7f2d648f24e7e7eccda8f3047c588c63Belinha olhava o quarto que ocupava na Prisão de Odemira. Nunca lhe chamou cela. Jamais caiu nessa esparrela, que isto quando nada se tem as palavras podem ser tudo. Por isso as poupava. Por isso as aplicava com sabedoria, com cautelas de alta finança e rigores de cirurgião. Com elas sarava pequenas chagas, usando-as como leves compressas, embebidas em eufemismos e cirurgicamente aplicadas, aqui e ali, em recônditos interstícios da sua alma, já que as feridas maiores, supunha, dificilmente as curaria. O seu quarto, apostava uma qualquer precária sem risco de perder, era o mais limpo, arrumado e agradável da sua nova morada. Nova, é como quem diz, já lá iam nove anos. Mas também com os números falava com delicadezas, pé ante pé, sussurrando-os sem alaridos, sempre tão perigosos e traiçoeiros, não fossem eles multiplicar-se ou elevar-se ao quadrado, quando à sua frente a parcela era já tão pesada: 18 no total. Sobre isso chiu. Silêncio e paciência. Paciência e muita ordem e limpeza. No curso de tapeçaria, onde Arraiolos, infelizmente, não se apresentava como destino geográfico, apenas uma referência ocupacional, tinha já tecido tantos tapetes e painéis que o seu quarto, o número 89 daquele Hotel California (you can check in any time you want but you can never leave), mal deixava a descoberto a cor das paredes. Tornava-a mais quente, é certo. Mas tão mais libertadora. No total, somados todos os pedaços de reboco mal tapado, talvez sobejasse um metro quadrado de brancura encardida. O resto, apenas imagens e padrões mil como paredes de palácios árabes, luxuosamente trajadas de azulejos geométricos que tinha vislumbrado, já então com admiração e olhos esbugalhados – que os olhos tendem a dizer apenas aquilo que sentem – em fotos que enfeitavam as casas que a mãe limpava e para onde a arrastava diariamente. Dias maravilhosos, de descoberta e encantamento. Dias em que Belinha – sim, dias em que ainda era a Belinha – começava as manhãs com excitantes viagens de autocarro que a tiravam das Galinheiras, nos subúrbios de Lisboa, e a levavam ao centro do universo, à cidade, cidade. Sentava-se, quase sempre, ao colo da mãe. Calcorreavam depois, duas a quatro casas por dia. E que casas! Tão diferentes daquela em que vivia. Passeava pelas casas como quem penetra diretamente na tela de um filme.

By Laura Zalenga

By Laura Zalenga

– Não mexas em nada, Belinha – repetia-lhe a mãe a cada cinco minutos, ou coisa que o valha, que quando somos crianças não medimos o tempo, apenas deixamos que ele passe por nós, experimentando todos os seus mistérios. Os do tempo e os das casas. Ela delirava, enquanto a mãe se desdobrava em afazeres, limpezas e disfarces de má qualidade com os quais achava que ocultava o interminável rio de lágrimas que a consumia. Lágrimas omnipresentes, lágrimas fixas. Lágrimas que de tão constantes e presentes eram já sorrisos e outras aldrabices que Belinha fingia engolir, com a mesma naturalidade com que a mãe engolia o colar feito de nós de garganta que, se fosse de pérolas feito, as teria tirado da miséria. Demorou a perceber a razão de tantas contas de água salgada e a razão porque agora a tinha de acompanhar nas limpezas. Mas não demorou assim tanto. As crianças podem não saber tudo, mas sabem sempre o essencial. Percebeu que o segredo que o padrasto partilhava com ela não devia nunca ter sido um segredo, ou, então, não devia nunca ter sido revelado para lá das paredes do seu minúsculo quarto. Logo que se viu obrigada a contá-lo à mãe, um dia em que tinha sangue na cama e muitas dores na barriga e nenhuma desculpa convincente, nasceu aquele rio, aquele oceano de lágrimas que nunca mais secou no peito da mãe. A mãe explicou-lhe que o padrasto era um monstro e que tinham de fugir. Fugiram, mas não foram muito longe, ficaram logo ali ao lado, nas Galinheiras. Belinha sempre gostou do nome, achava que vivia no campo, onde a vida era tão mais saudável, como lhe diziam na nova escola. O padrasto acabaria por ser apenas o primeiro mastronço da sua vida. Percebeu-o mais tarde. Outros se seguiram. Demasiados outros.

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– Parece que tens um íman. Só atrais burgessos e brutamontes! Tu, abre os olhos, Belinha! – inquietava-se a mãe, que há muito se tinha especializado em preocupações, reais (e essas eram já bastantes) e por acontecer. Belinha não sabia se era a isso que chamavam karma, mas tudo aquilo que a mãe receava para o seu futuro, acabava, invariavelmente, por acontecer. Chegou a achar que a mãe era vidente.

Mas Belinha nunca abriu os olhos, como se o sol da vida a encadeasse de tal forma que só conseguia prosseguir com eles fechados, confiando nos seus instintos atrofiados desde logo, deficitários desde sempre. Tateando o presente, sem indicações do futuro, daquilo que já se adivinhava no caminho, sem perceber o tropeço que se fazia anunciar com estrondo, o abismo que já se abria. Sentia apenas aquele sol na pele e tentava apreciá-lo, enquanto parecia acariciar-lhe a pele, aquecer-lhe o corpo, amornar-lhe a alma. Caminhava às cegas, sem mapa ou GPS. Sem rumo ou timoneiro, apenas seguindo o calor, virando o rosto cego para o sol, para o calor. Sorrindo despreocupada. Sorrindo pateta. O calor cedo começou a arder, a queimar a ‘carcinomizar’. Morreu tantas vezes. Belinha não sabia quantas. Mas morreu muitas vezes. Mais do que as necessárias. Tudo aceitava como um magnífico baile. Uma oferta divina. Um amor eterno. Um porto seguro. Uma sala iluminada por magníficos candelabros, onde dançava sem parar com o seu homem. O seu homem, a bem da verdade, foram muitos. Todos amou como a príncipes encantados. Todos aceitou como sendo aquele, o tal, o único, o derradeiro. Todos se revelaram amaldiçoados. Todos e cada um deles forçou na sua vida a entrada do seguinte. Destratada. Maltratada. Violentada. Violada. Magoada. Ferida. Inocente e culpada. Belinha lá voltava a acender as velas, a preparar os elegantes bules de chá do seu conto, a ajeitar as almofadas do sofá para conforto do próximo amante. A preparar, no fundo, o peito para mais uma ferida. Os olhos fechados ainda. Já não o sol a forçar a cegueira. Antes o inchaço resultante dos murros, da pancada, da vida padrasta. Os hospitais. A polícia. As queixas, mas jamais os queixumes.

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– Não te preocupes, mãe. Vou ser feliz. Vou tirar-nos deste bairro. Tu vais ver, mãe. Desta é que é. Ele é tão bom para mim, mãe. Trata-me como a uma princesa. É trabalhador e não se droga, mãe. Não como o outro. Não tem nada a ver. Ele ama-me como nunca amou na vida, ele próprio mo disse. Vais conhecê-lo, mãe. Vais gostar dele. Vais viver connosco, espera só até que…

Não sabe se a mãe realmente esperou o que nunca aconteceu ou se limitou a adivinhar o que sempre acontecia. Nos seus olhos aquelas eternas lágrimas, as de sempre, aquela aterradora culpa que nunca se apagou, que nunca reduziu de tamanho porque para aquilo não havia quimio ou radio ou qualquer outra terapia. A mãe tentava sorrir. Afagava-lhe o cabelo, o rosto, os olhos feridos de Belinha. No fundo dos olhos da filha, a mãe via a sua própria dor, aquela onde cabiam todas as outras. O mesmo perigo de sempre. Uma eterna partilha que as ligava de forma brutal e mais consistente do que apenas o amor. Do que apenas o benquerer.

– Tu, abre os olhos, Belinha! Não deixes que ele te faça mal. Não te maltrates. Não te menosprezes filha. Tu vales ouro. Põe isso na tua cabeça, Belinha.

Ouro, mãe? Belinha achava que tal como ela, também a mãe sentia coisas bonitas por dentro para não ter de reconhecer a feiura de tudo o que existia fora dos seus peitos. Também a mãe de olhos fechados. Ouro? Nem latão, mãe. Onde a mãe via ouro, Belinha sabia estar uma lata amarelada, da cerveja, certamente, amachucada pelas mãos dos homens que sempre a atraíram. Matarruanos de primeiríssima qualidade. Guardava para si o ‘matarruanos’, anunciando ao mundo e à mãe, apenas a ‘enormíssima qualidade’. Todos a amavam tanto. Como podia ela resistir ou adivinhar? Tal como o sol, também o amor cega. E ela também tinha defeitos e eles, coitados, por vezes, desesperavam com o seu feitio. E os ciúmes, mãe. Gostam tanto de mim que cegam com os ciúmes, e, depois, exaltam-se e eu grito, e eles gritam e depois brigamos. Mas amam-me tanto, mãe.

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– Tu vais ver mãe. Um dia…

Um dia chegou. Belinha, então a viver em Faro, numa casa devoluta (“uma moradia linda, mãe, tens de me vir visitar, lá mais para o fim do ano, pode ser, mãe?”), para onde tinha fugido em hora de desespero, com o medo no coração e o ódio nas mãos. Ele voltara a espancá-la (“apenas porque te amo Belinha, sabes isso, certo? Mas há coisas que não podes fazer. A culpa é tua, que me deixas doido, assim”). As palavras de um, os atos de todos. Todos os homens com quem se cruzou a amaram profundamente, razão pela qual a matavam. Belinha pensou, nesse dia, que, então, talvez o erro estivesse aí. Em amar. Deveria talvez, odiar. Odiando, podia fazer coisas mais certas, já que o certo até aí, tinha jogado sempre contra si. O padrasto foi o primeiro a hipotecar-lhe a esperança e toda e qualquer hipótese de poder ser mãe. Há coisas que marcam uma mulher. Odiaria. Quem sabe, assim, o resultado não se revelasse melhor para o seu lado? Finalmente, Belinha começava a ver. Ela, que toda a vida tinha sido capaz de ver animais nas nuvens e a imaginar todo o género de coisas boas no meio de gigantescas tormentas. Mesmo agora, que o céu lhe estava interdito, adivinhava imagens onde podia. Via movimentos fortuitos nos padrões dos seus tapetes, com os quais transformava em quarto a sua cela. Ainda hoje, no osso da coxa de galinha tinha conseguido perceber a cabeça do E.T. e no puré de batata um campo de lírios a perder de vista. Mas Belinha começava agora a ver coisas novas, começava a perceber a realidade. A ver os monstros reais com quem dançava sem parar em salões de baile que inventava na sua mente e decorava com o seu coração. Se parasse um pouco para escutar, nem sequer havia música a tocar. Apenas os seus olhos fechados, a sua vontade de ser feliz, a urgência de ser amada e a inevitável tareia em qualquer fim de tarde, a incontornável humilhação, o medo. O hospital. A esquadra.

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Belinha decidiu não se esconder. Não esperar ser encontrada. Era sempre encontrada. Partiu à procura. Encontrou. Avançou. O sol parecia ofuscá-la, naquele tórrido meio dia de agosto. Abraçou o seu monstro. Partiu dela o convite para dançarem. À sua volta, os castiçais e os lustres de cristal tremeluziam a luz feita do ouro de que a mãe lhe falava. O sol forçava a persiana dos seus olhos, mas Belinha ouviu finalmente a mãe.

– Tu, abre os olhos, Belinha.

Bela despiu-se de diminutivos, de infantis carências de abraços e outros nadas. Bela, de novo Isabel, abriu os olhos. Afastou-se do par, que parecia não ter dado pelo seu afastamento e ainda rodopiava ao som daquela música que não tocava. Que não se ouvia. Que não estava lá. Fazia tanto calor que as suas mãos ardiam. Bela, agora de olhos abertos, olhou as mãos e viu como elas estavam quentes. Tão quentes que estavam vermelhas. Tão quentes que derretiam sob o sol de verão, daquele meio-dia abençoado. No chão, ia-se liquidificando a sua dor, ia-se desfazendo o seu corpo. Achou que toda ela derretia. Que se evaporava. Mas estava de olhos abertos e viu coisas novas. Viu o medo a fugir do seu peito, correndo apavorado, enquanto olhava por cima do ombro com receio que Bela corresse atrás dele. Que pena o Monstro já não conseguir perceber tudo isso. Porque não olha ele aquela nova mulher? Uma mulher que tinha o destino nas mãos.

– Olha o meu medo a fugir, grande estupor. Olha!!!

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Bela ordenava, enquanto ria e percebia quão mais leve é o corpo de uma mulher livre. Tão mais elegante e gracioso. Andar não exigia esforço algum. Bastava pensar e o seu corpo flutuava e as suas mãos derretiam. Pingavam suor vermelho. Olhou-as bem. Tão quentes, tão vermelhas e com o destino nas mãos. O destino tinha uma forma. O destino, percebeu, era uma enorme faca de pão. De lâmina gigante e bem serrilhada. Uma faca tão afiada que era capaz de cortar sangue, pois era isso que escorria para a terra poeirenta que cobria o seu salão de baile. No dia em que abriu os olhos pela primeira vez, percebeu o seu valor em ouro, aquele que apenas tinha lugar na bolsa de valores materna, e recebeu, finalmente, uma casa nova, em Odemira. Uma casa limpa e segura, como aquelas que durante anos viu a mãe aprimorar. Uma casa onde a mãe podia, sem mentiras ou medos, visitá-la. Onde tinha prazer em receber. Onde tecia tapetes com a destreza de quem não tem outra pressa que não a da perfeição. Começaria, em breve a vendê-los para fora. Iria sair por bom comportamento. Não duvidava. Teceria até lá. Teceria tudo o que havia para tecer. De olhos abertos, não voltaria a picar os dedos, nem permitiria que as suas mãos necessitassem de voltar a derreter, fosse qual fosse a temperatura lá fora. Fora do seu peito. Para si, só brisas frescas e relaxantes. Só leveza. Dançaria sozinha ao som de música real.

– Vou tirar-te das Galinheiras, mãe, tu vais ver! Já abri os olhos, mãe. Não voltarei a ter medo, mãe. Juro por tudo. Nunca mais. Vou vender os meus tapetes, mãe. Há quem mos compra lá fora e vou tirar-te daquela vida. Daquele bairro, daquela tristeza, mãe.

– Já tiraste, Belinha, já tiraste, filha. Não te preocupes mais.

Moral da história:

Um dia, todas as Belinhas deveriam abrir os olhos. Mais vale antes do que depois para que as mãos não cheguem a derreter sob o sol abrasador de agosto.

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