(F)Ato III
Casaco de tweed
Estado – em segunda mão
Não sabia como, mas sabia naquilo que a sua existência se tinha transformado: num imenso chavão. Recordava o entusiasmo do auspicioso início de tudo, associado para sempre a um velho casaco de tweed comprado em segunda mão numa loja da baixa, de espírito vintage e cheiro a mofo, situada numa cave de paredes de pedra. Ainda mantinha o casaco, guardado algures entre milhares de outros de caxemira, alpaca, lãs por desvirginar e outros pelos interditos à maioria dos humanos. Tudo acondicionado num quarto de vestir, onde caberia sem apertos a área total de mais de 90% das habitações mundiais. Nesse tempo, em que o maior luxo do seu guarda-roupa era o casaco de tweed em segunda mão, era um jovem brilhante, com uma mente acutilante e desconcertante. Era tido como um dos mais prometedores da sua geração, com uma visão disruptiva que captou a atenção da direção da estação televisiva onde, com apenas 20 e poucos anos, ganhou estatuto e nome. Reformulou a informação, adaptou-a aos novos dias da internet, tornou-a vibrante e apelativa enquanto escrupulosamente séria e fidedigna. Um milagreiro, portanto, numa era de desinformação e redes ditas sociais, onde tudo o que cai é peixe, mesmo garrafas de plástico descartadas e botas de borracha naufragadas. Não captou apenas a atenção dos superiores, nem da concorrência – que amiúde o assediava com salários tentadores e cargos sonantes –, como cativou a atenção de Zulmira, a jovem estrela da estação, pivot do jornal do meio-dia. Quando começaram a andar, ninguém verdadeiramente se escandalizou. Era previsível, quase óbvio. Eram o antecipado par romântico de um qualquer filme de sábado à tarde. Dois meteoritos em ascensão. Ambos jovens, atraentes, talentosos, temerários e desafiadores das convenções. Eram o protótipo do guião de telenovelas, com tudo para dar certo e futuros auspiciosos. Todavia, sabemos como os argumentos se podem enredar. O seu não era exceção, e também isso não era original.
Por utilizar um apelido diferente e manter a sua vida privada no maior secretismo, o que poucos sabiam é que Zulmira era filha do ‘patrão’ e por patrão entenda-se o dono da estação, ele próprio uma personagem discreta, como verdadeiramente são os ricos de verdade, e sobre o qual pouco ou nada se sabia publicamente. Timóteo soube-o já a meio do noivado. Sentiu-se traído. Entendeu que Zulmira não lhe deveria ter omitido, de forma tão rebuscada e consistente, a identidade do pai. Quando o conheceu, partiu do princípio de que era o Sr. Casimiro, apelido que Zulmira adotara profissionalmente, mas que era apenas um dos seus seis apelidos. Casimiro, ainda por cima, tem o seu lado rústico, banal, em nada denunciador de pertencer a uma cadeia de pares de sobrenomes bem mais sonantes e hifenizados. Acontece que o Sr. Casimiro não tardou a apresentar todas as suas ‘credenciais’, quando entendeu que teria de ter a ‘tal’ conversa com um dos futuros herdeiros da sua fortuna, já que a filha tinha optado pelo convénio de partilha total de bens, como ele tanto desaconselhava. Timóteo estava entre a espada do amor profundo que sentia por Zulmira, longe da qual não se imaginava, sequer, a existir, e a assustadora parede que era o império do futuro sogro. Sentia que estava a entrar para uma organização mafiosa e que acabava de beijar a mão ao padrinho.
O casamento entre Timóteo e Zulmira avançou, que o amor é tempestivo e resiliente, e com ele veio a público a relação de parentesco entre a pivot – agora já do prestigiado jornal da noite – e o patrão daquilo tudo. As pessoas são mazinhas, as invejas pululam em certos meios mais competitivo, como é a televisão, e o povão adora um bom cliché. Tudo junto e Timóteo não tardou a ser o arrivista ambicioso e matreiro que subiu na vida e na estação à conta de um bem estudado casamento com a filha do patrão. Quem sabia a verdade preferiu ignorá-la e quem a desconhecia mostrou-se chocado com o calculismo de Timóteo. Que grande sonso. Tanta genialidade era, afinal, fruto de favoritismos e subidas na horizontal.
Veio o desdém, sempre muito bem embrulhado em falsidade, porque, a bem do cliché, sendo genro do patrão, também era um pouco patrão por antecipação. Talvez tudo fosse fruto da insegurança, desconfiança e descontentamento que Timóteo sentia em relação à sua própria situação, mas a verdade é apenas aquilo em que acreditamos, pelo que essa era a verdade para Timóteo. Tinha-se tornado num miserável chavão, que já mal lhe permitia distinguir os amigos de verdade, dos amigos por interesse. Tentou recuperar contactos com amigos contemporâneos do seu casaco de tweed em segunda mão e colegas de faculdade, com quem dividira aflições e partilhara cábulas, mas a sensação era sempre a mesma. Sentia que o olhavam por aquilo que tinha conseguido e não por aquilo que ele era, sendo que o que tinha conseguido na vida acabava de perder todo o mérito nas mãos de um casamento que deveria ser a raiz da sua maior felicidade.
Nada disto deveria ter demasiada importância, ou tanta quanto aquela que Timóteo lhe atribuía, mas tudo dentro de si tinha mudado no dia em que na sua mente se alterou o apelido da mulher. Até o amor que sentia por Zulmira se ressentia dessa minoração, dessa sensação de que nada valia, pois todo o seu merecimento, valor, capacidade e mérito pessoais tinham descido bruscamente para zero na bolsa de valores sociais, onde um oportunista é apenas isso mesmo. Por conta do seu orgulho, todo o brilhantismo de Timóteo se canalizava diariamente para fazer valer o seu valor aos olhos dos outros. Tornou-se ainda mais brilhante e ousado, destemido e acutilante, confiando na sua acuidade intuitiva, arriscando a sua visão do mundo e acertando sempre. Acertar sempre não ajudava. Brilhar tanto tampouco. Era visto como estando ‘protegido’ por forças maiores que jamais o deixariam cair. Tudo aquilo que magicasse, daria certo e disso a família da mulher se encarregaria. Era essa a interpretação geral. Logo, era essa a leitura que importava a Timóteo.
Perante este cenário, tornou-se evidente para Timóteo qual era o seu único caminho. A singular saída. Divorciou-se de Zulmira, prescindindo de toda a fortuna. Despediu-se da estação, sem negociar uma saída choruda. Vestiu o seu casaco de tweed em segunda mão e foi tentar de novo a sorte. Não podia viver na pele de um cliché socialmente aberrante. Questões de primeiro mundo, bizarrias de ricos e privilegiados, dirão alguns. Uma questão de honra e dignidade, preferirão os mais românticos. Para Timóteo, era apenas uma questão de sobrevivência, identidade e amor-próprio. Um luxo, ainda assim.
Moral da história:
Um clássico casaco de tweed em segunda mão dá muito jeito, e em quase qualquer ocasião, mas é facultativo. Por fim, todos fugimos de qualquer coisa, mas é bom que saibamos do que fugimos e porque fugimos.
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