(F)Ato II
Jardineiras
Tamanho – 7 Anos
Faces roborizadas de tanto rir, coração acelerado de tanto subir. Mente alerta, de tanto se inquietar. Augusta aumentava o esforço tentando ser ainda mais rápida. O pai não gostava que ela não estivesse em casa quando regressava do trabalho. Hoje, tinha brincado um pouco mais, até um pouco mais tarde. Culpa sua. Tinha sido irresponsável. Pensava na mãe. Tentaria os degraus dois a dois, mas não conseguia. Faltava-lhe força e energia. Faltava-lhe fôlego também. Faltavam dois lanços de escada… tarde demais. O pai já tinha chegado. Culpa sua. Dois lanços de escada e já ouvia o seu vozeirão em desatino. Já ouvia tudo aquilo que a voz da mãe queria gritar e não ousava dizer. Ouvia os seus gritos de dor sufocados, para não chamar a atenção dos vizinhos, para que não soubessem, não julgassem. No fundo, para que mantivessem do marido uma imagem decente e consequentemente, uma outra imagem de si mesma. Sem julgamentos outros que não os seus, demasiado pesados ara lhes acrescentar o dos outros. Pobre mãe. Incorpora-se a dor, normaliza-se a tristeza e banaliza-se o medo. Assim nasce o terror permanente. Assim crescera ela.
Mas ela ouvia o que a mãe gostaria de dizer se fosse livre. Coisas que a mãe já mal ousava pensar, que o demónio esconde-se em lugares secretos dentro de nós, tolhendo movimentos e inibindo pensamentos, pelo que temos de agir com cautela. Sentia-lhe o medo, mesmo à distância, que o medo é farejável por qualquer filho habituado à brutalidade. É visível no ar tóxico que ora ganha tonalidades de verde fluorescente, como as visões noturnas, ora de amarelo-torrado, chegando depois à cor do sangue e das lágrimas. Percebia ainda a cólera cega e irracional nos olhos do pai. Tinha-a visto demasiadas vezes para que não a visse mesmo na sua ausência. O coração tentava sair-lhe do pequeno peito ofegante. As pernas tentavam movimentos que não conseguia executar. A mente instigava-a a ir rápido. Mas como? Galgar cada degrau era trepar cordilheiras de pavor, com os pés a resvalarem pela rocha húmida e escorregadia. Abre-se a porta do primeiro direito. A vizinha Generosa.
– Queres ficar comigo? Anda, vem para dentro, enquanto eles resolvem as coisas.
Custódia sem alento para uma resposta. Sem conseguir dizer-lhe que não se tratava do que ela queria, mas do que ela devia fazer. Do que tinha mesmo de conseguir: percorrer os restantes dois lanços de escadas, impregnados de medo e humilhação, e resgatar a mãe e todas as suas lágrimas sem perdas significativas de sangue. Era imperativo. Ainda para mais, a culpa era sua. Tinha-se atrasado.
– Tenho bolo de chocolate acabado de fazer. Não queres uma fatia?
Mais uma vez, o querer e a necessidade. Custódia adorava o bolo de chocolate de Generosa, mas odiava que ela perdesse tempo a oferecer-lho, que gastasse segundos preciosos a afastá-la do seu móbil maior. Gostava tanto do seu bolo de chocolate, da sua cozinha arrumada e em paz, do silêncio tranquilizador, da música que por lá se ouvia, do seu tom de voz sempre harmonioso, calmo e feliz. Gostava daquela suavidade, daquela facilidade de viver, da felicidade que nunca experimentara. Porém, o que Custódia queria naquele instante não era uma fatia do bolo de chocolate de Generosa, mas que a vizinha agarrasse na sua mão e com ela galgasse os restantes dois lanços de escada e fosse ajudá-la a salvar a mãe dos murros do pai. Da sua bílis infeciosa, do seu rancor odioso, das suas palavras coléricas, do seu hálito venenoso. Porque é que não tinha dado pelas horas?
Generosa pareceu ouvir o que os olhos suplicantes de Custódia diziam, em voz tão alta que era quase audível. Custódia achou mesmo que teria falado, embora sentisse os dentes cerrados, que, de tanta força, já tinha mordido a língua junto aos molares e já lhe provocada dores nos maxilares. Uma boca assim não poderia ter falado. Uma boca tão cerrada quanto os seus punhos frágeis. Unhas cravadas nas palmas das mãos. Precisava de sofrer para sentir que se solidarizava com a mãe, lá em cima, a meros dois lanços de escadas a ser sovada pelo pai. Ou violada. Ou ambas as coisas. Foi com tristeza e revolta que ouviu o que Generosa tinha para lhe dizer:
– Vem, minha querida. Sabes que nestas coisas não devemos interferir. Como diz o ditado “Entre marido e mulher, que ninguém meta a colher.”
De repente, o seu corpo obedeceu, impulsionado pelo assombro de incredulidade que as palavras de Generosa lhe tinham provocado. Acometido pela certeza de que apenas ela podia socorrer a mãe. Apenas ela e somente ela estaria disposta a fazê-lo, mais do que isso, comprometida em fazê-lo, e a qualquer custo, fosse qual fosse o preço, que há coisas na vida que merecem todo o tipo de inflacionamento que o mercado lhe imponha. E todos sabemos como a liberdade está pela hora da morte. O seu corpo ganhou um alento desconhecido. O medo deu lugar a algo que desconhecia, mas que vinha pujante e cheio de determinação. Devia ser o cheiro do bolo de chocolate de Generosa. Corria movida a essa entidade que quanto mais energia consumia, mais energia gerava. Seria, seguramente a ela que se referiam quando falavam em energias renováveis. Era como se sangue novo lhe fosse injetado a cada passo que dava. Os rins a produzirem uma torrente imparável de mais glóbulos vermelhos e etes pejados de oxigénio, prenhes de energia reconfortante e fiável. Sempre mais rápida. Sempre mais forte e imparável. Se alguém a escutasse talvez lhe pudesse dizer que essa energia é amor em estado puro, mas ninguém nunca parou para lhe falar dessas coisas da energia interior, menos ainda de amor. Na sua casa, o amor era a ausência do pai. Nada mais.
Se ao menos não se tivesse atrasado.
As suas pernas obedeciam a essa entidade superior, instigadas pela urgência de Custódia. Pela dor que sentia a cada estrondo que ouvia, vindo da sua casa, dois lanços de escadas acima. Um lanço de escadas acima. Um degrau apenas… E um bolso precioso onde a mão de Custódia, sem que ela disso tivesse conhecimento, sem que ela o autorizasse foi encontrar aliados. Eram as suas jardineiras preferidas, cheias de bolsos e esconderijos, onde guardava todos os seus tesouros, já que em casa tudo estava condenado a poucos dias de vida, ou a poucas horas. Dependia muito do pai. Dependia tudo do pai. No bolso das suas jardineiras mágicas encontrou a chave de casa, mas não só.
Veio a polícia e vieram os bombeiros. O INEM e toda a vizinhança. Veio, claro está, a vizinha Generosa, com os seus modos maternos e com olhos da cor do seu bolo de chocolate, agora derretido pelas suas faces. A tal ponto que lhe manchava já o casaco, a blusa e as calças.
– Meu amor, eu não te disse? Nem uma colher…
– Eu não pus a colher, Generosa. Pus o canivete.
Moral da História:
Em relação aos talheres, cada um usa o que lhe for mais conveniente.
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