Que tonta que eu fui! Tão tonta! Na minha descontraída ignorância, acreditei piamente que Deus já tinha dado por terminados os Seus arrumos. Aqueles que varreram com vigores de fúria tantos recantos e armários de 2016. Que a casa estava finalmente em ordem. O pó limpo. O chão varrido e aspirado. Os cacos no lixo. O louceiro reorganizado. Todas as janelas lavadas. As madeiras tratadas. Que, na Sua majestosa forma de ver o mundo, tudo estava, por fim, em ordem. Que, a Seus olhos, nada mais havia para limpar ou lavar. Fui tão tonta, eu! Esqueci-me por completo que janeiro era ainda mês de limpezas e purificações. Altura para dar uma volta às gavetas, em busca de algo fora do sítio, mal dobrado ou a precisar de reparo. Eu não reparei. Ele sim. Eu esqueci-me. Ele não.
Melhor do que eu, a Doce e Terna Senhora sabia. E adivinhava outras coisas. Tantas outras coisas! Sabia, para já, que a sua mala estava pronta e que já começava a estar cansada de aguardar na estação. Já sentia frio e algum desalento por tão longa espera. Ter-se-iam esquecido de si? Impossível, pensava, sentada no banco em frente ao grande e antigo relógio, que andaria à volta do enorme mostrador, a dar horas ao desbarato talvez há tanto tempo quanto ela as observava. Talvez esteja apenas atrasado, queria acreditar. Ou será mesmo que se esqueceram de mim? Nem pensar. O bilhete estava comprado, apenas o tempo parecia um pouco baralhado. Falta de pilha no relógio? Ajeitou as mãos no colo, como sempre fazia, logo que tornou a verificar, uma vez mais, que as vezes nem sempre são em demasia, se estavam bem abotoados todos os botões do sobretudo, preto como tudo o resto que usava. Tudo menos o lenço de assoar, do mais puro e branco linho. Um lenço de mão dá sempre jeito, pensava, levando a mão ao bolso pela infinitésima vez, assegurando-se também, só mais uma vez, de que ele lá estava, para quando fizesse falta. Havia de fazer. Faz sempre. Ele lá estava.
Lá ao longe, ainda antes de qualquer um de nós ouvir ou conseguir vislumbrar fosse o que fosse no horizonte de dias feito, a Senhora sentiu o comboio a chegar, não foi? Estávamos todos surdos e cegos com os Natais e os fins de ano, e aquele enorme alívio de termos sobrevivido a um ano bizarro. Quase a sentirmo-nos mais vivos e alerta, sortudos e bem-fadados, sem percebermos quão dormentes ainda estávamos, quão frágeis e à mercê.
Que tonta e descuidada que eu fui, Doce e Terna Senhora. Não se incomoda que a trate por Senhora, espero!? Tudo aquilo que sempre me inspirou nunca me permitiu ousar qualquer outro trato. Mas bem que podia ser, simplesmente, Você. Você, porque é gente da minha gente e porque é gente que tanto amo. Mas algumas elevações que o amor, a admiração e essa outra coisa que dá pelo nome de estima nos impõem, acabam por eleger elas próprias as palavras certas, sem nos darem hipótese de escolha. Julgo que foi o que aconteceu entre nós, para quem o simples Você bastava. Na verdade, o nosso encontro era tão perfeito, quase sanguíneo, que até um Tu se impunha. Éramos dois perfeitos ‘tu’ na vida uma da outra não acha, Senhora? Estarei a abusar do sentimento que acredito nos unia? Tão perfeitos, a meu ver – estes nossos ‘tu’, quero eu dizer –, que sempre dispensaram palavras. As certas e as erradas. Apenas uma silenciosa comunhão. Silenciosa porque os afetos não necessitam de barulho. Nem sequer de sussurros.
Tudo aquilo que nos ligava parecia vir de uma outra esfera, afastado de gramáticas – ou qualquer outro tipo de regras formatadas – por galáxias de outras coisas. Tudo aquilo que nos ligava era de outra estirpe. De outra natureza. Eram ondas inaudíveis, laços invisíveis e nós impercetíveis. Nacos de conhecimento outro. Uma espécie de entendimento primordial. Ancestral. Aquele tipo de coisa instintiva, que nos poderia ligar sem surpresas caso tivéssemos a unir-nos um qualquer elo familiar. Qualquer coisa a ver com o ADN ou rendilhados de metafísica. Qualquer coisa que podia, na verdade, ter a ver com o facto real de ambas amarmos sem limites uma outra pessoa, uma mesma outra pessoa, num sossegado triângulo das Bermudas, no qual, afinal, ninguém se perde, todos nos encontramos. Um abraço apertado onde se vive desafogado, quente e confortável. Percebemo-lo desde logo. Desde sempre. Por isso, um Tu era mais do que adequado e, sinto, talvez até mais certo. Penso, Doce e Terna Senhora, que podemos mesmo inventar, aqui e agora, pois não teremos outros aqui e agora tão oportunos quanto este, uma coisa mais pessoal, mais nossa, mais feita à nossa medida e que una o nosso ‘Tu’ – mais próximo e aconchegante – ao ‘Senhora’, do qual jamais poderia prescindir. A tua nobre e esbanjadora simplicidade, a tua parca fortuna, o teu agir de medidas certas feito assim o impõe, assim o determina, e quando tal se verifica, não vamos nós, depois, começar para aqui a mexer com as palavras e os seus sentidos. O que me dizes, Doce e Terna Senhora? É perfeito, não é?
Levo a mão ao meu bolso, tal como Tu, Senhora, não apenas para garantir que também o meu lenço de mão lá está, o que se verifica, mas para o lançar ao ar, numa ondulação comandada já pelos soluços da saudade e pela mágoa dolorosa de me ter atrasado, para variar, e quando cheguei à estação, onde estava mais ou menos combinado que nos encontraríamos, o comboio já ir longe. Não assim tão longe quanto isso, mas longe o suficiente para perceber o ridículo, o despropósito e o desnecessário que seria correr atrás dele. Ninguém para um comboio assim, mais ainda hoje em dia, com tudo automatizado e computorizado. Apanhá-lo em andamento, seria apenas ridículo, já se vê. E de ridículo não gostas Tu, Doce e Terna Senhora. Tudo, mas mesmo tudo, na perfeita medida exata. Nem mais, nem menos. O que ia desde o número e tamanho de tachos necessários na cozinha, à inexistência de adereços para lá do que ficava bem, passando pela forma séria e grave como amavas, também ela sem artifícios, mas ainda assim numa demasia calorosa. Parece que é verdade: o que é de menos, não basta, e o que é demais não presta. Daí essa tua rara e bela elegância. Essa atroz singeleza que assomava o majestoso, o imperial. O derradeiro luxo. Chegava a ser assombrosa, essa pureza, esse requinte na medição, essa infalível calibragem. Como consegues, Doce e Terna Senhora? Como fazes? Queria tanto aprender mais sobre isso e sobre tantas outras coisas. É tão mais sóbria e elegante essa forma sossegada de amar. Tentarei despir-me dos exageros do meu bem-querer. Domar a fera com doçura, para que quando com ela passear, não possa jamais passar por embaraços. A seriedade fica bem no amor, parece que o torna mais puro, não achas Graciosa Senhora?!
Que dor e que estupidez não ter chegado mais cedo à estação. Aguardaríamos lado a lado, sentadas no banco que elegeste, por certo o mais indicado para se esperar por um comboio. Podíamos ficar apenas em silêncio, ou simplesmente ficaria a ouvir as tuas conversas, as tuas coisas, para ficar um pouco mais rica, afetivamente mais sábia. Um pouco mais cheia de ti. Que tonta que eu fui ao não verificar melhor as horas, ao perder tempo com a roupa e o cabelo, ao não encontrar a chave do carro na minha mala… O de sempre, para variar. Por isso, lanço agora o meu lenço de linho, como o teu, numa elegante dança do vento, na esperança de que o consigas ver pelo meio do nevoeiro que se abateu sobre os dias, no meio da neblina, cega e espessa, que tomou de assalto o universo na hora em que partiste e que terá sido a hora certa, porque sendo tua, seria atempada. Nem tarde, nem cedo demais. Já a humidade no ar, pareceu-me uma pequena nota de drama a que todos nos permitimos. Era uma espécie de choro tímido, mas consistente, sentido e denso, mas sem alaridos. Tal como gostarias que fosse. Nem mais, nem menos.
Que tonta que eu fui. Repeti-o vezes sem conta, sentada no banco da estação, que acreditei ter sido também o teu, enquanto olhava as árvores. Todas, sem exceção, despidas de qualquer vaidade. Tal como Tu, Doce e terna Senhora. Tal como tu. Terias gostado daquelas árvores. Das que já conhecias e das que nunca tiveram tal privilégio. Nobres. Sóbrias. Solenes. Na ponta dos seus galhos, magia. Pequenos glóbulos de orvalho iluminado, como alvéolos de luz e de vida num peito ansioso. Brilhavam na noite. Brilhavam para ti, Doce e Terna Senhora.
Na minha pobre imitação de Deus, percebo que também eu tenho umas arrumações para fazer. Antes de tudo, tenho de pôr os olhos e a cara a secar. Dar uma sacudidela na alma, desamarrotar este peito e arejar o coração. Há poeiras tóxicas. Gosto de me embriagar nelas durante um tempo, purgando tudo de uma vez. Antes do desmaio, mesmo, mesmo antes da insensibilidade, aceito que é hora de outras coisas. De outras estações, de outros apeadeiros, de outros afazeres. Sei que compreendes. Não tem dúvida, que sim, que me entendes. Depois de ajeitar tudo o que vai cá por dentro, quero voltar a sentir-me grata. Principalmente, pelo privilégio do convívio, pelo presente inesperado que foi o teu carinho e até pela estação de comboios onde me sento a acenar-te, ainda. Não quero reaver a parte de mim que foi contigo, aquilo que damos não nos faz falta – diz-mo a minha mãe que sabe outro tanto quanto tu –, pelo que fico feliz que o tenhas levado. O coração volta a crescer, não te apoquentes. Não tem dúvida. O pior de tudo não é perdermos alguém que amamos. O pior mesmo, é perdermos alguém que nos ama. Acredito, Terna e Doce Senhora – vê se concordas –, que tudo e todos são substituíveis. Calma, ainda não acabei. Houve a minha teoria até ao fim. Podemos sempre fazer o nosso coração crescer mais um pouco, e mais e mais e amar mais e mais pessoas, e até amar melhor. Mais e melhor até do que algumas que já julgávamos amar tudo. Mas explica-me tu como se substitui alguém que nos amava? Como? Não se obriga quem quer que seja a amar-nos. Ou acontece, ou não acontece. Ponto. Fim de argumentação. Concordas, Senhora? O pior não é não ter quem se sente no nosso colo. O pior é perder um colo. Um colo onde cabemos na perfeição. Onde nos encaixamos sem grandes mexidas. Claro que viverás sempre aqui, naquele sítio espaçoso e arejado de onde jamais sairás, mas eu é que demorarei mais tempo a encontrar o teu colo. Isso é chato! Muito chato! Que tonta que eu fui!
Não quero, todavia, longe de mim tal coisa, que fiques agora com a ideia errada de que tudo isto é apenas bondade. Como já percebeste, Adorada Senhora, não sou assim tão pura ou bondosa. Nada disso, não me entendas mal. Muito de tudo isto, maioria de percentagem, a bem da verdade, tem origem no mais puro egoísmo, a começar pela falta de colo de que já te falei e a acabar na falta de colo, de que já te falei. Quem vai agora perguntar pelos meus? Pelas minhas coisas e afetos? E pelos meus cães? E pelas minhas árvores? As do jardim e as do pomar? Quem, no teu lugar, voltará a gostar tanto de mim que inclua todos os meus seres vivos nas suas preocupações, árvores incluídas? Árvores incluídas. Importa repetir alguns pormenores, pois neles vivem os deuses e outras coisas afins. Quem chorará a morte de um aloendro, além de mim? Lamentar uma roseira que não deu rosas? Uma laranjeira sem flor? Quem chorará comigo, Doce e Terna Senhora? Por último, que é como quem diz, que estas coisas do amor não terminam assim, quem me dará ‘béjinhos’? Sabes o que são ‘béjinhos’, Amada Senhora? São beijos que nascem em Beja, em bocas excecionais, no meio de corações do outro mundo que, por qualquer razão estelar, acabam neste outro. São amor vindo da fonte, que desaguava no meu bem-estar. Para onde vão esses ‘béjinhos’, agora que o comboio que te levou partiu da estação, onde ainda sinto os meus pés? Vês? Tu vês bem o egoísmo desta dor? Que tonta que eu sou! Mas que tonta que sou, eu!
Com tudo isto, apenas estou para aqui a apoquentar-te – vês como sou egoísta e imatura? –, quando devia apenas sorrir e dizer-te adeus, com serenidade, sorrisos e ternura, pois são esses os melhores ‘adeus’. Acenar-te com o lenço, vá lá. Gritar um pouco que já tenho saudades (o que me dizes, caso ninguém esteja a ver?). Mas não, tinha de me lamentar, de te sobrecarregar com esta espécie de orfandade afetiva (haverá algum outro tipo de orfandade?), de ter pena de mim, ao invés de me alegrar, ainda assim, pelas circunstâncias. Pela ausência de tumulto ou alarido. Como sempre, terás feito a mala em sossego, sozinha. Revendo e confirmando, uma e outra vez, se tinhas tudo aquilo que faz falta numa viagem tua. Ou seja, apenas o suficiente. Nada mais do que o suficiente. Aposto que um pequeno saco de mão te bastou. Não te esqueceste de nada, espero. Claro que não. És do aprumo a grande mestre. O sobretudo ia vestido e abotoado. O lenço estava no bolso e lavado. O coração cheio e o bilhete na mão. Os pés estavam quentes e a cabeça fria. É quanto basta, bem vejo. Não tem dúvida. Dos lábios ias soltando em surdina, de modo ordenado e à vez, ‘béjinhos’ para todos. Todos é todos. Sem exceções ou omissões. Julgo que ainda me chegou um à face, enquanto, na estação, me lamentava pelo meu estúpido atraso. Os dos outros, entregá-los-ei, não te aflijas. A todos.
Sabes que mais, Querida Senhora? Esquece toda esta minha infantilidade e choraminguice. Claro que cá me arranjarei. Arranjamo-nos sempre, bem ou mal. Sacode-se a dor e lá seguimos. Além de que, a esse respeito, te posso tranquilizar, sei bem que uma coisa poderei fazer por ti, com calma e moderação: amar aqueles que tu sabes. Talvez com um pouco mais de alarido, é certo, mas peço-te compreensão para esse facto. E também posso, sem grande esforço, parece-me, tornar mais ‘béjinhos’ os meus beijos. Pelo que, está tudo bem, não te apoquentes. Mais uma vez, cá estava eu a ser eu. Com os meus dramas e alardes, mas sabes como ainda vou muito atrás dos sobressaltos do coração. Agora reparo. Deixaste esquecidos – terá sido mesmo esquecimento? –, no banco, de onde ainda tento ver-te numa qualquer janela perdida do comboio, a contenção e a delicadeza do gesto e da palavra. Não te apoquentes. Vou guardá-los numa caixinha, para não os perder. Sabes bem como estas coisas tendem a perder-se, mais ainda para alguém como eu, cheia de exaltações e humores. Antes de te perder de vista, porque de outras maneiras, jamais te perderei, mando-te também, ‘béjinhos’ para todos. Para os teus, os meus e os nossos. E, olha, desculpa o meu descuido com as horas, o imperdoável atraso e por, estupidamente, nos sentir a salvo, protegidos e seguros. Nem me dei conta de que estavas de viagem marcada. De que tinhas de partir. Que tonta que eu sou, Doce e Terna Senhora. Que tonta que eu sou!
Simplesmente, maravilhoso!…