Capítulo I – Carlos da Maia
Apostado em diversificar o seu negócio, e também porque era pessoa do seu tempo, inquieto e criativo, Litos da Maia – Litos, de Carlitos e da Maia porque foi lá que nasceu e foi criado – fixava os olhos esbugalhados numas letras mal escritas no ripado que servia de estrado ao beliche superior, debaixo do qual dormia há já oito anos. Lembrava-se bem, entre a mágoa e a raiva, do primeiro dia que fixara aquele estrado pela primeira vez. Era pouco mais velho do que um garoto, apenas uns 12 anos, e tinha sido empurrado para aquele abrigo de crianças e jovens desavindos – o mais correto seria dizer de seres escorraçados de qualquer possibilidade de afeto – pelas ameaças ferozes que ainda hoje lhe mordiam os calcanhares: “Faz-te à vida, puto, que na minha não tens lugar”; “Preferes uma vida má ou não ter vida, miúdo?”. Delicadezas sussurradas ou gritadas nos ódios do álcool pelo seu quarto padrasto que, no que toca ao amor, a sua mãe era uma experimentalista. Litos sempre apreciara isso na mãe, já que as mudanças são refrescantes e entre um e outro amante, as coisas melhoravam lá em casa e ele tinha o colo da mãe só para si. Mas o sossego era mínimo, já que, apressada pelo avolumar das contas por pagar, a mãe não tardava a trazer novo ‘fiador’ lá para casa mas, Carlos nunca percebeu bem porquê, o seguinte era sempre pior do que o anterior e isso ficou provado logo no segundo camafeu que a mãe lhe apresentou. Parecia que o desgaste que cada um desses monstros causava na mãe, lhe roubava ou consumia encantos ou força suficientes que não lhe permitiam sair-se melhor na caçada seguinte. Pobre mãe.
Capítulo II – O Quarto Bandalho
Ao quarto bandalho, quando as ameaças começaram a fazer-se acompanhar de pancada, Carlos pegou fogo ao homem. Um descuido, claro. Uma desgraça, já se vê. “O anjinho não teve culpa nenhuma, senhor guarda, que o meu Carlitos é uma criança santa”, explicou-se a mãe ao batalhão de fardas que apareceu lá no bairro, quando finalmente identificaram o estupor. “Nem sequer foi preciso regá-lo muito, com o bagaço que tinha no bucho, quase teria bastado uma simples faísca”, confessaria anos mais tarde, o ‘beato’ Carlos ao seu companheiro do beliche de cima, o Becas, de seu nome completo João da Ega, mas como era bem mais parecido com o Becas do que com o Egas, lá ficou Becas. Carlos da Maia jamais foi associado ao crime que matou o quarto padrasto, de tal forma brutal e violento que o petiz nem chegou a ser suspeito de tal malvadez. Acabaria naquela espécie de orfanato porque a mãe, que tardou demasiado tempo a conseguir o quinto namorado, foi despejada e a proteção de menores entendeu que Carlos precisava de um teto. As coisas que passam pela cabeça das pessoas. Desde quando um teto é substituto de afeto? Ele teria preferido dormir ao relento no colo da mãe do que debaixo daquele beliche, quente, é certo, mas de coração gelado.
O ‘homem tocha’, como lhe chamava Litos, tinha despertado nele a paixão pela pirotecnia e pelo seu uso urbano. Nunca lhe tinha dado, por exemplo, para incendiar florestas, achava isso horrendo. Que culpa tinham as árvores, a Natureza, as gentes do campo e os bombeiros para que acabassem por ser os mais prejudicados com megafogueiras? Nada disso. Não era desses pirómanos.
Capítulo III – Cocktails e as primeiras Estrelas Michelin
Litos tinha-se especializado em cocktails molotov, e, ainda longe de completar 20 anos, era já uma referência nacional na arte dos mesmos. Até lhe chamavam chef Litos. Por isso, na hora de pagar, e porque alguma contenção era vital a qualquer negócio clandestino, a moeda de troca eram ‘estrelas Michelin’. Genial, hã?! Já tinha ‘estrelas’ suficientes para sair dali, de debaixo daquele beliche, mas aquela tinha sido uma boa casa e andava a adiar o inevitável. Além de que queria ultimar um novo explosivo engarrafado, no qual andava a trabalhar e que dispensava o petróleo. Era o seu novo cocktail Abade de Priscos. Uma receita inovadora, com uma carga letal e um pavio mais estilizado do que um mero trapo. De novo intrigado com as letras, um somatório de gatafunhos, lá conseguiu organizá-las e concluir que se tratava, afinal, de uma mensagem do Becas, desaparecido há dois dias.
“Vem ter comigo à Damaia”. À Damaia? Em plena ‘mouraria’? Saltou na cama num ápice. Becas bem lhe tinha dito que estava em vias de lhes arranjar o trabalho das suas vidas. Apenas não referiu que seria tão a sul, caramba! Iria de comboio, seu meio de transporte favorito e até já planeava andar de metro, em Lisboa. Seria uma viagem mix, um tanto de trabalho, outro tanto de lazer. Becas era um bacano do melhor. Voltou a deitar-se no Beliche e, com a ponta da sua naifa, amiga de tantas ocasiões, riscou a mensagem de Becas, para que ali morresse o segredo do duplo desaparecimento.
Capítulo IV – Ele é demais, carago!
Chegado à Damaia, não confundir com ‘da Maia’ – como mentalmente brincava Litos, um pouco intoxicado com algumas ‘cenas’ que tomara no comboio, afinal tinha-se enganado e apanhara o regional, com paragem em todas as estações e apeadeiros, que lhe deram tempo para perceber como o país era enorme e o tempo demorava a passar, pelo que tomara as suas ‘cenas’ quase todas –, Litos sentiu-se perdido. Como encontrar Becas? A Damaia não era propriamente uma rua, quer dizer! Enfiou-se num pequeno centro comercial e, apesar de brutalmente toldado, o cérebro de Litos captou os sinais vermelhos – é uma espécie de defesa inata dos putos da rua, intuir onde param os seus pares –, e logo percebeu que uma das lojas era particularmente concorrida. Nela entrava e saía gente nova. Parece que por ali desbloqueavam telemóveis e ‘reparavam’ equipamentos vários. Mal entrou, deu de caras com a pita mais gira em que já tinha posto as suas pupilas dilatadas. Em comum tinham o tamanho anormal das pupilas, as dele a cobrirem toda a íris, e as dela mínimas.
– Tens Ecstasy? – Perguntou Litos à queima-roupa.
– Agora já não! – Ela ria descompassadamente. Ele tentou o mesmo, mas sem sucesso.
– Pudera, deves ter metido tudo. És de mais, carago! – Atirou ele, completamente embeiçado, pela droga e pela miúda.
– Certo.
– Certíssimo. – Anuiu Litos, dobrando os erres à moda do Porto ainda com maior enlevo.
Ela continuava a rir, sem lhe tirar os olhos de cima a baixo.
– Não és daqui –, disse ela.
– Não. Não sou da Damaia, mas sou da Maia.
Capítulo V – O Amor no WC
Desataram ambos a rir de tal forma que os seus corpos se desengonçavam por completo, numa espécie de bailado contemporâneo de última geração. Mandaram-nos sair da loja de compra e venda de equipamentos eletrónicos ‘desviados’ e outras cenas maradas, claro está. Ali, o que menos se desejava era chamar a atenção.
Litos e a miúda, enrolaram-se logo ali, sem perda de tempo ou troca de nomes, no WC do centro, vazio àquela hora da manhã.
– Sou a Dádá.
– Sou o Litos, e amo-te, carago!
E, pronto, sentiam-se praticamente casados. Melhor, sentiam-se no céu. Eram almas gémeas, de sempre e para todo o sempre. Tinha sido um daqueles encontros que, quando retratados no cinema, numa qualquer comédia ou drama romântico – que para o caso o género é indiferente –, um tipo pensa logo: “Que grande treta! Isto é impossível! Nada acontece assim na vida real.” Pois a vida real ali estava e a acontecer exatamente daquela forma teatral e inesperada.
Já sem se lembrar da razão por que tinha descido da Maia à Damaia, Litos achou estranho quando, em plena zona de refeições do centro, avista o Becas em amena cavaqueira com um mega hambúrguer.
– Meu! – Avança para Becas.
– Litos, pá, ainda bem que vieste, bacano. Orientei, aí, uma cena bué grande p’rá gente, man! Assim tipo, mega, ‘mêmo’. Derby na capital e cocktails para a malta toda. Entrei em acordo com uns e com outros, entendes mano? Vamos ficar ricos. Ricos.
O tom sussurrado de Becas indiciava a seriedade da coisa. Litos sentiu-se delirante, mas sem discernimento para saber se tinha sido da droga ou da excitação do momento. Não importava. Tinha uma namorada lisboeta e o negócio a prosperar. Estava a sair-se bem na vida, pá! “Do best!”, pensava no seu doce adormecimento mental. Tinha de sair do marasmo, preparar as suas novas doses de Abade de Priscos. Precisava de garrafas e de tudo o resto para o conteúdo, mas cuja receita jamais revelaria, nem ao Becas, não fosse este descair-se. Quando bebia, por vezes os próprios cocktails, o Becas saía de si e não era de confiança. Mas apenas nessas alturas. Fora isso, era seu irmão do peito. O melhor amigo do mundo. Nisto, Becas pergunta:
– Quem é a garina?
– É verdade, esta é a minha miúda. Como é que te chamas, mesmo?
– Maria Eduarda, mas todos me chamam Dádá.
– Isso, Dádá. Este é o Becas, meu irmão.
– Não são parecidos – diz Dádá.
– Pois não. Nada parecidos, até porque não somos família, mas é como se fossemos. Só o tenho a ele, não é Becas?
– Isso, e eu só tenho o Litos. Na verdade, parecidos, parecidos são vocês, meu. São iguais!!! Iguais, iguais. Se vestires a roupa dela e ela a tua roupa… Que cena, meu!
– A isso chama-se amor, bro! – Filosofou Litos, maravilhado com o facto e enternecendo Dádá, cada vez mais perdida de afetos pelo rebelde cozinheiro de cocktails.
Capítulo VI – Dádá tudo e Nosso Senhor Omnipresente
Mesmo não apanhando tudo, tudo, Dádá percebeu que Litos precisaria de uma grande cozinha, para preparar todos aqueles litros de cocktails de que falavam para aquela enorme festa que dariam no final do jogo de futebol que decidiria o campeonato. Caramba! Tinha finalmente arranjado um namorado e era um verdadeiro empresário das bebidas. Um barman! Mais, ele fazia bebidas espirituosas, pois que eram de um abade. Mais espírito santo do que isto, Dádá desconhecia. Só em plena missa em dia de Páscoa ou Natal. Abade de Priscos devia ser a coisa mais beata que alguma vez ouvira pronunciar. Estava, deveras, encantada com a perspetiva da sua vida. E nem precisava de renovar o cartão de cidadão, quando se mudasse com o namorado para o norte, afinal eram ambos (da)maia. O destino tinha destas ternuras. Sempre compensava ter sido boazinha a vida toda. Toda. E Deus compensava na hora. Era ótimo pagador. Logo depois de ter ajudado a mãe a fazer uma ‘entanásia’ à avozinha, que estava em sofrimento, veio de lá uma pequena herança. Quando espancou aquele miúdo na escola que passava a vida a arreliá-la com gracinhas do género “Ela Dádá tudo!”, deixou de ter de ir à escola e ganhou um monte de amigos novos, que, tal como ela, achavam normalíssimo sovar quem os insultava, a fim de levar a cabo a palavra de Jesus, de dar sempre nas duas faces, coisa que ela cumpria e replicava com primor até à exaustão. Agora, que roubara pela primeira vez, para conseguir dinheiro para uns brincos de plástico e mais umas cenas para consumo próprio, vai à loja vender os computadores e não é que se apaixona? Deus não apenas existe, como passa a vida a olhar para ela. Ser uma pessoa justa compensa, e muito, congratulava-se Dádá.
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Capítulo VII – Damásio SalSede
– Sei onde podem cozinhar à vontade.
Litos e Becas olharam a miúda com admiração. Mesmo falando em código a miúda tinha descortinado que precisavam de um sítio para preparar o ‘menu’, por assim dizer. Quando deram por eles – na verdade, Litos e Becas passavam grande parte do tempo sem darem por coisa alguma –, estavam a ser apresentados ao Damásio, dono do SalSede, uma tasca nauseabunda que o próprio tratava por restaurante de penúltima geração, por estar já a caminho, como explicou apontando para a barriga de grávida da mulher, a última geração da família. Já tinha a quem deixar o ‘estaurante’, como ele dizia sem o menor respeito pelo ‘r’. Os amigos entreolharam-se e concordaram que serviria, desde que não tivessem de comer ali, claro, que aquilo não via uma esfregona há muitos campeonatos nacionais.
Entre dentes, de alho, Dádá, lá foi explicando a grandiosidade do feito do namorado. Era um chef de renome, inventava cocktails e serviria um banquete na final do jogo desse domingo. O homem exultava de admiração pelos fedelhos. Afinal, eram barmans!
– Isso é muito chico, é chico a valer…
– Quem é o Chico? – Perguntou Litos, levando discretamente a mão à naifa que trazia no bolso traseiro dos jeans coçados.
– Ele quer dizer que são chicos espertos, vocês. Ele está sempre a dizer isto. Não liguem! – Acalmou Dádá, que cortava as unhas com a tesoura de cozinha, enquanto aguardava que eles começassem a trabalhar.
Lá explicaram que necessitariam de ficar sozinhos e que ninguém podia entrar enquanto não concluíssem. Damásio do SalSede fez um breve cálculo aos custos que implicaria ter o ‘estaurante’ encerrado e disse-lhes que teriam de pagar para aí uns… cinco euros.
– Roubalheira – Gritou Becas enfurecido e com os olhos flamejantes.
Por ter pânico de confrontos diretos, o pobre do Damásio encolheu-se todo a um canto.
– Pagas-nos, tu, cinco euros a cada um para que não usemos o estaminé mais do que um dia, ok?
A voz de Litos não deixara espaço para negociações, além de que, mesmo antes de concluir, já o de SalSede repetia acabrunhado:
– Claro que sim, claro que sim.
– Estes teus amigos são mesmo chicos a valer, Dádá! E um deles é a tua cara chapada. Que coisa mais estranha.
Concluídos todos os Abades de Priscos necessários, encontrado transporte para levar metade a cada claque envolvida no negócio, Litos e Becas estavam ricos. Experimentavam aquele tipo de felicidade contagiante, em torno da qual Dádá gravitava, enquanto SalSede dava pulinhos de felicidade, pois, afinal, num gesto de boa-vontade, os garotos não lhe tinham cobrado pela ocupação do ‘estaurante’. Boa gente, aquela miudagem do norte.
Capítulo VIII – O Pai de Todos e a Revelação
Sentiam-se tão embriagados e intoxicados com a serotonina que a felicidade fabricava alegremente nos seus cérebros – ou por isso ou por causa dos gazes venenosos que tinham snifado devido às incontáveis horas a produzir Cocktails Abades de Priscos, bem mais fortes do que os clássicos molotov –, que Litos defendeu que não levaria Dádá consigo, de volta à capital do seu coração, sem falar com o pai dela. Hoje, claro está, arrepende-se amargamente de tal decisão, mas isto, quando o destino decide uma coisa, nada o demove. Logo que entraram no apartamento, de tipologia Menos Zero, habitada por mais móveis do que os que comportava, Abelha-Maia, como era conhecido o pai da donzela por quem se apaixonara, um homem-zangão com dois metros por três, olha estarrecido para Litos durante uma eternidade e, de repente, com os maiores olhos do planeta cheios de lágrimas, grita:
– Meu filho. Meu filho.
Litos apreciava os laços familiares, mas toda aquela intimidade no primeiro instante em que conhece o pai da noiva, quer dizer, era até escandaloso, muito pouco másculo, achou.
Becas, incrédulo, repetia sem parar:
– Caramba, são todos iguais. Vocês são todos iguaizinhos. Que droga marada. O que é que nós tomámos?
– Tudo. Nós tomámos tudo, Becas, não entres em paranoia. Está tudo bem.
Todos estavam mais calmos, exceto o ogre da Damaia que continuava a gritar ‘meu filho, meu filho’ de olhos fixos no Litos.
Nisto, os olhos de Litos, que já tentava engendrar um plano de fuga – afinal conhecer aquele louco não tinha sido a sua melhor invenção, admitia –, caem numa foto emoldurada sobre o sofá plastificado.
– O que é que a foto da minha mãe está aqui a fazer?
– Esta é a vossa mãezinha. Dos dois. De ti Carlinhos e de ti Eduardinha. Quando nos separámos, cada um ficou com um dos bebés, por ser mais barato. Entretanto, tinham-me dito que tinham morrido num incêndio, tu e a tua mãe. Agora isto…
– Somos irmãos? Eu e o meu namorado somos irmãos?
Dádá sufocava, até porque sempre lhe tinham dito que a mãe tinha morrido e… Um irmão?
– Namorado? – Choramingava o pai, prestes a ter uma apoplexia. Para um homenzarrão daqueles, tanta choradeira era patética, pensava o cérebro nublado de Becas.
– Isto deve ser um plano para nos afastarem, Dádá. Vamos embora.
Dádá concordava, onde já se viu história mais descabida. Nem o pior guião de uma novela chegaria a tanta bizarria. A inquietação, todavia, fazia com que os seus corações batessem descompassadamente e que, no fundo, sentissem uma certa repulsa por tudo aquilo. E se fosse verdade? Todos os achavam parecidos. Todos quer, dizer, apenas o drogado do Becas e o tonto do SalSede. A foto da mãe… Mas que grande maçada! Mas que raio!
– Sem stress, pá. Se estiverem sempre out, o que é que vos importa que sejam irmãos? E nós estamos quase sempre noutra, certo?
Becas, pensava Litos, tinha toda a razão. Aquele era um assunto para horas de sobriedade ou ressaca e dessas, tinham eles poucas. Eça é que é Eça!
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