Um plano de morte

Não obstante a determinação cega que comandava a sua vontade e cada um dos seus gestos, Pedro estremeceu ao ver aquele homem à sua frente. Tinha decidido matá-lo em plena esquadra, na primeira oportunidade que lho permitisse. Não precisava de armas outras que não a sua sede de vingança. A sua fúria. O seu ódio. As suas mãos de pai ferido. Enquanto a oportunidade não chegava, pôde observar a criatura. Um homem banal na fisionomia, simples nos gestos. Concentrado. Pacato. Diferente. Não sabia bem em quê. Mas diferente. O olhar, diria, quase terno. Tranquilo. Quase uma criança adulta, se assim o poderia descrever. Os psicopatas e outros caracteres degenerados não se distinguem na multidão, repetia para si próprio. Se assim não fosse, se sobressaíssem, não chegariam a conseguir cometer os seus crimes. Autodenunciar-se-iam e, dessa forma, seriam aniquilados antes de agirem, antes de manusearem o seu ódio. Não é desta maneira que as coisas funcionam. Bom e mau carácter residem no interior, na parte oculta do ser, só se manifestando nos atos.

Matá-lo-ia. Não acreditava na inocência de um depravado que leva uma criança que lhe é estranha para casa. Raptando-a num carro. Aliciando-a com doces. Trancando-se com ela em casa, onde vive sozinho, numa nova vizinhança, onde ainda ninguém o conhece. Culpava a ex-mulher, também. Como largar da mão uma criança tão pequena!? Apesar de separados e de todas as mágoas iniciais à rutura, reconhecia-lhe o mérito de ser boa mãe, boa pessoa, cuidadosa, atenta, esmerada no afeto e na supervisão. Poderia aquilo ter acontecido consigo, bem mais desprendido, egoísta, cool e despreocupado – traços, aliás, de que fora acusado por Victoria e que, segundo ela precipitavam o divórcio, quando ainda discutiam essa mera possibilidade? Mas não aconteceu no seu turno, aconteceu no dela e Pedro não tinha ainda o distanciamento suficiente para não culpar tudo e todos. Todos eram culpados. Victoria era culpada. O depravado era ‘o’ culpado. Mas todos tinham culpa. Até ele, que tinha solicitado a troca do fim de semana por dois dias da semana, uma vez que estaria em casa quinta e sexta dessa próxima semana, podendo, assim, passar quatro dias seguidos com a filha e não apenas dois. Victoria aceitara. Porque aceitara? Deveria ter recusado. Começava logo ali. Devia estar com a cabeça no ar.

Talvez a pensar em alguém com quem já teria, possivelmente, combinado ‘atividades’ de fim de semana, mas acabara presa à filha. Talvez estivesse a falar ao telefone com esse energúmeno e se tivesse distraído mais tempo do que, agora, confessava. Para não ter mantido os olhos em Carmo, talvez estivesse a enviar mensagens, bem mais absorventes. Talvez fosse sexting… Tudo o tirava do sério. Até o ar dócil e apalermado daquela criatura, aquele homem imbecil que fixava, há horas, o teto da esquadra. Conseguia observá-lo através de uma fresta da porta aberta, do gabinete onde se tinha escondido para tentar chegar ao indivíduo que tinha raptado a filha. A besta. Já lhe conhecia o rosto. Podia esperá-lo à porta da esquadra, ou do prédio. Não importava onde, ou quando, se bem que quanto mais cedo, melhor. Estava tão certo de que o ia matar, que, na sua mente, já falava como se o tivesse matado e enfrentasse já o seu julgamento. “Autodefesa, senhor doutor juiz. Foi em minha própria defesa, que me vi obrigado a agir, a matar, para não ser morto” – ouvia-se dizer.

Uma hipótese de loucura

Victoria sentia-se à beira da loucura. Nunca tinha sentido tanta adrenalina a toldar-lhe o raciocínio. Rodopiava sem parar olhando aquilo que lhe parecia sempre o mesmo sítio. Um parque de estacionamento é todo igual. Todos os pisos se replicam. Já nem distinguia cores ou números. Jurava que a tinha deixado no menos dois, junto ao pilar verde com a letra J. Seria mesmo isso? Poderia estar confusa e ser azul, a cor, e I, a letra? Teria mesmo sido no menos dois? Claro que tinha sido no menos dois, nunca daí tinha saído. Ela estava junto a si. Tinha-lhe dito para não sair do sítio. Apenas procurou a carteira dentro da mala e, depois, na carteira, buscou o cartão para pagar o estacionamento. O talão ainda não tinha sido devolvido quando voltou a olhar. Ela já lá não estava. Victoria sentia náuseas, mas não podia parar de procurar para vomitar. Alertou os seguranças do centro comercial. Ligou para o 112 e, o pior de tudo, ligou para o ex-marido, de quem se tinha recentemente divorciado de forma pouco civilizada.

Teria mesmo de o avisar? Poderia isso aguardar até que tudo se resolvesse? E como se resolveria aquilo que lhe acontecia? A pior das catástrofes? O pior dos pesadelos de um pai: perder um filho. Carmo era uma criança calma e até sensata para a tenra idade. Jamais fugiria. Jamais… Pareceu-lhe ver a filha, na parte detrás de um carro desconhecido. Parecia tranquila. Quase lhe pareceu que ela sorria. Não conseguiu ver quem conduzia, apenas lhe pareceu um homem. Ainda ali estava. Mas já ali não estava. Num carro, com um estranho. Um carro já em movimento. Podia jamais voltar a vê-la. Caiu de joelhos. Não sabe porquê. Não se conseguia levantar. Vieram pessoas. Chegaram os seguranças que avisara pelo intercomunicador do pagamento automático. Chegou a polícia. Esquadra. Perguntas para as quais não tinha respostas acertadas e adultas. Porque deixara a filha sem supervisão? Porque se afastara? Se o ex-marido poderia estar envolvido. De que cor era o carro. Se a filha tinha alguma identificação ou contacto com ela, preso na roupa, ou algum dispositivo que lhes permitisse localizá-la. Se tinha a certeza de que era um homem. Se já o tinha visto. Se era a primeira vez que ‘perdia’ a filha… Tudo tão absurdo. Tudo tão… Irresponsável. A culpa era sua. Não precisava que lho lembrassem de forma tão cruel. Queria acertar nas respostas àquelas hediondas perguntas. Acertar de forma a tornar a busca mais eficaz e não de forma a desculpar o seu erro. A sua brutal falha. Ela estava logo ali. A apenas uns passos de si. O que aconteceu? Porque não viu? Onde estava a sua visão periférica? O que teria levado a filha a encetar conversa com um estranho? Pior. A entrar no carro de um estranho. Estava mortificada. Veio, depois, um psicólogo, ou criminalista, ou profiler, ou… Queria ser útil, mas sentia os olhares acusatórios sob cada pergunta que lhe faziam.

By Loui Jover

Viu que encaminhavam o marido para uma sala não longe do corredor onde agora a faziam aguardar nem sabia bem o quê. Marido, não. Ex-marido, mas ainda não se habituara à nova nomenclatura familiar. À nova gramática dos afetos. Quase lhe apetecia abraçar o pai da sua filha no meio daquele dia de tão grande temporal. Seria o seu abraço reconfortante como outrora? Dizer-lhe que tivera culpa, mas que a culpa não era sua. Quer dizer, não abandonara a criança. Não a deixara sozinha. Apenas se tinham mantido distantes uns metros. Carmo gostava de se sentir crescida. Uns meros passos. Umas míseras braçadas. Estavam à distância de uns quantos passinhos de chinês. Não conseguia chorar. Não conseguia levantar a mão. Queria afastar a franja dos olhos, mas não era capaz. Queriam, agora, que descrevesse o homem a um retratista. Descrever o quê? Um perfil com arrasto? Um cabelo curto? Um carro preto como todos os outros? E se não voltasse a ver a filha? Lembrou-se dos casos mais mediáticos e dolorosos. No momento em que necessitava de maior argúcia, o cérebro abandonava-a às lágrimas desertoras. Reduzia a zeros. Tudo a zeros. Exceto aquela dor e aquela confusão. Ainda não entendia tudo. Nunca se tinha sentido tão só e desesperada. O desespero, soube-o apenas nesse momento, não era inteligente, nem proativo, nem se vestia de acuidade, nem recorria à lógica. O desespero era apenas vazio. Escuridão. Embrutecia, escurecia, empedernia. A única acutilância chegava-lhe do coração, onde cacos de vidro lhe rasgavam as entranhas. Apenas isso sentia. Vazio. Sombras. Morte.

Sentiu-se a acordar. Já não naquele corredor, última lembrança. Numa sala de hospital. Os olhos pesados. O olhar acusatório do marido… ex-marido. Queria explicações? Não era bem isso. Queria a descrição do homem. Do carro. Repetiu a cassete. Informação avulsa, que de tantas vezes a repetir para si e para os outros, lhe saía em disparos, como se fossem a única coisa que alguma vez tivesse proferido em toda a vida. Um cabelo curto. Um carro preto. Acreditava que de cinco portas, pois conseguira ver bem a cara e o pescoço da filha. Devia ser um veículo alto, pois sem cadeirinha… Teria cadeirinha? Seria um pedófilo profissional? Pedófilo. Era a primeira vez que a palavra e tudo o que ela implicava, lhe assomava o cérebro, até aí parado. Tinha despertado agora ao som da palavra proferida. Não se conseguia mexer. Catatónica. Paralisada. Perturbação psicológica. Inventava ou ouvia tudo isto? O que queria isso dizer? Que mesmo encontrando Carmo lha retirariam? Fechou os olhos. Caiu num fosso. Fundo e escuro.

Uma hipótese de inocência

Guilherme tentava recordar-se, e simultaneamente relatar com exatidão, qual o ímpeto que o levou a pegar na mão daquela criança que chorava, perdida de facto e de medo, no estacionamento subterrâneo do centro comercial. Conhecia-a de vista. Era filha da sua vizinha da frente, as quais conhecia, por ter o hábito infantil e perdido no tempo – em que aguardava a chegada da mãe, quase sempre alcoolizada e atrasada e, não raras vezes, acompanhada por ‘colegas’ de trabalho –, pelo óculo da porta, num misto de pavor e alegria. Uma mira de ansiedade e curiosidade que ainda hoje o acompanhava. Sabendo isso, achou normal e até mais seguro e abreviado, levar consigo a criança, do que alertar os seguranças do centro, ou chamar a polícia, uma vez que poderia, comodamente e sem alarmes, entregar a criança à família, correção, à mãe – já que viviam sozinhas –, logo que esta regressasse a casa. Sem intermediários. Sem chatices. Sem delongas ou grandes conversas. Para quê dramatizar? Além de que tinha sérias e complexas dificuldades em encetar conversa com adultos. As crianças eram tão mais fáceis de entender e absolutamente mais capazes de aceitar os atalhos do óbvio.

Todavia, não era com crianças que agora se via forçado a falar. Eram adultos. Adultos maldispostos. Agressivos. Incompreensíveis. Teimavam em falar-lhe com maus modos, assumindo a sua culpa nem sabe muito bem de quê. Tudo aquilo que dizia era interpretado segundo uma lógica distorcida e perniciosa. Sentia-se enredado nas suas próprias palavras. As verdades que ia dizendo, acabavam em nós que apertavam laços na sua garganta. Forcas. Sentia-se sufocar. Sabia, por experiência, como isso ia acabar e como isso seria grave para a sua, já de si incompreensível, situação. Sentia-se rodeado por hienas famintas. Não importava aquilo que dizia, pois todas as hienas circundantes saberiam como tornar as suas palavras em armas que voltavam para o incriminar. Ávidas da sua carne. Do seu sangue. Não importava que falasse verdade ou mentira, o resultado final seria sempre igual a culpa. Culpa sua. Uma espécie de elemento absorvente naquele inquérito, naquele interrogatório viciado. Ninguém estava interessado em apurar a verdade. Ninguém ouvia com isenção. Quem questionava já tinha a sua verdade: ele era culpado. Precisavam, agora, apenas e tão-somente que ele dissesse as coisas ‘certas’ para corroborar essa teoria, prévia e falaciosa. Por isso insistiam no cansaço, na privação de sono, até que ele, por exaustão ou mera ingenuidade, dissesse algo dúbio, que pudesse ser lido de forma a encaixar no veredito previamente definido. Não tinha saída. Limariam as peças o tempo necessário para que encaixassem na imagem do puzzle que já tinham desenhado nas suas mentes.

Sempre que encurralado, Guilherme esperneava, atacava, espumava da boca, ficava frenético e incontrolável, dominado por uma cólera cega e bruta, movida a músculos intrépidos e exacerbada por uma força hercúlea, que nem ele, depois de devolvido à sua versão Dr. Jekyll, compreendida. Findo o episódio de descontrolo, logo perdia os sentidos. Sentia-se perto desse abismo. Sabia, porém, que teria de evitá-lo a todo o custo, pois qualquer descontrolo corroboraria a versão do inimigo, de que ele não passava de um depravado, um ser sem autocontrolo, capaz das maiores barbaridades e com desejos doentios em relação a crianças. Que absurdo desmesurado. Porque pensariam isso dele? De onde o conheciam, para que tal pensassem acerca de si? Apetecia-lhe chorar. Como lhe apetecia chorar. Não tinha como sair daquela armadilha. O pior, é que não compreendia porque o perseguiam daquela maneira. Apenas quis ajudar a criança perdida. Filha de uma vizinha. É certo que nunca se tinham falado, nem podia jurar que elas soubessem quem ele era ou que morava no andar em frente. Mas ele é que se sentiria cretino se fizesse de conta que não podia ajudar, que não sabia tudo aquilo que sabia. Não era mais criminoso deixar a criança a chorar, em pleno ataque de pânico, exposta a todo o tipo de perigos, do que levá-la em segurança para a casa mesmo em frente à sua, onde facilmente a poderia devolver ao ninho? Do que é que agora o acusavam? O que queriam dele? Que mais se pode pedir a um cidadão que não seja agir corretamente? Quem lhe dera a ele que um vizinho sensível, ou apenas com coração, o tivesse acolhido sempre que aguardava à porta de casa que a sua mãe terminasse o ‘serão’ de trabalho com os colegas que por vezes levava para casa. Trabalho extra, explicava-lhe a mãe, que ajudava a pagar a medicação de que ele precisava. Sim, ele precisava de apoio, de remédios, de médicos, de internamentos… Só tarde na vida perceberam que era ‘apenas’ autista. Nada que interfira no seu carácter ou bom coração, apenas na forma estranha e, por vezes, agressiva como se expressa e naquela desastrada incapacidade para lidar com os outros. Incompetência social. Nada mais.

Todos temos as nossas idiossincrasias. Aquelas eram as suas. Porque o atormentavam daquela maneira? E porque insistiam que a pequena Carmo chorava? As crianças não choram, é isso? E porque achavam tão estranho que ele a tentasse divertir e ela chorasse de tanto rir? Porque tinha ela feito chichi nas cuecas? Nunca um deles tinha sido feliz ao ponto de experimentar choro e riso em simultâneo? Que gente era aquela? Seriam, também eles, vítimas de um qualquer outro tipo de autismo ou equiparado? Estariam todos eles no espectro do autismo? Aspergers? Porque não o ouviam? Chamavam-lhe pedófilo e pervertido. Sabia bem o que isso era e ele não era isso. Apenas se atreveu a fazer o bem, a cumprir o seu dever de bom vizinho, acautelando perigos maiores. A menina estava praticamente em casa… Queria tanto chorar, mas não podia. As suas lágrimas seriam confissões aos olhos daquela tenebrosa gente. Não o queriam escutar, nem sequer ouvir. Queriam apenas castigá-lo. Calou-se. Não voltaria a falar. Concentrar-se-ia em evitar a crise que se adivinhava, em conter as lágrimas que já enchiam a represa no seu peito. Contê-las-ia com a própria vida, se a esse ponto chegasse.

A verdade e um novo amigo

Carmo não aguentava de tanto rir. Já quase não lhe saíam sons da garganta. Apenas a boca escancarada, num esgar que, de tão tragicamente divertido e aflito de tanto riso, já tinha assomos de sofrimento. Na verdade, já lhe doía a barriga de tanto rir. Sentiu que fazia chichi nas calças. Isto já lhe tinha acontecido. Várias vezes, até. Sempre que o pai, fingindo-se um gigante, e anunciando um ataque de ‘gigantices’, lhe fazia cócegas com as suas enormes mãos. Antes mesmo de estas lhe tocarem, já ela gritava de medo e entusiasmo, antecipando, graças à memória de iguais situações anteriores, a sôfrega risota de que seria acometida. Gritinhos acompanhados de lágrimas, como as que sentia, também agora, escorrerem-lhe pela cara, vermelha já de tanto esforço e felicidade.

Guilherme, este novo amigo que acabava de fazer, continuava a comportar-se, ora como um macaco – descascando uma banana, que ia comendo vorazmente, enquanto coçava o rabo e a cabeça, tal e qual como os que Carmo já tinha visto no tablet da mãe e no Zoo, onde era habitué nas tardes de fim de semana que calhavam ao pai –, ora como um elefante, enrolando a banana no braço, como se este fosse a tromba. Era tão divertido!! Não aguentava mais. Ainda bem que a mãe chegou nesse instante, com aqueles outros senhores. Sentiu que a salvavam de morrer a rir. O alívio foi tal, bem como a enorme surpresa de ver ali a mãe, onde não a esperava, que nem se questionou como é que ela sabia onde encontrá-la, sendo Guilherme um novo vizinho. Carmo já o tinha visto, mas duvidava que a mãe se tivesse apercebido da mudança, distraída como era e triste como andava. Um vizinho com quem sempre trocava divertidos piscares de olhos e meios sorrisos.

É certo que Guilherme lhe assegurara que a mãe não tardaria, e que logo que chegasse a casa, eles, no papel de “detetives do grande olho da porta” – como ele era divertido para adulto –, por onde espiavam em constante e alternada vigilância, não fosse a mãe entrar em casa sem que dessem conta, dariam por isso no mesmo instante em que a chave tocasse na fechadura. Não importava. Estava feliz e, agora, junto da mãe. Nada mais importava. Pediria à mãe que a deixasse brincar mais vezes com Guilherme. Ele era especial e tinha-lhe feito o lanche mais divertido de sempre, desenhando com a comida. Não aguentava para contar tudo à mãe. Como ela se orgulharia de si. Tinha feito um amigo e tinha vivido uma aventura. Já era crescida.

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