Pegava ao serviço em menos de meia hora e sabia bem o que antecedia a sua saída de casa. Desde que Sandro passara a ser Sandra e, mais recentemente, Sandrinne – com dois ‘enes’ – que todos os dias tinha de passar pelo xarope de uma ladainha muito maçadora. Começava pela observação crítica do seu vestuário e uma verificação do hálito. Depois disto, passava em revista o interior da sua carteira, certificando-se de que tinha toda a documentação e, sempre, mas sempre, duplicava qualquer que fosse o número de preservativos com que já tivesse atulhado a sua ridiculamente pequena clutch. E olhem que Tranca de Neve era sempre muito otimista no que toca a fazer previsões de clientela, além de que, por norma, não entrava em carros e levava os morcões todos à casa que ela e Sandrinne tinham alugado para servir de ‘escritório’. Ainda assim, chega a levar numa noite os preservativos de que não necessita para um mês de trabalho árduo. Exceto, claro, quando tem a sorte de esbarrar com as necessidades de um navio mercante acabadinho de atracar. Chega a não sair de um único camarote durante largas horas, sem nunca deixar de se sentir a maior atração de um qualquer parque de diversões.
– Vais mesmo de beringela? É tão five minutes ago!
– Ó melher! Tu ‘tás mesmo uma gaja. Nem precisas de te submeter ao martírio das infinitas operações de mudança de sexo. Não mexe que já lá está tudo. Claro que vou de beringela e não me sensibiliza esse teu olhar de polícia da moda. Nem que fosse demasiado last season. Não te esqueças que ainda não faz assim tanto tempo que usavas camisas abertas até ao umbigo e um fio com Cristo cru-xi-fi-ca-do, hã, a sufocar de vexame e humidade na floresta tropical da tua peitaça. Por isso, lamento que não gostes de vestidos com cor de legumes. Eu cá acho que me fica a mataaar!! Em vez de me criticares, devias antes tratar de lhe subir a bainha, darling produtora.
Sandrinne, que despertara e acabara por renascer para a sua natureza feminina numa espécie de repente epifânico – ou talvez meramente para despistar uma malta a quem devia dinheiro, Tranca andava que nem boomerang entre uma e outra teoria –, encarnara de tal forma toda a estética feminina que se tornara verdadeiramente insuportável. Além das exigências de chulo, sim, mantinham essa ligação profissional, e o crédito exigido era de sete morcões/noite, tinha agora ainda de ver escrutinada até ao tutano a sua toilette, se o perfume era o indicado, se os sapatos estavam impecáveis, se a pochette rimava com tudo o resto… Estava uma gaja insuportável. Tranca sempre se dera melhor com homens, pelo que esta recente alteração no equilíbrio sexual do casal, sim, também eram amantes, estava a enlouquecê-la, não obstante estar felicíssima por ter agora companhia para ficar horas a lamber montras, coisa para a qual Sandro não tinha a menor pachorra.
Sandrinne, não se ficou.
– Isso que tu usas já são meros cachecóis, se te subo mais a bainha fica um cinto. Depois é ver a classe da clientela. É a tua saia a subir e o nível dos clientes a descer. Temos de primar pela diferenciação, manter padrões elevados. Como havemos de arranjar clientes classe B e A se te apresentas como uma bimba pindérica? Não percebes nada de negócios. Além disso, acho que começas a ter um pouco de inveja da minha beleza natural e do meu estilo sofisticado. Lá por eu ser uma mulher mais bonita do que tu não deves ceder a esses sentimentos negativos. Somos uma equipa e sabes que te curto mais do que ninguém.
– Curto. Curto. Mais curto devia ser o vestido e não o teu amor. E se alguém sabe do negócio sou eu, que ando na rua, e todos os dias tenho de lutar contra a concorrência, cada vez mais nova e diversificada. Se não tiver uma ‘montra’ bem composta, ninguém entra para comprar, ouviste? E que história é essa de seres mais bonita do que eu? Não percebes que és apenas um estranho mamarracho?
– Nem tentes, pois não vais conseguir. Sei bem a imagem que o espelho me devolve.
– Claro que devolve, ia lá ficar com ela!?
– Diz-me a toda a hora como sou bela e feminina.
– O espelho diz-te isso? Ó filha, só se for um espelho mágico. Põe-te no teu lugar, Sandro!
– Sandrinne, se não te importas, sabes que é importante em todo este processo que me vejas como uma mulher.
– Desculpa, tens razão. Mas bela? Mais bonita do que eu? Valha-me Deus, nosso Senhor bendito! Nunca partas esse espelho, é o que te digo. Bom, mas avancemos que eu tenho de picar o ponto que o meu patrão agora é uma gaja e com elas não se brinca.
Ainda tinha a mão no puxador da porta da rua e já um caramelo lhe lançava uns chega para cá.
– És mesmo boa!
– Ó ‘Mor, boa e barata. Servicinho de primeira apenas por 100 paus. Chave na mão, darling! É só entrar!
– 100 paus? Isso é lá barato!
– Barato para os meus elevados estandartes. Já viste bem a qualidade do petisco? Olha bem para estas carnes. E esta tranca? Vendo saudinha, sou do mais carinhoso e garanto resultados, Doce! Conheço melhor o teu corpo do que tu próprio. Se quiseres coisas por cinquenta ou até vinte, também encontras. Desces umas ruas e só pagas uma azulinha ou duas, mas depois vais pagar mais no senhor doutor, não é?
– Tens sítio?
– Claro que tenho. Anda, sobe.
O primeiro morcão da noite e nem tinha sido preciso descer até à avenida, o que, em cima daqueles stiletto era coisa homérica.
Sandrinne, ao ouvir a porta, achou que Tranca de Neve se tinha esquecido de alguma coisa. Olhou o energúmeno de alto a baixo, elevando apenas uma muito arqueada sobrancelha, e deixou-os passar para o quarto dos fundos, ou do afundanço, segundo a brejeira Tranca de Neve. Vinte minutos depois e de lá saía mais um cliente satisfeito e isso é que era preciso. “Cuidar bem da clientela para que ela cuide bem de nós”. Esse sempre fora o lema de Sandrinne, o que, por vezes, implicada alguma força bruta. Nesses momentos, era Sandro quem arregaçava as mangas e essa era uma das razões porque não pensava seriamente em ser operado. Mas não era a mais importante. Essa era o amor que tinha pela destrambelhada da Tranca de Neve que não se entendia na cama com mulheres, pelo que, por ela, havia que manter o apêndice. Além de que tinha sempre muitas dúvidas em relação aos seus desejos, já que nunca os aguentava por mais do que uma temporada de futebol. Um ano quer ser bombeiro, noutro quer visitar o Butão, noutro outra coisa qualquer e agora quer ser mulher. Será permanente? “Se não for que seja uma míni vague”, dizia-lhe, na galhofa, a sua Tranca. Mas com isto já andava há três campeonatos e nenhuma outra tara ficara para ver o seu Benfica tricampeão. Sem dramas. Tranca já saía da casa de banho, enquanto ia anunciando que não levaria cuecas.
– É que não levo mesmo. P’ra quê? Só mais roupa para lavar. Temos de ser práticas e económicas.
O segundo morcão tardou a chegar, mas quando veio, foi a dobrar. Um caso estranho de dois irmãos gémeos tarados de todo, bimbos que só visto. Caramba, que caso mais macabro. Primeiro desconfiou, mas quando lhe passaram as quatro notas de cinquenta para as mãos, Tranca de Neve, nem pestanejou. Quer dizer. Pestanejar, pestanejou, mas lá foram. Ao ver aquele trio maravilha entrar-lhe pelo estabelecimento comercial em que a casa se transformava à noite, Sandrinne deixou descer o Sandro-nortenho-dos-cinco-costados que havia em si e mostrou bem os bíceps tatuados àquelas alminhas, não fossem os pacóvios revelar-se uns psico. A cena deles era marada, mas não muito. Um fazia enquanto o outro via e vice-versa, mas tudo no maior respeito e contenção. Nada de intercâmbios esquisitos.
– Ó Mor, três já cá cantam. Vou sacar os quatro que faltam. A este ritmo ainda vamos cear à Ribeira.
– Isso é que era, minha joia.
– Ó, Sandrinne, há tanto tempo que não me chamavas joia. Vou indo, então. Dá cá uma beijoca.
Tranca pôs-se em bicos de pés, já que Sandrinne era cá um matulão!
Era uma boa alma, Tranca de Neve, ficou Sandrinne a matutar. Mas tinha lá o seu mau feitio e um rol de caprichos que iam desde ter uma mala diferente para todas as noites do ano até ao desejo funesto, colocado já em testamento, de, quando morresse, ser enterrada num caixão de vidro rodeada de maçãs e não flores. Louca varrida. A sorte de Tranca é que, nas suas mãos, até o dinheiro era fêmea parideira, orgulhava-se Sandrinne. Caso contrário, aquela pobre já tinha falido. Quis o destino que se encontrassem, é o que é. Tinha sido a sorte de ambas, já que o então Sandro, na altura, vivia em total desespero, entregue ao álcool e preso às inúmeras dívidas de jogo e a estados depressivos intermitentes. Mas o amor lá vai curando tudo. Nas mãos dele, Tranca enriquecia e nos braços desta, ele, perdão, ela, sarava.
O quarto morcão era um chato. Falador que só visto. Era casado, não tinha dúvidas. São sempre os mais faladores e Tranca já tinha todos os géneros ‘estereopstipados’. Enquanto faziam o trajeto até casa, não parou de fazer perguntas.
– Porquê Tranca de Neve? Bom, chamam-me isso por causa da mancha branca que tenho ‘naianca’ e também porque durante uma fase má da minha vida caí na cocaína. Depois, foi ficando e eu até que gosto, sabes?
Como o homem não se calava, Tranca, já com os azeites em ebulição, mandou-o calar-se, mas com educação, claro:
– Ó boneco, guarda o fôlego, não vão faltar-te as forças quando mais precisares. Para a próxima, ficas a saber o resto da história, tá?!
E iam quatro. Tudo direto para o plano poupança ‘Transinne’, que lá boa gestora de conta era a sua Sandrinne. Desde que, graças a ela, tinha deixado a droga, que Tranca era uma máquina de fazer dinheiro. Estava mesmo a ficar viciada. Não havia outra na cidade que ganhasse tanto ‘varrendo’ as ruas. E o que viajavam? Dentro de uma semana iam para a Austrália, as duas malucas. Claro que, mesmo de férias, se caísse algum cliente, não se faziam rogadas, que a vida não está para brincadeiras, além de que tinham de assegurar a reforma, coisa que o comum cidadão não antecipa aos 30 anos, como elas. Eram umas moiras, isso é que era a mais santa verdade.
O quinto morcão era um habitué das quintas, o Jaimão. Conhecia-o desde miúda.
– Ó Jaimão, isto é quase incestuoso, pá. Se não fosse pelo negócio, mandava-te para outra.
– ‘Tás parva ou quê? Então, não sabes que gosto de ti desde sempre? Se não andasses na vida já eras minha mulher.
– A sério? Que romântico, Jaimão. Não te sabia tão sensível.
– Pois não, mas sabes-me tudo o resto. Melhor do que a minha mãezinha, que Deus a tenha em descanso.
– Oh, o que eu gostava da Etelvina, tua mãe.
Jaimão, que ainda não se habituara a ver o amigo Sandro nas vestes de Sandrinne, todas as semanas repetia a mesma lengalenga.
– Tu de vestido, man? Pereces uma Matrona de Torres Vedras, pá! Vê se atinas.
– Atino-te um murro se não me tratas como uma lady, isso é que é.
Depois dos abraços, Tranca de Neve guardou o dinheiro e apressou a converseta que já caminhava para o futebol. Não era bom. Sandrinne era benfiquista e Jaimão um fervoroso dragão. Aquilo só acabaria em penalties.
– Campeão, vamos marcar golos lá dentro, pode ser? Que aqui a moira ainda tem de bater mais umas ruas.
O sexto morcão da noite, foi uma não-história. Um solitário brutamontes. São os melhores. Pouca conversa, muita ação e não mais do que um quarto de hora.
À saída, Tranca pisca o olho a Sandrine, que já se estava a maquilhar para a noite a duas e diz:
– Estamos a um da Francesinha, ‘Mor. Pensa num sítio pop, tá? E olha que pop não é ‘popelintra’, ok?
Estavam mesmo e ele não demorou. Foi de encontro a ela ofuscado, quase encadeado pelo brilho das lantejoulas beringela que, sob a luz certeira de alguns candeeiros lançava raios de todas as cores e em todas as direções, como uma bola de cristal. Um autêntico caleidoscópio cromático. Tranca mal reparou nele. Credo!, pensou. O homem não tinha sequer metro e meio e não era anão. Era apenas pateticamente pequeno. Pensou logo no óbvio, homem pequeno… Lá subiram. Colocou propositadamente o homenzinho à sua frente, quase colado à porta, para que, quando olhasse pelo óculo, a sua darling a visse apenas a ela. Percebia que, quando ela abrisse, o impacto seria maior e mais percetível a pouca altura do homem, que apenas lhe dava pela cintura.
– Ah, parecia que tinhas uma t-shirt com uma cara estampada – comentaria morta de riso Sandrinne, já com a boca atafulhada de francesinha, quando finalmente saíram as duas.
– E que tal? Homem pequeno…
– Não. Tudo, mas tudo mesmo muito, muito proporcional. Nem dei por nada. Estive quase a cobrar-lhe um terço, mas depois pensei na humilhação que não devia ser para o pobrezinho e naquele vestido que quero comprar antes de partirmos e, olha, foi mesmo 100 euros.
– Estou aqui a pensar, devíamos ser aumentadas, não achas Tranquinha?
– 150, darling?
– Ou 1000. Vamos pensar em grande. Passamos para um hotel de luxo, com motorista, sempre muito bem-postas e… Achas que ponha mamas?
– Não.
Moral da História: O amor é lindo e quase gratuito, já o sexo é sempre negociado.
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