Este é um dos grandes festins do palato. Uma aventura dos sentidos, os quais está prestes a perder, esperemos que não por conta do ingrediente Corona, mas, sim, devido ao elevado teor alcoólico envolvido em todo o processo. Razão pela qual sugerimos que não consuma o preparado no dia da confeção, exceto se, em vez de duas intoxicações alcoólicas ligeiras, preferir uma de proporções bíblicas, o que, nestes bizarros tempos de pandemia, até seria adequado, aceitável e desejável. Se for este último o seu maior desejo, então cozinhe e consuma na hora e parta em delírio para aquele paraíso dos ébrios, de onde nem a cafeína o poderá resgatar. Como estamos confinados em casa, não se corre o risco de ficarmos por aí, caídos numa berma de estrada.
Vamos, então, explicar tudo tintim por tintim, enquanto a sua mente está fresca, que os vapores não tardam a entrar em cena, e que cena. A carne não oferece problema. Como estamos, mais ou menos, na Páscoa – ou seja, estamos, mas sem a poder celebrar em família, o que contraria o princípio básico da data cristã e a suspende nos seus efeitos práticos –, a carne pode ser o tradicional borrego ou cabrito, que por aqui odiamos. Porém, como o mundo que conhecíamos acaba de falecer, e temos um novo para inventar, sugerimos que a carne possa mesmo ser peixe. Compre-a de qualidade já que tudo o resto é de origem para lá de duvidosa. Corte-a aos cubos ou peça que lhe façam esse penoso trabalho no talho, mantendo as devidas distâncias, já se vê. Sempre estão mais habituados a isso e têm umas facas e cutelos ótimos, sempre muito afiados, que permitirão obter uns suculentos e apelativos cubos da cor da romã, os quais deve passar por álcool-gel antes de colocar na panela. Adicione tudo aquilo que é suposto adicionar-se para um refogado, como cebola, alho, azeite, louro e cenouras, para engrossar o caldo. Leve tudo à pressão, que não temos tempo para empatar, porque isto de nos dizerem que de quarentena temos tempo para tudo é pura mentira, ficcionada por ociosos, que mesmo em tempo de trabalho não cumpriam com os mínimos olímpicos. Após o primeiro entalão – que a carne deve ser mantida na linha e um pouco de bullying nunca fez mal a cubos da vazia, sendo que o lombo é mais sensível a apertões –, adicione água-pé, para apurar sabores e intoxicar um pouco. Não se deixe enganar pela água, nem acredite que vem de templos muçulmanos, que isso seria demasiado nojento. Na verdade, ela não passa de um vinho dissimulado e com desmesuradas ambições. Pretende passar-se por água, quando não passa de vinho mais aguado, o que também não faz dele vinho verdadeiro. Digamos que é um híbrido, ou será hídrico? Enfim, devido a esta combinação com H2O, ele não é tão ameaçador quanto outros vinhos, daí que resolvemos adicionar à carne e restante companhia vinho com algumas ambições de toxicidade mais consentâneas com o pretendido. Deve utilizar um vinho bem encorpado, rústico ou sofisticado – vai depender muito do seu gosto –, mas atente no pormenor diferenciador: deverá ser o vinho que tenha mais à mão – que não vale a pena uma viagem ao supermercado e o subsequente banho em lixívia antes de entrar em casa, que já nos começa a irritar a pele –, daí se esclarecer logo no título que é um vinho-mão. Deixe que evapore. Por esta altura já deve ter a cabeça leve e animada, pelo que o melhor será acionar o relógio do fogão ou outro, que o recorde de apagar o lume a determinado momento, para não esturricar o estufado. Deixe repousar, a sua cabeça e a carne, preferencialmente em locais distintos. Após recuperar os sentidos, sirva com puré de batata, esparguete ou esparregado. Há quem se limite a beber o caldo, adicionando-lhe pedaços de pão, mas isso é uma espécie de pequeno-almoço vintage e aquilo com que aqui o presentamos é um prato principal. Claro que está à-vontade, por esta altura demasiado à-vontade, para dividir o prato em quantas refeições desejar.
Por último, já sabe, se comer Carne Estufada em Água-Pé e Vinho-Mão, não conduza, já que andar por aí está proibido, daí nos ter ocorrido criar esta maravilha gustativa, que torna mais doce e menos revoltada a vontade de permanecer em casa.
Ingredientes:
– Carne cor de romã cortada em cubos com sapiência e facas de primeira
– Coisas avulso para o refogado, cortadas à sua maneira
– Água-pé
– Vinho-mão
– Manter-se em casa são, mas não necessariamente sóbrio
Tempo de preparação:
Palavra de honra que não nos recordamos, não é que queiramos guardar segredo.
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