Tinha tido a sorte de praticamente ter nascido órfã. Uma mais-valia para toda a vida. É sabido como é penoso assistir ao envelhecimento, à decrepitude, à perda de faculdades de gente que muito se ama. Vê-las, lenta e paulatinamente, a perder faculdades e capacidades, saúde e esperança é doloroso, já para não dizer dispendioso. Entre cuidados médicos e lares, exigências de assistência constantes, pesos na consciência, por se acreditar que não se está a fazer o suficiente, ou frustrações e raiva, por se sentir manipulado pelo engenho dos solitários anciãos. Conhecia bem a natureza humana e estava por demais a par de histórias tristes e até patéticas sobre o tema. Dos telefonemas alarmantes e fora de horas, mas absolutamente falsos, das noites mal dormidas por conta de idas às urgências com queixas de solidão aguda, de uns e outros, dos rancores crónicos entre pais e filhos. As pessoas são complexas e são-no proporcionalmente mais quanto melhor se conhecem. Quem odeia genuinamente alguém com quem se comunica apenas por SMS ou e-mail? Pode acontecer, mas as probabilidades são infinitamente menores. Quem pode querer assassinar uma simples voz ao telefone, exceto quando a voz é de um call center de uma operadora telefónica? Poder, pode, mas é mais ridículo. Uma vez olhos nos olhos e tudo se torna possível e, muitas vezes, até desejável. É só ver as capas dos jornais de cores mais garridas. “Pai mata filho com machado mal afiado após disputa de pires de caracóis.” “Filho sodomisa mãe de um amigo.” Um horror!

Todavia, sentia-se compelida a dizer que ‘praticamente’ tinha nascido órfã, porque não era uma verdade cabal. Não era sequer uma verdade verdadeira, mas era a sua. Decidira-se cedo pela orfandade, logo que a informaram de que a vida não era eterna. Todos morrem, disseram-lhe de forma abrupta, como se fosse algo com que se pudesse viver. Todos, todos, completamente todos? De que valia, então a falsa sensação de proteção de uma relação? De que valia o amor? Não, pensou. Isso não era para si. Antes órfã. Uma opção tomada em boa hora. Se não se tivesse ‘orfandado’ de livre e reiterada vontade, teria andado a toque de caixa de duas pessoas de outra geração, duas criaturas antigas que determinariam desde aquilo que comeria àquilo que seria quando fosse grande. Há até casos de “Pai viola filha por engano, achando que estava a violar a filha da amante”.

Quando fosse grande – mas não muito, nunca cresceu acima do metro e quarenta, dizem que por falta de uma boa, ou sequer razoável, ou mesmo existente, alimentação, mas, garantia, essa tinha sido outra das suas acertadas decisões –, seria mínima. O futuro estava no compacto, veja-se o caso dos CD, ships e microships… Os próprios carros e mesmo os vestidos. Tudo era mini. Nano. O futuro é minguante e ela seguiria o trend, ó se seguiria –, seria apenas tudo aquilo que desejasse. Nada mais do que isso. Estava a consegui-lo em toda a linha. Tinha tido a sorte de ser expulsa de todas as escolas que frequentara, por insistente falta de comparência e até de registos fidedignos em relação à sua existência, o que lhe deu total liberdade de ser apenas aquilo que sonhara ser: o primeiro ser humano voador da história. Estava prestes a consegui-lo, com asas alinhavadas e já costuradas e tudo, quando teve a sorte de aspirar antes à nobre arte de profissional das limpezas. Pensem só, jamais conseguirão eliminar o pó da superfície da Terra, pelo menos no nosso milénio, e mesmo depois de limpa, até uma casa desabitada se suja sem grande ajuda ou necessidade de tempo. Ou seja, há sempre necessidade, sempre enorme procura. A sujidade está na natureza das coisas e até dos homens, mas para limpar almas havia muitos padres e bordéis no mundo, sendo que sempre adorara arquitetura, mais do que de biologia ou sociologia. Eram-lhe esteticamente irresistíveis. As casas, pois claro.

By Nina Leen

Compreendeu isso quando teve a sorte de ingressar num gangue de bandidos e assaltantes, que tiravam partido da sua fraca figura, para a introduzir no mais ínfimo dos orifícios, como condutas de ar de esquentadores e contorcionismos que tais. Enquanto os pobres boçais salivavam com a descoberta de bens móveis, com particular predileção por joias, relógios e bric-à-brac que tal, a sua elevada sensibilidade apreciava o traçado arquitetónico, o design de interiores, o recorte e volumetria das peças… Não tardou a perceber que esse seria um ótimo caminho e cheio de futuro, como já ficou explicado.

Estava prestes a concretizar o seu sonho, o de se tornar profissional das limpezas profundas, não obstante a sofisticação e exigências profissionais que agora encriptam qualquer profissão. Solicitavam habilitações literárias – por sorte lia imenso, especialmente Sudoku e notas de penhora, não era uma qualquer iletrada, não senhor –; línguas estrangeiras – não se tinha cruzado com muitas, mas podia gabar-se de a todas elas ter dominado com arte –; cartas de recomendação – munira-se com as do banco, que davam conta de uma longa e conturbada relação que, ainda assim, conseguia manter viva e vibrante –; hobbies – adorava pintar as unhas e bordar o seu passado a ponto cruz e outras delicadezas da memória –; se tinha carta de condução –, felizmente tinha. Não era sua, mas de um tipo cuja casa tinha auxiliado a vazar e cujo rosto suscitara nela o maior enlevo, e trazia-a sempre consigo, não fosse ocorrer uma situação como a presente. Estava em plena condição de aspirar a qualquer emprego do mundo, principalmente no exigente, como é bom de perceber, mundo das limpezas domésticas ou empresariais, que a arquitetura das empresas e fábricas também a fascinavam. Tudo era filtrado por empresas de emprego, tudo muito profissional e bem organizado. Quando aguardava a sua vez, e na posse de toda a documentação preciosa atrás descrita, teve a sorte de lhe cair um pilar estrutural em cima, devido a uma falha qualquer nos planos de engenharia daquele edifício em plena capital do país, que lhe decepou uma perna. Apenas uma pensou. Não apenas ficou com a outra como ainda a brindaram com um subsídio estatal e ainda outro – pago sem ser declarado ao estado –, pela própria empresa.

Em troca, os ingénuos solicitaram apenas um autógrafo seu, num papelucho em que jurava pela saúde dos pais, de quem se orfandara, que jamais iria a tribunal. A que propósito lá iria, pensou? A não ser, por causa de algum dos assaltos. Mas ela era extremamente cuidadosa com impressões digitais, não obstante também ter um grande carinho estético pelo expressionismo. Talvez fosse melhor não assinar. Foi aí que triplicaram o valor da segunda pensão, um extra ‘fantasma’, com o qual vivia agora principescamente, num quarto com vista para os Prazeres, se bem que esteve indecisa entre uma outra pensão nas Necessidades. Nome que apelava mais ao seu lado prático. Todavia, Prazeres era tão mais poético que acabou por seduzi-la. Era uma mulher romântica e sensível, apenas isso. O único inconveniente é que não tinha elevador e a casa dos asseios era no final de um corredor onde não cabia a sua cadeira de rodas. Adorava a sua cadeira. Chamava-lhe, ternurentamente, a sua Binamite. Bina, de dois, que ela era ótima a matemática e geometria descritiva entre outras complexas disciplinas, e ‘namite’ por rimar com ‘vietnamite’, nome que se dá a alguém que nasceu no Laos, mas que vai muito ao Vietname, como leu algures. Para si, guardava a explicação mais pessoal e afetiva: era louca por asiáticos. Tinha estado noiva de um chinesito, mas teve de o abandonar quando ele lhe confessou que era obcecado por mulheres sem um dos membros inferiores. Primeiro, num ínfimo segundo, sentiu-se feliz e orgulhosa por ser detentora de tal peculiaridade, mas logo pensou: “E se perco a outra perna? A uma mulher vivida, com o peito feito para o mundo, muita coisa pode acontecer. E se a atração é pela choruda pensão de invalidez e não pela perna em falta? E se aparece por aí uma estúpida ainda com menos perna do que eu? Deixaria de ser especial, porque ele gosta é da perna ausente e não de mim.” Congratulou-se com a sua argúcia e refinada lógica aristotélica, sempre muito axiomática, e, com um ternurento xau xau, mandou o seu tacinha-de-arroz para o Hiper-China de onde tinha saído, por meia hora de intervalo, que os chineses são muito exigentes com os horários dos funcionários.

 

Preparava-se agora para dar as boas-vindas a uma prótese ultramoderna, uma oferta de um multimilionário benemérito a um anão necessitado, que acabaria por morrer de complicações várias, sendo a heroína uma delas. Isto, o milionário, que o anão está de boa saúde. Acontece que, por sorte, o anão cresceu já depois de adulto, quase dez centímetros – falava-se mesmo em milagre, mas estavam tão longe de Fátima que ela desconfiava de outra marosca qualquer, patrocinada por fármacos ou bruxaria –, tornando obsoleta a dita prótese ultramoderna. Tinha a sorte de frequentar um grupo de alcoólicos superamigos, onde, num intervalo para o café, conheceu melhor o primo do anão, que lhe falou da perna, a qual pediu ao seu ex-gangue que roubasse, antes que fosse parar a alguma criança carente. A vida é cheia de surpresas e ela continuava a apaixonar-se por cada uma delas. Era a sua capacidade de valorizar as pequenas grandes coisas da vida que a tornavam extremamente atraente. Era o que não se cansavam de lhe dizer os clientes do clube de strip onde era agora a atração principal. No varão, ela era um show que atraía os seres mais extraordinários do planeta. Foi aí que voltou a apaixonar-se. Por sorte, ele era um traficante de coca internacional, que a levou a correr mundo. Ficou por dentro do ‘narcotráfego’ e não tardou a ser um elo indispensável, transportando todo o tipo de estupefacientes na sua nova perna. Tinha nascido para aquilo. Não durou muito. Numa manhã, bafejada pela sorte, viu a sua perna escapar-lhe na boca de um cão polícia encantador, muito bem tratado, que devia ser toxicodependente, pois não permitia que vivalma chegasse perto da sua perna. Acabaram por devolver-lhe a prótese, que há gente séria na polícia, já a coca, nunca mais a viu. Queriam que fosse a tribunal, mas ela afiançou que a tal estava proibida, por conta de uma promessa antiga a um quase ex-patrão. Um caso de polícia que acabou nas primeiras páginas dos jornais.

Ficou famosa. Seguiram-se as televisões e, agora, um Reality Show teimava em contratá-la para seguir, a par e passo, a história da sua história. Cada segundo da sua existência. Mas não acertaram ponteiros, além de que na prisão, um mimo da arquitetura contemporânea, onde agora vivia – FI-NAL-MEN-TE com WC privado –, tinha montado um pequeno atelier de beleza, onde ganhava bom dinheiro no escadeado ímpar que o seu ligeiro coxear forçava e que era a sua marca de estilo, a sua assinatura pessoalíssima, e não podia estar sempre a receber visitas e a perder tempo a falar.

Por sorte, adoeceu gravemente. Questões respiratórias, demasiada humidade na cela, os vapores dos secadores… Era sério. Transferida para a enfermaria, torna-se objeto de desejo de um jovem recluso e decidem fugir. Por sorte, ele deixa-a para trás, apenas se tinha aproximado dela para lhe roubar as doses de morfina e outras drogas fortes a que ela tinha direito e que, uma vez lá fora, seriam uma ótima moeda de troca. Tanto melhor. O tipo acabou por se despistar, no carro de fuga que havia roubado para o efeito, e morrer. Do que ela se safara. Teve a oportunidade de perceber que não estava assim tão apaixonada quanto pensara inicialmente e tornou-se estupidamente óbvio o quão sortuda era. Claro que, privada das drogas que deveria ter andado a tomar, estava bem pior, o que seria ótimo quando quisessem fazer um filme ou escrever sobre a sua vida. Deus sempre tivera grande planos para ela. Era tudo, como tomava consciência nesse preciso momento, uma questão de sorte e de inteligência para dela tirar partido.

Partilhar