chegar a reforma e tudo o resto. Um transtorno, é certo, mas não podia suplantar o caso quente do momento: Celestina ter ‘comido’ o marido da Carminho. Havia que lançar mais uma acha para a fogueira.
– A grande cabra envolve as vítimas com astúcias de serpente venenosa. Vai-as hipnotizando, vai-se aproximando, montando um cerco apertado que não deixa saída aos pobres coitados.
– Tão verdade! Um homem que só tinha olhos para a família e o trabalho, ver-se agora envergonhado e publicamente humilhado com toda esta depravação. E tudo porquê? Por causa de uma gaiata vadia em quem ninguém tem mão.
– Ela anda por aí a mostrar-se, quase sem roupa…
– Sem roupa interior, que isso já eu notei.
– Não me diga!?
– Ai, digo, digo. E se não falo verdade, basta que repare na corda da roupa dela. Nestes três anos, nem um par de cuecas a secar. Sei bem do que falo, pois a minha corda da roupa dá com a dela e roupa interior é coisa que não existe.
– Ora, digam lá se isso é de uma mulher decente?!
– Claro que, depois, os homens não são de ferro.
A coisa voltava aos carris e estava bem encaminhada. A fim de conseguir ainda mais tração e ganhar velocidade cruzeiro, Cliché entende que não se deve retirar já da conversa. Para escalar ainda mais a indignação, lança uma preciosa granada, um clássico irrefutável:
– Ela pôs-se debaixo dele.
Não houve tempo para apreciar o resultado do seu vernacular axioma.
Celestina, que não precisou de assistir a toda a conversa para saber do que falavam, entra de rompante na pastelaria e na conversa, com uma sedutora minissaia amarela, ou seria uma nanossaia?
– Não foi por baixo, foi por cima, que eu gosto de dominar as operações na cama. Na minha cama, já agora, onde ninguém é forçado a deitar-se e onde eu sou livre de ter sexo com quem eu quiser.
– Estragou um casamento, não tem vergonha?
– Só trai quem já está num casamento estragado. Se fosse um casamento feliz, ele não tinha ido bater à minha porta depois de meses de tentativas. Também não tinha comido meio bairro antes de chegar a mim, não é verdade D. Aurora?
Aurora, uma das mais acérrimas defensoras do bom nome do bairro e que tinha por Celestina verdadeiro desprezo, empalideceu até atingir um tom cadavérico, entre o cinza e o esverdeado, que até nem lhe ficava assim tão mal. Todos os olhares centrados em si, neste momento. Todos os receios centrados no peito de cada um dos presentes. Seriam revelados mais nomes? As mulheres emudeceram, enquanto os homens abriam os ouvidos e os olhos, pois que estes também ouvem em casos gravosos e extremos, como era o caso. Aurora, entretanto, de boca aberta, a tentar magicar uma defesa que segurasse aquela bolada certeira, quando nova bujarda se aventurava no espaço da pequena moral do café da Sandra.
– Antes de falar, deveria reconhecer que aquilo que sente por mim não é ódio, é inveja, porque é isso que a liberdade suscita: inveja. Mas não se preocupe, não direi a ninguém que é na sua casa que ele passa religiosamente os serões de sexta-feira, nem que a sua coleção de dildos jaz aos pés de N. Senhora de Fátima, que ninguém tem nada a ver com a sua vida íntima, não é verdade D. Aurora? Cada um sabe de si e Deus sabe de todos. É esse o meu lema. Sandra, uma bica escaldada, por favor.
Imparável, Celestina senta-se na mesa de Cliché, onde este, nervoso, tenta reconquistar os seus postos avançados.
– Bom dia, meu amor. Apareces mais logo? Leva a tua irmã, a Beata Ressabiada, começo a ficar fã da nossa divina trindade.
Moral da história:
Não se vive verdadeiramente sem uma minissaia amarela e um café de esquina.
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