Estava um dia gélido e a miúda, explorada por uma insensível mãe alcoólica, tinha ainda por cumprir a tarefa de ir a casa da avó, na Musgueira, levar-lhe a marmita com o almoço, se é que se podia chamar almoço àquela parca refeição de enlatados e pão duro que, ainda assim, garantiam a sobrevivência da idosa. Refilou tudo o que tinha para refilar enquanto a mãe, prostrada por uma quantidade escandalosa de vinho de má qualidade e entorpecida por uma noitada salpicada de barbitúricos, repetia apenas e sem cessar:
– Põe-te, mas é, a caminho.
A caminho se pôs, enfiada nos seus jeans skinny e agasalhada apenas por um hoody vermelho. Sim, vermelho e não encarnado que a sua não era uma vida para sinónimos nem esquisitices classistas. O calor do Metro sabia-lhe bem, mas estava consciente de que apenas iria piorar o embate com o vento de inverno, quando saísse da estação. Pior ainda. A última parte do percurso seria feita a pé, cerca de dois quilómetros, até ao prédio decrépito da avó. Como abominava o mundo suburbano que lhe tinha sido destinado. A constante falta de dinheiro, a miséria humana das gentes dos bairros que eram as suas gentes, que eram os seus bairros, a floresta de prédios sem cor ou vida, os grupos de rapazes nas esquinas a olharem-na apenas como carne, como lobos famintos a perscrutar sem cerimónias uma peça de caça, um naco apetitoso, a próxima refeição. Passava por eles sem olhar. Tentando não os ver, mas atenta a cada gesto, a cada passo, a toda e qualquer palavra ou olhar que pudesse suscitar o ataque das feras, dos predadores. Subiu os degraus dois a dois. O saco plástico a balançar descompassadamente, a sopa que já se entornava, por certo. Sacou da chave, presa à cintura por uma corrente. Não por estilo, mas por mera segurança. Entrou, baixou o capuz da camisola, desapertou o nó do saco e o da garganta também. Chamou:
– Avó, cheguei!
Nada.
– Avó!!!
– A tua avó está no quarto.
Assustou-se. Um velho sujo e desdentado tentava sorrir-lhe. Num salto foi de encontro a ele e empurrou-o para o lado, abrindo caminho para o quarto.
– Avó!
– Minha querida. Como estás?
A doçura das palavras e o tom suave da voz da avó em cataclisma estilístico com tudo o resto em redor.
– Não tens frio? Estás tão pálida e com um ar tão gelado.
– Quem é aquele homem, avó?
– Ah. É o vizinho Rogério. Faz-me companhia de quando em vez. É um homem muito educado e prestável.
Olhou de volta, e demoradamente, para aquele farrapo de homem querendo dar força à sua vontade de dele duvidar, de o odiar por estar a entrar naquele solo sagrado, o dos afetos da sua avó. Percebeu apenas nesse instante o quanto gostava e precisava daquela mulher semi-acamada, aquela única carícia na sua vida. Aquele único gesto de ternura que alguma vez tivera estava ali, naqueles olhos fatigados por uma vida de amarguras e cansaço. Odiou-se por perceber que aquele farrapo de homem, sujo e com partes humanas em falta – além da falta de dentes, uma orelha ratada e dois dedos cortados a meio – que ele, talvez, amasse mais a sua avó do que ela própria. Tudo por culpa da marmita que a mãe alcoólica insistia que ela levasse a cada dois dias. A própria mãe deveria amar mais aquela mulher em fim de vida do que ela própria, apesar da neblina alcoólica que lhe turvava a mente, que lhe matava o cérebro e desgastava o coração. Enfiou o capuz vermelho na cabeça, alegando frio, mas sabendo que seria apenas para ocultar uma lágrima solitária que já balançava na fileira inferior de pestanas do seu olho direito. O único que se permitiu manifestar.
Ao baixar a cabeça, naquele gesto de ajeitar o capuz, a lágrima, solitária também ela, esborratou-se no soalho onde a sujidade e a gordura faziam as vezes da cera, que em tempos poderá ter recebido. Noutro tempo. Noutra vida. Pisou-a. Rodopiou a ponta do pé sobre ela. Ergueu a cabeça. Vestiu a avó como conseguiu. Foi ajudada pelo vizinho Rogério. Saiu de braço dado com ela, tentando acompanhar o ritmo quase nulo das passadas lentas da avó. Na escada, uma escaramuça de vizinhos. Um empurrão inadvertido. A avó cai desamparada. Rebola uns degraus. Da sua boca sai sangue.
Lembrou-se de um vídeo, à laia de tutorial de autodefesa, que tinha visto na internet, quando ainda pagavam a conta e tinha internet. Agarrou na chave de casa. Aconchegou a chapa larga na palma da mão, fazendo sair o cabo da chave por entre os dedos indicador e médio. Puxou o braço atrás, para ganhar balanço e aumentar a força. Enfiou-a sem grandes pensamentos, medos ou dúvidas no abdómen balofo do homem, que gritava com a mulher – a tal altercação. Deixou-a lá, a chave, não a mão, enfiada naquela carne nojenta. Puxou o capuz vermelho até onde pôde sobre o rosto, arrastou a avó como foi capaz e desatou a correr, aos tropeções, escada abaixo.
Moral da história: Não há pior ódio do que aquele que conseguimos sentir por nós próprios. Ou achavas mais provável que um caçador conseguisse retirar do bucho de um animal selvagem a avó inteira e vivinha do pequeno Capuchinho? Além de que, a qualquer mãe que mandasse a filha andar sozinha na floresta, ou perto desta que fosse, já lhe tinha sido retirada a criança. Vê se abres os olhos.
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