P’ráli estávamos as duas. Vistas de fora, apenas duas mulheres sentadas lado a lado. Possivelmente irmãs. Provavelmente familiares ou apenas amigas, que o amor acaba por nos tornar iguais na diferença. Vistas por dentro, dois trapos de gente. Coração apertado. Punhos cerrados. Cerrados de medo, não de fúria. Também de fúria, mas mais de medo. Um medo selvagem, primitivo. Uma tensão que prendia nervo, ossos e carne num aperto inconsciente, involuntário, primário. Por fora, calma, seriedade, olhar perdido no nada, … Ler mais
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Contidianos: Substantivo muito indefinido (porque definir já é delimitar), do género que mais aprouver (que somos por todos os tipos de liberdade), em número que se quer sempre muito pluralista (na medida em que quantos mais, melhor). Sobre eles dizem os mais eruditos, e alguns tolos também: “Um Contidiano por dia, não sabe o bem que lhe fazia!”
Era chegado o momento. Não estava para aturar mais tudo aquilo. Uma chefe insegura, que se impunha pelo medo, gerido com insultos e humilhações públicas, rebaixando os funcionários a bel-prazer, em frente de toda a equipa, sem motivos substantivos para tal. E mesmo que os houvesse, todos merecem respeito, mesmo quando erram, mesmo quando não prestam. Gritar. Humilhar. Cuspir ódio sobre as pessoas só revelava o espírito mesquinho que habitava o cargo. Quanto mais insultava, menos valor colocava nas ideias … Ler mais
Era o doce e extasiante travo da liberdade. Sem limites. Sem restrições. Sem moralismos. Sem reprimendas ou impossibilidades. Apenas o mundo à sua frente. Apenas ela e o universo. Uma astronauta na enorme aventura do espaço e do tempo. Só assim se é livre. Sem constrangimentos. Apenas vontade e caminho. Apenas ânsia de seguir. Só mais uma volta ao quarteirão. Mais uma ronda pelo bairro. As pernas doridas de tanto pedalar, mas nem sinal de abrandamento ou cansaço. Era livre. … Ler mais
Eduardo de pé. À sua frente. Dizia-lhe coisas lindas. Coisas que nunca ninguém antes lhe tinha dito. Eduardo não perdia tempo com adjetivos de beleza, cores de olhos e tons de cabelo brilhante que mudava de cor conforme a luz o moldava, entre o louro esverdeado no verão e o caju avermelhado no outono, quase chocolate nos dias de chuva. Eduardo sabia mais do que cores e harmonia. Ele falava-lhe de coisas que nascem dentro de nós e que nem … Ler mais
Os tremores. A comichão. As dores. A brutal ansiedade. A avidez. O apelo do desespero. A disforia. Passou o pacote. Janeco aquecia já a colher. Dividiriam. A meias. Não havia tempo para mordomias, nem seringas, ao que parecia.
– Falta muito?
A voz sumida. Cavernosa. Não a reconhecia. Era Janeco quem falava ou tinha sido ele? De quem era aquela voz? A quem faltava o tempo? Quanto tempo é pouco tempo quando falta o tempo? Janeco sempre mais funcional, a … Ler mais
Lamentava muito. Profunda e insanamente. Lamentava tanto e tão sofridamente, que todas as razões da sua existência se tornavam nulas, o que remetia para o seu próprio nascimento. Porquê ter nascido? Lamentava-o agora, já tudo perdido e sem retrocesso, mas, pior do que tudo, lamentara-o no momento em que poderia ter sido diferente. No segundo exato em que poderia ter mudado o curso das coisas e com isso o rumo da sua vida. Tinha tido a chave na mão, rodado … Ler mais
Olhou mais uma vez para o cansaço exposto nos olhos ainda assim demasiado abertos dos filhos. O filho preso a si pelo cinto dos casacos. A filha, presa já só e apenas nos seus braços à custa de fé, que as forças tinham ficado lá atrás, no quilómetro cento e muitos daquela transumância forçada e desumana. Era apenas a vontade, mais do que isso, a necessidade, o pânico e o desespero que mantinham a criança nos seus braços e estes … Ler mais
É difícil de contabilizar. Impossível de enumerar. A memória não o permite. A vida não se compadece com essa aritmética, com as contas do que deveria e poderia ter sido feito a cada tomada de decisão, no lugar daquilo que de facto se fez ou mesmo daquilo que deixou de ser feito. Nada fazer já é decidir, já é optar, ainda que a inércia não tenha sido consciente, não tenha sido uma decisão de facto e apenas o resultado de … Ler mais
Tinha apenas fechado os olhos. Um segundo? Não mais do que isso, estava certa. Podiam ter sido cinco minutos, vá, que o tempo é traiçoeiro e a sua cabeça funcionava num outro fuso horário, mas… Aquilo era ridículo e desprovido de qualquer pingo de lógica. Não havia explicação, nem recorrendo à fantasia. Como é que o calendário anunciava já de novo o 25 de dezembro para daí a uns dias? Estaria louca? Teria terminado mais uma volta inteira em torno … Ler mais
Há algo de absurdamente doloroso e intolerável na última vez. Exulta-se tanto a primeira vez, e nada se diz sobre a última. Não aquela última vez que só a posteriori percebemos ter sido a última vez. Como quando recordamos que vimos sicrano nas últimas férias e estávamos longe de saber que nunca mais estaríamos juntos, ou beltrano ainda ontem e mal sabíamos da impossibilidade de novo encontro. Não. Essa última vez não dói na carne porque passa por ser apenas … Ler mais
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