Não se tinha conseguido esquivar. Há mais de dez anos, desde que a avó tinha ficado viúva, mas muito alegre, diga-se em abono de certa verdade, que todas as quintas-feiras almoçava com ela e esta semana não seria exceção. O único problema é que Javier, o amigo madrileno, só estaria em Lisboa nesse mesmo dia e queriam muito rever-se.
– Qual o problema de almoçarmos os três?, tinha sido a resposta-sugestão, tanto de Javier como da avó. De facto, perante a concordância dos envolvidos, não havia real entrave a que tal acontecesse, até porque a avó era uma excelente companhia, sem a maioria dos tiques ou extemporaneidades próprias de tantos idosos. Era daquelas pessoas sem saudosismos ou que fixavam o ‘seu tempo’ num passado qualquer, assumindo que todo o tempo que vivia era seu por igual, o que a tornava um de nós, e por nós entendam-se adultos na casa dos 30 anos. Sem exageros, a avó era bem mais contemporânea do que ela própria em demasiados momentos e circunstâncias para que se recordasse sequer da diferença de idades que as separava. Tinha perfis e uma horda de seguidores em todas as redes sociais, marcava encontros com indivíduos do sexo oposto pela internet – mais vezes do que a família considerava “adequado” –, renovava o guarda-roupa com mais assiduidade do que qualquer uma das netas, participava em workshops de tudo e mais alguma coisa… Noutros tempos, lá está, seria considerada uma velha gaiteira.
Ficou decidido. Quinta-feira, almoço com a avó e Javier. Bastava que estivesse atenta à avó, por causa daquele seu hábito embaraçoso de se deixar levar pela imaginação e de se recusar a usar qualquer tipo de filtro, nem mesmo no Instagram. Em família, este era um traço distintivo de enorme interesse e deveras hilariante, já que todos percebiam onde estavam os exageros, as mentiras e as provocações, e todos se divertiam com a sua colossal autoestima, mas perante um estranho… Quer dizer, Javier também não era propriamente um estranho. Também ele tinha os seus momentos e idiossincrasias – sempre cheio de si próprio e teimoso como poucos –, além de que tinha uma mente demasiado aberta e bem-humorada para se ressentir dos devaneios da sua avó. Estava agendado. Quinta-feira, almoço no Gregório.
À hora marcada, pontual como sempre, a avó surge, de braço dado com o seu chauffer e ostentando mais pelo de animal verdadeiro e animal print do que seria recomendado num único look, mas era precisamente graças à sua imagem extravagante que a avó tinha um majestático sucesso no Instagram, onde era uma espécie de vedeta, ou influencer, segundo entendia. “Tudo se pode misturar, desde que se tenha graça.” Graça no sentido de elegância, de classe, de graciosidade, e não de humor, mas a verdade é que o visual da sua avó nunca andava longe de uma boa piada estética. Tudo junto, e ainda que desconcertante ao primeiro vislumbre, era maravilhoso! Uma nota em falso numa garrida partitura. Um desconcerto que ganhava vida e tornava tudo absurdamente harmonioso. Para não variar, tudo isso e algo mais estava patente no coordenado eleito para o almoço desta quinta. Gregório veio recebê-las à porta, ainda a tempo de ouvir as recomendações da avó para o jovem motorista:
– Querido, aproveite e leve uma miúda gira para um bom hotel que o meio do dia não serve apenas para almoçar. Gregório, querido (para a avó todos eram genuinamente queridos, já que era uma fã confessa de pessoas, vá-se lá saber porquê), está com um ar terrivelmente cansado. Conte lá, ou passou muito mal ou muito bem a noite. Qual delas é verdade?
Gregório, além de poder de encaixe era um dos muitos fãs da avó, por quem ainda parecia ter uma paixoneta, e que tudo aceitava com fair play e algum deleite. “Não fosse uma alheira de caça mal confecionada e seria ele o teu avô, minha querida. Mas não parava de vomitar, pelo que coito estava fora de questão.” Esta uma tirada recorrente da avó, sempre que marcavam mesa no Gregório. Uma pequena provocação que ainda hoje a fazia corar quando presenciada por outras pessoas, o que muito entretinha a avó, que, olhando-a nos olhos, diria depois algo do género:
– O sexo é a coisa mais banal do universo, praticado por todos a toda a hora, nem sei porque se perdem milénios e se escrevem bíblias a fingir o contrário, quando é evidente que não paramos de fornicar. Veja os milhões de pessoas que há no planeta! Só atestam aquilo que digo. Mas, pronto, brindemos à hipocrisia e aos bons costumes.
Gregório encaminhou-as para a mesa do costume, onde já respirava uma garrafa de vinho tinto e sentou-se com a avó que estava determinada a saber o que tinha o pobre homem feito na noite anterior e, de preferência, com quem. Aproveitou para ir à casa de banho. Não via Javier há uma eternidade e queria estar no seu melhor. Retirou um pequeno estojo de maquilhagem da mala e recapitulou aquela inquietante relação. Eram amigos, muitas vezes até bem mais do que isso, há anos e queria acreditar que apenas a distância física os impedia de ter algo mais. Quando regressou à mesa, deparou-se com a inesperada presença de Javier em amena e ininterrupta cavaqueira com a avó, não obstante ter marcado com ele meia hora depois, altura em que esperava que a energia da avó estivesse mais estabilizada. Alarmou-se com aquilo que lhe pareceu demasiada intimidade entre ambos. Os seus receios eram justificados.
– Então, a menina, minha neta preferida, tem sexo escaldante e esporádico há anos com um portento de homem como este e só me apresenta agro-betos das vindimas? Que lufada de ar fresco que é este jovem. Um artista, ainda por cima!
Sentiu que as faces lhe ardiam e que jamais o blush que acabara de pôr poderia ser suficiente para disfarçar, quanto mais ocultar, o seu real embaraço. Javier salvou a situação, com uma das suas calorosas risadas e um forte abraço, onde ela mergulhou por inteiro e com igual sinceridade.
– A tua avó é fenomenal. Uma preciosidade. Daria uma dúzia de personagens inspiradoras. Acho que estou apaixonado.
Javier falava-lhe ao ouvido num tom de voz divertido e, simultaneamente, entusiasmado. Só faltava que se lembrasse de a transformar numa personagem dos seus contos ou, pior, que a utilizasse num dos seus premiados documentários sobre pessoas reais, que lhe granjeavam fama nos festivais de cinema independente por toda a Europa.
– Deviam aproveitar a tarde para pôr o sexo em dia, que para a conversa terão muito tempo. Sabes que o Javier, afinal, vai ficar mais dias por cá?
Percebeu que a avó estava imparável e excitadíssima com o espanhol e verificou também que a garrafa de vinho já ia a meio. Até parece que se ausentara uma hora. Falavam os dois, Javier e a avó, como se se conhecessem há uma vida e fosse ela a estranha. Gregório surgiu em boa hora, com entradas que não vinham na lista e a ementa exclusiva, que ele próprio confecionava para clientes especiais. Interromperam-se intimidades e embaraços para que se elegessem os pratos. Acabou por ser Gregório a escolher por todos. Um prato picante e exótico para a avó, uma novidade da sua autoria para o expansivo Javier, e a sua especialidade para ela. Fizeram todos questão que Gregório almoçasse com eles, mas foi ela a mais insistente. Talvez assim a avó não monopolizasse Javier a quem parecia decidida a contar todos os segredos da neta preferida, como repetia sem parar, parecendo já que visava mais convencer-se a si própria do que Javier. Este delirava com a desenxabida avozinha e já se ‘amigavam’ em tudo quanto era rede social. Gregório aproveitava para se insinuar à sua musa, o que, a dada altura, pareceu que surtia efeito. Javier, porém, era demasiada distração para que a avó desse a devida atenção ao adorável dono do restaurante e premiado chef.
– Em Amesterdão provei de tudo, menos drogas, claro, essas, apenas traficava, e não se deve consumir aquilo que se tenta vender. É mau para o negócio. Em contrapartida, tirei mestrado em intimidades escabrosas, darling! Aquilo é gente muito disponível para o insólito e isso agrada-me. Pena que já tivesse 30 anos, altura em que já deveria estar a caminho do doutoramento. Uma perda de tempo é o que lhe digo.
– Avó, não precisa de nos tentar chocar. Todos sabemos como é vivida e extrovertida.
– Não seja púdica, minha querida. Além de que, se o adorável Javier vier a fazer parte da família – se não for pela sua mão, olhe que será pela minha –, é bom que saiba ao que vai.
Gregório ressentiu-se com este comentário e desculpou-se, dizendo que tinha de ir dar uma olhadela às perdizes.
– Acho que Gregório está encantado consigo.
– Javi, ele vive embeiçado por mim há décadas. Tal como vocês os dois, também nós cedemos à depravação de quando em vez. Mas é um homem demasiado obcecado. Eu preciso de alguém que me dê tempo e espaço. Não gosto de sufocos ou apertos. Para isso, já bastam os elevadores desta vida. Do que precisava mesmo era de um jovem como tu: demasiado ocupado para excessos românticos e suficientemente apaixonado e sexy para encontros escaldantes. No in between cada um teria as suas aventuras e vidas e assuntos. Seria maravilhoso, não acha?
– Oh, assim eu tivesse encantos suficientes para uma mulher como tu. Eu sou apenas um tipo banal.
– Já viu como banal e bacanal soam tão ao mesmo?
Aquilo já roçava o mau gosto e não entendia como é que Javier continuava vidrado na avó, cada vez mais envolvido naquela ramificação de abusivos disparates. Apetecia-lhe intervir, passar ela a conduzir a conversa, mas sabia que não tinha estofo para domar a avó. Ninguém tinha.
– Certa vez eu e o meu marido, convencidos de que se tratava de um grupo de swing acabámos, sem saber como, num mega bacanal, ali para os lados de Barcelona. Uma coisa louca. Mas não nos apaixonámos pela coisa. Uma questão de higiene. Sabe, Javi? Olhávamos para todos aqueles corpos nus, uns dentro dos outros e… até era excitante, mas a questão da higiene interpunha-se a toda a hora. Acabámos enrolados apenas os dois numa cena de sexo cinematográfico na gélida garrafeira da mansão, onde ficámos trancados até que um dos empregados teve de repor o stock de vinho. Aproveitámos e saímos de mansinho. Apesar do nojo daquele odor de corpos alheios, o que nos divertimos. As saudades que eu tenho do avô. Nunca me entendi tão bem na cama com outro homem como com ele.
Gregório estava de volta com o opíparo repasto, servido com requintes de cinco estrelas – uma delas Michelin, diga-se em nome do rigor gastronómico. Javi estava nitidamente embriagado de felicidade com todo aquele ambiente, com as loucuras da avó, com a dedicação e mestria de Gregório, com o vinho e, estava em crer, também com o reencontro dos dois. Num certo momento, olhando-a nos olhos, ele pousa a mão no joelho dela e por lá fica com jeitos de familiaridade e de pertença. Soube-lhe bem. Já temia que a sua presença acabasse obliterada com a feérica figura da avó.
– A tua avó é o máximo. E tu estás um espanto. Nunca entendo como me consigo despedir de ti.
Talvez galvanizada com os apaixonados excessos da conversa e da boa mesa, deu por si a dizer-lhe.
– Não te despeças. Nunca mais.
Olharam-se fixamente. Pareciam parados no tempo. Ele beija-lhe a face. Ela cora, como sempre que é cortejada.
Quando regressam à conversa, a avó confidencia a Gregório que, desde que está viúva, só consegue ter orgasmos a solo. Que o psicanalista lhe diz que é a sua forma de luto, de guardar o marido num lugar único e inviolável que jamais outro homem poderá ocupar, que ninguém mais o poderá substituir.
– Claro que para saber isso não precisava de um mini-Freud. Percebi-o ainda jovem, mais jovem do que tu, minha querida, que o teu avô era único. Entre ele e o rei de Espanha, com quem privei bastante quando ele vivia no Estoril, o teu avô sempre levou a melhor. Poderia ter escolhido o outro, mas era o teu avô quem eu queria e nenhum outro, mesmo sem coroa. Hoje, aqui o adorável Javi seria meu súbdito. Faria tudo aquilo que eu lhe mandasse, não era Javi?
– Não precisa de coroa para me ordenar o que quiser.
– Ahahah. Ele é encantador, minha querida. A menina trate de o manter por perto que isto à distância só mesmo o controlo remoto da televisão e mesmo isso parece ter os dias contados. Agora basta bater palmas ou aceder ao telefone. Qualquer dia basta pensar na coisa que ela contece. Que bom que será. Principalmente se diversificarem as áreas…
A avó já navegava em endiabrada velocidade cruzeiro, esbracejando oara que Gregório lhe troxesse o jornal e lhe acendesse o cigarro e trouxesse mais vinho, e lá continuava a fascinar o sedutor espanhol. Um quase monólogo merecedor de Bravos e plateias de pé e flores…
Ninguém tinha dado pelas horas, mas já eram 15h30 quando o motorista vem avisar a avó de que tem hora marcada no spa do Ritz e isso era provavelmente o único compromisso que jamais desmarcaria. A avó e Javi despedem-se com beijos, abraços e muita ternura. Claro que a avó ia passando as mãos pelo tronco musculado do madrileno também para avaliar a sua ‘fibra’ e aproveitava, discretamente ou nem por isso, por ir piscando o olho à neta. Gregório acompanhou-a à porta e eles ficaram finalmente sós.
Talvez pela presença avassaladora da avó, que no meio de toda a sua loucura relativizava bem aquilo que importava na vida, talvez pelo vinho, ou, mais provavelmente, pelas sentidas saudades, decidiram passar os próximos dias juntos. Completamente juntos, sugeriu ele. Ela não corou, mas riu com os olhos. Ainda faltavam as sobremesas, que Gregório insistia que tinham de provar, pois tinha toda uma nova carta de doces, acabada de estrear. Percebendo o muito que queriam conversar e também por ter perdido bastante tempo neste almoço, Gregório regressa à cozinha e eles ficam sós.
– A tua avó é única. Há muito tempo que não conhecia ninguém tão genuíno, vibrante e inspirador. Mas ela mente descarada e compulsivamente, não é?
– Um pouco, sim. Sim, mente, claro que sim. Como percebeste?
– Aquela história de tráfico de droga em Amesterdão, do sexo, do rei, do bacanal…
– Mas tudo isso é verdade!
Javier torce o nariz em sinal de descrédito.
– Ela mente, mas curiosamente apenas nos detalhes. Tudo isso é verdade, mas rodeia as verdades de pequenas falsidades, vá-se lá saber porquê. Quando foi apanhada a traficar canábis não tinha 30 anos, acho que nem 20 teria. O meua avô, pai dela, ficou a dever favores a meio mundo diplomático, para que não ficasse com cadastro. E claro que consumia. Ainda hoje lhe encontro charros, perfeitamente enrolados, nas gavetas da cómoda. Nem sei porque se dá ao trabalho de mentir nas miudezas, quando não tem o menor pudor em contar tudo o resto. Quanto ao rei, ele já era bem casado quando se envolveram. Outra escandaleira que todos abafaram. Por sorte, conheceu o meu avô por essa altura e nunca mais pensou no rei.
– Não me vais dizer que a história do bacanal, afinal, também é verdade?
– Não toda. O bacanal não foi na Catalunha e sim na casa deles. Decidiram experimentar, mas depois não gostaram e trancaram-se na cave até que todos se fossem embora. Sempre foi assim que o meu avô contou a história aos filhos homens. E poupou-te ela aos escândalos com o Mick Jagger.
– O quê?! Espantoso!
– Desculpa os exageros dela, mas é a minha avó do coração e um refresco num mundo de falsidades. Mas ela tem esta capacidade inventiva…
– Incrível!
– O curioso é que me identifico muito com ela.
– Na parte dos bacanais ou das mentirinhas?
Ela sorriu. Mais uma vez não corou.
– Vais ter de ser tu a descobrir.
Moral da história:
Não deixe que a vida dos seus avós seja mais interessante do que a sua. Se deixar, não deixe de ser feliz na mesma.
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