Branca
Branca chorou de felicidade ao saber que tinha dado à luz uma rapariga. Uma fêmea. Um rosto que, com sorte, com um ligeiro bafo de Deus – único que tudo vê e tudo sabe –não lançaria suspeitas sobre a sua ‘bastardaria’. Traços femininos, que mais dificilmente se assemelhariam aos do sangue paterno. O penteado certo, a indelével marca da pobreza e a dose exata de amor afastá-la-iam da sua verdade biológica. Da sua cruel verdade biológica. Do cruel estigma que poderia arruinar, logo ali, no pobre berço, o resto da sua vida. O marido disfarçou como pôde – e não pôde muito – o desapontamento. Para primeiro filho, ansiava por um macho, o tradicional herdeiro masculino, o clássico varão, que o ajudasse nas lides da terra e da vida. Um filho a quem passar o hábito do vinho, da sueca e dos rudimentos dos seus ofícios. Tinha-se casado com um bom homem. Um filho da terra, homem trabalhador e honesto, em quem todos depositavam confiança e amizade. Um marido de quem gostava e que dela gostava. Respeitavam-se. Formavam uma parelha segura. Fiável. Respeitada. Ambos filhos de boa gente. Apelidos de todos conhecidos. O primeiro filho, aguardava-se, nem se sabe bem porquê, que fosse homem. Para dar continuidade ao nome e assegurar os parcos bens já conseguidos – uma pequena casa com alguma terra em volta, onde se cultivava o que ia para a mesa e se criavam duas preciosas cabras, para o leite e para o cabrito da Páscoa. Um bom filho, trabalhador, esperto e com ambição, podia mesmo ajudar a família a duplicar tudo isto. Mas veio uma rapariga. Uma fêmea e isso foi dádiva divina. Um pedido expresso de Branca, que sabia, tal como Deus, em quem depositava toda a sua fé, que aquela criança, a sua criança, a sua primeira filha, não seria jamais a primeira filha do marido.
– Meu Deus, atendei ao meu pedido. Uma menina não será a cara escarrapachada do pai. Pode até vir a puxar mais a mim. Fazei, Senhor, que seja uma menina. Não poderia viver se nascesse um rapaz que saísse ao pai. Que andasse, falasse e se parecesse com o verdadeiro pai. Isso mataria o meu J’aquim. Por favor, Deus meu, olhai por mim e por esta criança. Que nasça fêmea.
Caso o pedido não chegasse ao destinatário e por aí ficasse retido na caixa do correio divino, prometeu ainda uma caminhada de joelhos em torno da Cova da Iria, que Nossa Senhora, sendo mulher e Virgem Santíssima, talvez compreendesse melhor a sua situação, pois também é conhecida a ira divina. Precisava de compreensão e compaixão.
Lá veio a rapariga, e por isso Branca chorou. De felicidade e alívio, muito embora nada disso apagasse a vergonha, a humilhação e, principalmente, a raiva interiores de uma desgraça que para sempre guardaria no mais profundo dos seus silêncios. No mais recôndito lugar da sua alma. Um sepulcro de onde jurou que jamais sairia. Lá foi paga a promessa. Ao seu Joaquim disse que tinham de agradecer a bênção de um filho, ainda que fêmea, e a graça de ter nascido saudável e forte. Seria a cuidadora de ambos, quando já velhotes, precisassem de ajuda. “Uma filha é uma filha”, repetia Branca, sempre entre a felicidade e a desolação. Joaquim cedo se rendeu aos encantos daquele pequeno ser rosado e determinado. A miúda era “esperta que nem um alho”, orgulhava-se. Devia sair à mãe, a quem Joaquim reconhecia todos os méritos e predicados. Uma mulher de armas, astuta, sensata e trabalhadora como poucas. Logo que abriu a fábrica têxtil na aldeia, foi das primeiras na fila, a voluntariar-se para aprender o ofício, para contribuir e ser útil, para levar um dinheiro extra para casa. Uma casa que era um primor, de arranjo e asseio. Das mais faladas lá na terra. Com coisas que só se viam nas revistas.
Branca era criativa, uma mulher como poucas. Isto para não falar nas suas carnes brancas, roliças e apetitosas. Joaquim bem via como, mesmo agora, já casada e mãe de uma criança, alguns olhares se lhe lançavam, quando se julgavam inobservados. Joaquim nada receava. Sabia bem o calibre da mulher. Ainda que sendo uma vida de trabalho, Joaquim achava que a sua era uma vida santa. Tinha Branca do seu lado e agora também a pequena Aurora. Uma endiabrada fedelha, que era a cara chapada da mãe. Um encanto.
Depois de Aurora nascer, Branca anunciou que não poderia voltar para a fábrica, tinha agora de educar a filha, cuidar da casa, da horta e dos animais, e que mais valia serem um pouco mais pobres, mas apostarem na educação e bem-estar da família, a qual, seguramente não tardaria a aumentar. Joaquim sentiu um certo alívio, por ter partido de Branca a ideia, uma vez que nunca lhe agradou muito a ideia de ter a mulher na fábrica o dia todo, a lidar com gente de outras terreolas, alguns finórios e técnicos que vinham de fora… Não quis enfrentar Branca, até porque um dinheiro extra nunca era demais, mas o peso que Branca lhe tirou de cima equivalia a muitos alqueires, que deixavam, agora, de pesar nos alforges do seu coração.
Branca voltou a agradecer a Nossa Senhora, pelo modo como o seu J’aquim aceitou a sua decisão de abandonar a fábrica. Sem suspeitas, sem recriminações, sem lamentos financeiros. Apenas compreensão e carinho. Que sim, que deveria descansar, além de que já era trabalho de sobra tratar da casa, da janta e do almoço diários e ainda, a partir de agora, dos filhos. No plural, pois era óbvio que não queriam apenas um, exceto se fosse essa a vontade de Deus, se é que Deus tinha tempo para se dedicar às questões de alcova de cada um dos fiéis. Parecia mesmo que Deus não se interessava por isso, ao contrário do tarado do padre da aldeia. Joaquim temia a blasfémia, e detestaria estar a ser injusto, mas a verdade dentro do seu peito era só uma: nunca lhe agradou a forma como o padre Vitorino se insinuava, todo ele inocências e aves-marias, entre as mulheres da aldeia. O homem, padre ou não, era um tarado, muito pouco moldado à imagem que tinha de Deus.
Branca não podia permitir que voltassem a forçá-la, no meio da sala das bobines de lã, já em fio, nem por detrás de uma máquina tecedeira, nem… Nunca mais. Os seus filhos seriam todos do seu J’aquim. Lamentou não poder falar. Não lhe ter sido permitido gritar. Quem acreditaria que não fora ela a insinuar-se, em troca de uma promoção ou favor financeiro, em busca de um filho bastardo com que chantagear vida fora, ou apenas porque era bonita e provocadora… O mundo era perverso, encontraria um milhão de razões para a culpar, para a incriminar, para a ostracizar, para humilhar o marido. Isso seria o mais doloroso. Ele seria o cabrão da aldeia, com uma filha bastarda a quem jamais amaria, uma mulher que não voltaria a respeitar… Branca não poderia, jamais, ter gritado perante a ameaça, nem perante a consumação e menos ainda depois da violação. A vergonha, infelizmente, não obstante a sua inocência, ódio e repúdio, recairia apenas sobre si e a sua família. Mancharia o nome dos seus pais e o do marido. Acabaria por morrer de vergonha ou loucura. De mãos atadas, restava-lhe ser inteligente. Sair da forma menos dolorosa possível, isto para quem acredita que existe tal saída, e tentar ser feliz. Se tivesse gritado durante, seria vergonhoso, um escândalo e, mesmo que o seu grito impedisse a violação, para sempre persistiria a dúvida, a incerteza acerca da sua inocência, ou mesmo sobre a consumação, ou não, do ato. Isso mataria o seu casamento, senão mesmo o marido. Se contasse depois… Não havia propósito nisso. No mesmo momento em que, com o tecido da sua longa e rodada saia tentava, enojada e compulsivamente, limpar a baba peçonhenta daquele homem insignificante do meio das suas pernas, Branca decidiu que aquele filho seria do marido. Não sabe como, mas Branca soube que, pelo seu calendário biológico, e segundo aquilo que a mãe e a avó lhe ensinaram sobre os ciclos femininos e da lua, Branca bem poderia ter engravidado.
Para obter indiscutíveis confirmações, durante semanas não permitiu avanços do marido, até ter certezas sobre aquela sua brutal suspeição. Estava mesmo grávida. Tinha um bastardo na barriga. Mas já o amava, porque Branca decidiu que era seu e do seu J’aquim. Que a vida e o destino podiam unir forças para tentar vergá-la, mas que a sua felicidade teria sempre de depender de si, da sua vontade e das suas ações. Decidiu que não a derrubariam. Apenas lhe moeu lá dentro, até ao dia em que morreu, não poder haver justiça. Se falasse, morreria, não falando, algo lá dentro a minaria. Cabia-lhe a si, não deixar que aquele cancro vingasse. Não deixou. Quer dizer, nem sempre deixou. Ganhou a batalha, com breves reincidências, que logo ‘curava’ como sabia. Por vezes, ao longo dos anos, que nisso o tempo é soberano e sábio, havia dias em que, Branca jura que é verdade, nem se recordava que a sua Aurora, a sua adorada primogénita, era filha daquele grande estafermo. Era o cancro a entrar em remissão.
O que Branca não sabia é que o destino, quando teima num caminho, acaba sempre por levar a sua avante.
Aurora
Aurora era a cara da mãe. Ainda mais verdade seria dizer que era o corpo da mãe. Tinha-o herdado ainda com mais volúpia e torneamento. Com mais detalhe e delicadeza. Uma espécie de versão melhorada e refinada. Uma especiaria entre a doçaria tradicional. A mais vistosa e suculenta maçã do cesto. Encantadora. Adorável. Irresistível. Nunca a aldeia tinha visto criatura tão perfeita e doce. Bondosa e caridosa, parecia saída de um conto infantil, onde tudo é perfeição de beleza de um lado e maldade do outro. Pois Aurora representava o lado bom da humanidade, mas carregava demasiada carga sexual para ser apenas avaliada pela sua personalidade e esse é um peso extra na já penalizada vida quando personificada no feminino, quando portadora de útero. Uma mulher nunca é apenas aquilo que é, é, bem mais do que os homens, aquilo que aparenta, aquilo que se vê. E isso, no caso de Aurora, era aterradoramente belo e desejável.
A poucos dias de completar 15 anos, Aurora teve autorização paterna para ir trabalhar para a fábrica, como há muito pedia, seguindo sonhos de emancipação e logrando, para si, algo mais do que a mãe tinha alcançado na vida. Não queria apenas casar-se e ter filhos. Queria um emprego, independência e respeito profissional, tal como eram concedidos aos homens. Um desejo que não obtinha mais do que risos paternalistas, pois o povo de onde vinha não reconhecia tais sonhos no feminino. Inesperadamente, não obstante a admiração que sempre tivera pela maneira progressista, ainda que expressa de forma tímida e dissimulada, com que a mãe via o mundo, Aurora teve de combater a resistência materna. Branca insistia que precisava dela ainda em casa, para ajudar a tomar conta dos irmãos mais novos e auxiliar nas lides domésticas. Que a fábrica podia bem passar sem os seus anseios de modernidade. Que não passaria de uma operária mal paga, uma escrava do tear. Que poderia estudar um pouco mais, o quem, em nome da ambição, era mais inteligente.
– Mas até a mãe lá trabalhou, como pode, agora, ser contra? Não entendo!
Branca alegava que por lá ter trabalhado, sabia melhor do que ninguém aquilo que a esperava. Esteve quase a contar… Mas não podia. Como poderia agora confessar o inconfessável e logo a Aurora? Impossível. Voltou a calar. Voltaria a arrepender-se. O pai, que vivia sob o feitiço daquela primeira filha, de todos os outros tão diferente, confiando nas suas capacidades extra-pobreza de conceber a vida, e na sua destreza mental, anuiu. Que outro futuro, por aquelas bandas do que deixar a miúda ir para a fábrica? Também ele lá tinha ido parar, quando o número de filhos ultrapassou a capacidade financeira da família, cujo único sustento era, então, aquele que a terra permitia. Sabia, porém, como aquela decisão contrariava a boa da sua Branca.
– Ó mulher, o que te deu para contrariares, assim, a pequena? O trabalho não mata as pessoas, a falta dele, sim. Tu própria lá trabalhaste. É um trabalho muito digno, mesmo para uma mulher. É limpo e o dinheiro é certinho. Além disso, também lá estou, posso mantê-la debaixo de olho e protegê-la se necessário for, de alguma injustiça. Além disso, todos gostam na pequena. Vai tudo correr bem. Vê se te acalmas.
Branca podia ceder, não tinha como não o fazer, sem comprometer o seu segredo, mas acalmar-se não podia. Voltou o sobressalto ao seu inquieto coração. Era o cancro a dar sinais de que ainda tinha energia para fazer das suas.
Por essa altura, o engenheiro Ramires, de seu nome próprio Raimundo, tinha já assumido o controlo da fábrica. O velho Ramires lá continuava, mas o filho era agora quem comandava o rumo do negócio, cada vez mais rentável e modernizado. Por ter nascido praticamente na fábrica, onde cedo aprendeu tudo o que havia a saber, principalmente como domar e explorar os pobres e submissos trabalhadores, e principalmente a ‘vergar’ as trabalhadoras aos seus caprichos e crueldades de pequeno e intocável déspota. Foi na fábrica que começou a sua aprendizagem, bem como se iniciou sexualmente, no meio de um universo maioritariamente feminino e desprotegido. Elas não falavam. Tinham medo e o medo é a melhor e mais eficiente das armas. Era um medo que nem sequer lhes era incutido ou mencionado sob ameaça, era apenas algo que elas sentiam por conta própria. Vinha embrulhado em vergonha e humilhação, o que era triplamente mais eficiente. Um insuspeito bónus que não tardou a perceber. Os seus avanços e abusos não eram sequer comentados entre operárias. Elas calavam. Calavam os seus segredos e os das outras, mesmo que inconfessos, mesmo que secretos, mesmo que tornados mais ou menos óbvios. O silêncio era total.
Para um jovem mancebo, arrogante e mimado, completamente desprovido de princípios ou cavalheirismo, proprietário de uma empresa têxtil no interior, única fonte de emprego local, que domina todo o pequeno poder da vila, aquele era um pote de mel onde mergulhava o dedo sempre que lhe apetecia e mesmo quando não. Apenas porque sim. Porque podia e porque era apenas um verme. Ele era o senhor daquele pequeno e amedrontado feudo, detentor do estatuto de intocável. Era o pequeno poder em todo o seu esplendor.
Os homens andavam cegos pelo título de engenheiro, pelo muito que a fábrica lhes tinha dado e ainda pelo domínio austero que lhes era imposto. E porque um mau caráter sabe como manter todos na mão, Raimundo Ramires, não raras vezes, mascarava-se de alma bondosa, de homem de coração grande e, desviando a atenção da sua perversidade e iniquidade, facultava adiantamentos de ordenado, pagava uma ou outra operação urgente, dava uma palavrinha aqui e ali para que o filho de algum operário prosseguisse os estudos – mas nunca até à universidade, que a bondade e o financiamento têm limites e o que seria, se o filho de um pobretanas aparecesse na aldeia com título académico igual ao seu?! Era o fim do mundo como o conhecemos e todos gostam daquilo que melhor conhecem, pois é mais facilmente manietado. Assim, entre os operários, era visto como homem austero, mas justo, ainda que não lhe reconhecessem os mesmos méritos do pai, esse, sim, um verdadeiro senhor. Entre as operárias, porém, era temido e visto sem véus protetores ou outros. Aos olhos delas, ele era apenas um miserável, que se servia do seu poder para as vergar e violar. Mesmo sem palavras, as mulheres defendiam-se pela união. Andavam em grupos, temendo apenas as horas em que tinham de ir à casa de banho, já que as normas da fábrica não permitiam idas em conjunto, até para evitar poucas-vergonhas entre operários. Veja-se a nojenta hipocrisia do miserável Ramires filho.
Foi este o ambiente que Aurora foi encontrar quando se juntou ao contingente feminino que tecia agruras no único ganha-pão das redondezas. Escusado será dizer que Aurora não tardou a ser vista e revista pelo crápula do patrão. Se do pai tinha recebido como única recomendação, ser trabalhadora e humilde, das colegas recebeu um enigmático conselho: “Não deixes que ele te apanhe!” Entendeu o que lhe diziam, mas sorriu, pois acreditava que jamais se submeteria a algo que não fosse da sua vontade. Como a ingénua criança estava enganada. Os primeiros olhares lânguidos de Ramires lançaram sobre a juventude de Aurora a louca possibilidade de poder vir a ser, um dia, a senhora Ramires. Um breve pensamento que não chegou a ganhar volume de frase na sua mente, pois havia algo de reptiliano naquela criatura. Era um homenzinho execrável, que salivava enquanto olhava bainhas de saia ou tentava adivinhar o que estava sob os botões cerrados até ao pescoço de uma bata de mulher. Era a tal ponto nojento, que mesmo a inocente juventude de Aurora entendia que eram águas lodacentas, infestadas de doença. Quanto mais o desprezava, mais o homem se tornava visível nos seus turnos, junto à sua máquina, tentando roçar-lhe as mãos, passando-lhe a mão pela cintura… Aurora sorria interiormente. Aquele verme jamais teria a menor hipótese. Matá-lo-ia antes que ele tentasse mais.
Ramires era má pessoa, o mais sórdido exemplar de ser humano alguma vez forjado, concebido, seguramente, em dia de folga do patrão divino. Daquele género de homenzinho que tira prazer em domar os mais fracos, no seu entender apenas seres inferiores, que lhe deviam prestar vassalagem. Um crápula misógino, quem sabe até, um homossexual recalcado, cujos assomos de masculinidade se resumem em forçar mulheres sem alternativa. Ramires, porém, não era desprovido de cérebro e anos de violência e terrorismo sobre as funcionárias da fábrica tinham-lhe ensinado algo sobre a natureza humana. Principalmente a dos pobres. Assim, um dia, Aurora é chamada ao escritório de Raimundo Ramires, o senhor engenheiro, como fazia questão que o tratassem. Para melhor delimitar fronteiras. Aurora foi. Segura e determinada e espetar-lhe um par de bofetadas, caso o nojento tentasse algo. Mas, pobre miúda, não ia preparada para o que se seguiu. Ramires não a forçou fisicamente. Fez bem pior.
Começou por lhe dizer o quanto ela tinha evoluído e quão boa operária era. Tomara ele que também o pai, Joaquim, fosse tão inteligente quanto ela, pois receava que o pai de Aurora já estivesse na linha descendente, sem grande capacidade de aprendizagem ou evolução. Que talvez se visse obrigado a despedi-lo, por conta da sua incapacidade de adaptação à nova maquinaria, que os seus dotes de mecânico já não eram compatíveis com o novo equipamento… Que entendia como isso seria penoso para a família, afinal, sete filhos são um encargo muito substantivo… Que estava ali, precisamente para falar com ela e tentar perceber de que forma poderiam solucionar um desfecho feliz para todos. Que só desejava ajudar… Que talvez pudesse poupar o pai, tentar uma nova formação profissional, para que Joaquim acompanhasse a passada da empresa. Que bastava uma palavra sua para que os irmãos não passassem de ano, já que a diretora da escola era sua prima direita… Que tinha andado a ver a escritura do terreno onde estava a casa dos pais de Aurora e que uma parte ainda estava contemplada na área da empresa, que talvez um desapropriamento fosse piorar ainda mais a vida de todos… Ele não forçou fisicamente Aurora. Mas Aurora foi fisicamente violentada. A sua alma foi abusada e ofuscado o brilho dos seus olhos. Uma rotina macabra que apenas teve fim quando Aurora informou que estava grávida.
Aurora tinha-se precavido. Sabia o risco que corria e deixou-se apaixonar-se por um amigo de infância, que nunca teve olhos para outra rapariga que não a bela e esbelta Aurora. Seria dele o filho que trazia na barriga. Informaram-se os pais. O que poderia ser uma boanova, foi apreciado através de um mar de lágrimas e uma espessa cortina de terror por Branca, a quem Aurora tranquilizou. Sabia que uma palavra e poderia ser o fim da sua família. Para onde iriam todos? E os seus irmãos, ainda tão pequenos e necessitados, principalmente de comida e oportunidades? Aurora calou. Também ela calou. Desculpou-se. Um descuido de namorados. Um erro de cálculo. Branca aceitou. Como não aceitar ou perdoar? Era amor, acreditou. Preparou-se o casamento.
Clara
Clara nasceu com pelo na venta. Durante o primeiro mês de vida gritou dia e noite. Foi preciso levá-la a um curandeiro na Galiza, que lá conseguiu acalmar aquilo que lhe ia por dentro. Inquietação. Revolta e algo mais. Um qualquer entendido poderia apontar a consanguinidade como responsável por uma persistente ansiedade. Mas o mundo continuava demasiado pequeno naquele pedaço de terra, para que Clara fosse cabalmente compreendida. Os seus sonhos, desejos e irreverências eram vistos apenas como excentricidades próprias da juventude. “Uma força da Natureza”, diziam os pais. Uma voracidade nova na família, um olhar acutilante e a mesma beleza da mãe e da avó materna. Uma linhagem de mulheres diferente, mas não estranha naquela família, pelo que, dentro da estranheza, tudo era normal. Nem de outra forma se podia ver a coisa, já que o fora do normal é marginalizado e a aldeia continuava um espaço demasiado ínfimo para lados de fora. Tudo foi assimilado. Clara tornou-se adolescente numa altura em que a indústria têxtil iniciava o seu abrupto declínio. Nela tinham ganhado a vida os pais e o avô materno. Nela se imaginava a trabalhar toda a mão de obra jovem da aldeia. Mas era um mundo em fim de ciclo e Clara, que sobre isso nada sabia, não era, de resto, tão inteligente quanto as suas ascendentes maternas, detestava tudo nele. O cheiro da lã, as artrites da mãe, a alergia do pai e a poluição no rio. Odiava ainda o pespinhento e patético engenheiro e os seus carros ridículos. Chamava-lhe ‘o carequita’, o que ora divertia ora enervava a mãe.
– Que homenzinho patético. A olhar as mulheres da aldeia como se fossem o seu rebanho. Com ares de superioridade. Apetece-me dizer-lhe quão gay ele é. Suponho mesmo que devia amantizar-se com o padre Inácio. Era o par perfeito. Só mesmo dois idiotas para se entenderem.
O pai não sabia onde é que Clara ia engendrar aqueles guiões de novela, mas Aurora não comentava. Sabia que havia argumentos reais bem mais estapafúrdios e dores que não contemplavam finais felizes. Ficava a remoer em algumas dessas coisas que a invenção de Clara produzia para se regozijar. Seria uma suave vingança divina, se Raimundo Ramires acabasse desmascarado na cama do padre. O que seria!? Depois, agarrava no molho das couves e distraía-se a tentar obter o caldo verde mais fino da história do caldo verde. A cabeça tem de se ocupar com coisas importantes, pensava e não com disparates, além de que as dificuldades financeiras da família se agudizavam a cada dia que passava. Com a fábrica a dar início a mais um processo de despedimentos, Aurora temia que a pequena e patética mercearia, que ela e o marido mantinham agora com enorme esforço, fosse das primeiras a sofrer com a crise, pois muita gente teria de abandonar a aldeia em busca de trabalho, além de que a abertura de um hipermercado na vila, não longe dali, oferecia preços que não admitiam concorrência. Clara pouco se importava com esse tipo de assuntos, vivia numa espécie de inconsciência no que às coisas reais diz respeito, mas não conseguia ver a mãe aflita, a esconder lágrimas pelos cantos da casa. Um dia, tropeçou no engenheiro ‘carequita’, que a olhou de alto a baixo, com olhares de gulodice. Riu com uma vontade que nem ela compreendia bem e disse-lhe que precisava de emprego. Nada diretamente a ver com a tecelagem, antes um lugar no escritório. Também não podia ser a tempo inteiro, pois aborrecia-se com facilidade. Embevecido com a beleza de Clara, Raimundo a tudo disse que sim. Sentia por ela algo diferente de tudo o resto que alguma vez sentiu por uma mulher. Colocou toda a sua vida à disposição da jovem. Já não era tanto quanto outrora, mas claro que era ainda muito. Bastante. Uma enormidade para Clara. O homem enojava-a, mas se casasse com ele, podia resolver todos os problemas da sua pobre família. A avó poderia ser operada às cataratas, já que, a avaliar pela lista de espera do Serviço Nacional de Saúde, o mais certo seria morrer, cega, antes de ser chamada ao bloco operatório. O pai poderia pagar a hipoteca da casa e tornar super o seu nanomercado… Porque não? Era um velho. Nem sequer teriam de ter sexo, ou teriam algo que a ele pareceria sexo, que os velhotes são fáceis de contentar. Clara não era inteligente, mas de burra nada tinha, principalmente em assuntos de sexo, que prematuramente despertaram o seu interesse. Se os pais sonhassem tudo o que ela já sabia e já tinha experimentado, iriam de joelhos a Lurdes.
Com este plano em mente, não tardou a enrolar o velho senhor engenheiro e tratou de ir preparando a família. Afinal, o homem era mais velho do que o pai de Clara. Clara jamais esqueceu o terror nos olhos da mãe. De verdes, tornaram-se pretos e jamais voltaram à cor original, mantendo-se obstinadamente naquela espécie de luto sombrio. Aurora não podia calar mais. Calculando o fim do dia de trabalho, para evitar encontros indesejados com algum trabalhador, rumou ao escritório que Ramires ainda ocupava na fábrica, o mesmo onde um dia se voluntariou para que ele não despedisse o seu pai nem se vingasse nos irmãos. O mesmo onde inesperadamente deu de caras com a mãe, que de lá saía, praticamente às cegas, mas como se conhecesse de cor os cantos à casa. Branca tateava a porta, nem percebeu a presença de alguém que já começava a subir as escadas. Com voz firme e segura, dizia ainda ao engenheiro:
– Aurora é sua filha, o que faz de Clara sua neta. Mato-o antes de ter tempo de chegar ao altar e dizer ‘sim’.
Moral da História: Há histórias bem mais felizes do que esta, mas não são reais, são apenas da carochinha.
Nem todas as histórias felizes são histórias da carochinha e nem todas as histórias tristes são boas.
Mas essa é,real e cru, você tem uma ótima fluência pra escrita gostei.
Muito obrigada Monique. Uma certa leveza, loucura e humor ajudam a ‘bordar’ a realidade e a abrir alguns sorrisos, mesmo nos momentos mais dramáticos. A Laura desta história, é uma dessas raridades absurdas.