Adoramos um bom, ou mesmo mediano desafio. Perdemo-nos por um quebra-cabeças. Pelamo-nos, de verdade, por uma charada. Sentimo-nos, até, atraídos por um contrassenso. Isto, todavia, vai muito além de tudo isso. Este é um labirinto sem saída, daqueles infernais ao estilo de Kubrick, em Shining, ou outros com jardinagem mais cuidada. Como avançar para uma canja quando, por definição clássica e até tradicional, esta exige galinha? Pode dizer-se caldo de galinha, mas logo que se diz canja, esta já dispensa adjetivos, uma vez que se assume à partida como sendo de galinha. Eventualmente, contemplam-se outras aves. Canja de perdiz, ou pombo, por exemplo, ou mesmo pato. Porque são aves com aquele índice de gordurita de que se alimenta a canja. No momento, porém, em que é referida uma canja com um elemento marinho, apetece imediatamente gritar: ‘Alto, que aqui há gato!?’ Ainda que, na verdade, desejemos piamente que o gato ali não esteja, cruzes credo! O que seria?!
Nestes momentos, respiramos fundo, fazemos um pouco de meditação, enveredamos por uma pitada de mindfulness e repetimos o nosso mantra: ‘Lembra-te do ovo de Colombo, o navegador e não o detetive da série televisiva’. Fica logo tudo mais claro, principalmente, porque há um ovo de galináceo envolvido e tudo começa a fazer certo sentido.
Pois bem, meditação feita, mantra repetido, respiração controlada e vamos, então, ao que interessa. Muito simples – nem precisa de partir um ovo sobre a mesa. Cumpra todos os procedimentos de uma canja normal, mas em vez de trabalhar a galinha, basta que use conquilhas. O que é bom, pois pode dispensar a panela de pressão – sempre um susto –, uma vez que a concha das conquilhas não tem de ficar tenra, como a carne da galinha, sempre tão rija e difícil de amansar ao vapor. Com o calor, as conchas abrem e basta quase nada para cozinhas os pobrezinhos dos bichos que ainda se encontram vivos no aconchego do lar.
No final, não se esqueça da hortelã, para que não pareça apenas um caldo desenxabido com conchas e se lhe possa, com propriedade, chamar canja, ainda que de qualquer coisa que não de galinha, o que invalida logo o primeiro nome, verdade?
O melhor será fazer a sua aconchegante canja tradicional e salpicá-la no final com as conchas. Sempre fica mais saborosa e já não se coloca a questão da correta apropriação do nome. Há receitas muito complexas!
Como plano alternativo, que a alternativa é sempre de se considerar, vá ao Algarve e coma um bom xarém já confecionado por quem sabe e descanse a cabeça num travesseiro de Sintra, que é o melhor do mundo. De sobremesa, e já que está perto do mar, em ambos os casos, lave a alma e o corpo no tal primeiro mergulho do ano em água salgada, a mesma, afinal, dos bivalves que nos reuniram aqui, ou aí, não sabemos bem por onde anda.
Por fim, respondendo à pergunta do título: Sim, canja de conquilhas. Porque não? Anda tudo tão virado do avesso, que não obstamos a experimentações.
Ingredientes:
– Água
– Cebola
– Cenoura
– Conquilhas
– Hortelã
– Sangue frio, por causa daquela parte de ter de matar os bivalves, cozinhando-os quando ainda estão vivos, ‘tadinhos!
Tempo de preparação:
Se adiar para depois da canja de bivalves, a necessária peregrinação de joelhos ao seu santuário de eleição, a fim de suplicar salvação por causa da tal coisa, o… (em sussurro: assassinato das conchas), não demora muito. Se decidir pedir perdão adiantado, que mais vale prevenido do que condenado, então é coisa para um ano e picos.
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https://en.wikipedia.org/wiki/Congee
Na verdade, qualquer receita de arroz pode, intencional ou inadvertidamente, acabar em canja de qualquer coisa. E sem grande dificuldade, ou seja, é canja, ou, preferindo, favas ‘cantadas’;)