É curioso. Há notícias que não são apenas pedaços de informação. Há coisas que assinalam, no nosso percurso de vida, um antes e um depois, impondo que não consigamos ser, em absoluto, a mesma pessoa que éramos, ou entendíamos ser, antes da tomada de conhecimento deste ou daquele facto. Podemos fingir. Tentar enganarmo-nos, com diligências e artifícios mais ou menos eficazes. Ludibriar a memória, fazer de conta que é tudo um grande equívoco ou até um enorme disparate. Uma mentira. Podemos tentar travar o trajeto dessa memória, dessa notícia, até àquele sítio na nossa mente em que ela se senta irremediavelmente e sem hipótese de despejo na cadeira das verdades, daquilo que temos como certo. Daquilo que é. Uma verdade que apenas o era porque dela tinha agora conhecimento. Se calhar, já era verdade, autonomamente, sem necessidade da sua tomada de consciência, mas existia nessa sua esfera, num universo outro, distante porque desconhecido. Agora, porém, as galáxias tinham convergido, tinham-se chocado e unificado numa nova realidade.

Logo na primeira manhã, no primeiro acordar do sono, após uma dessas notícias, há uns breves segundos em que – enquanto o cérebro se liga, faz o seu restart e conecta todos os seus circuitos – tudo é ainda possível, na medida exata em que parecemos ignorar ainda essa informação que nos transformou na véspera. É um brevíssimo intervalo de tempo, quase o mesmo que requer um pestanejar, mas é, ainda assim, um pequeno e breve mar de bonança. Tudo ainda é igual ao que era. Ao que sempre foi. Ainda cremos ser a mesma pessoa. Reconhecemo-nos ainda. O barco mantém-se a navegar, não foi ainda abalroado nem engolido pela onda. O barco ainda flutua. Não há vidas a lamentar. Na verdade, ainda há vida e uma enorme esperança, já que esta se alimenta de calmaria. Já a fé, essa, requer tormentas, morte eminente e aquele desejo insano de que o fim não seja fim. São breves segundos de paz. Uma espécie de ínfima negação que a nossa memória nos permite. Os circuitos cerebrais, todavia, restabelecem-se rapidamente e, não havendo notícias de Alzheimer, logo, logo nos recordamos daquilo que, apenas na véspera, alterou todo o contorno de uma vida, obrigando a uma paragem, ou a uma curva em cotovelo no trajeto que assumíramos ser o nosso e que indicava outra rota, outra direção.

Genésio mal teve tempo de saborear esses segundos de ignorância. O seu cérebro estava demasiado agitado nessa manhã para que não lhe reencaminhasse o ‘e-mail’ urgente que havia chegado à sua mente no final do dia anterior. Cada departamento do cérebro, ainda que agindo com alguma autonomia, impõe ritmo e celeridade na comunicação entre repartições, pelo que a memória estava demasiado impaciente para que deixasse a preguiça alongar espreguiçamentos e bocejos. Um alerta vermelho determina ações precisas e atempadas. Não era hora de não se lembrar que a sua vida tinha mudado por completo. O que é duplamente estúpido, pensou Genésio, já bem desperto, mas ainda de olhos fechados. A vida dele não mudou no dia anterior. A sua vida há muito que estava a mudar, mas como disso não tinha conhecimento, era como se tudo estivesse na mesma. Talvez mais valesse não ter tido conhecimento, manter-se na ignorância. Esta, a ignorância, tinha-lhe permitido a felicidade, o descomprometimento, leveza e alegria. Porque se valoriza tanto o conhecimento? O que tem isso de bom, quando nos impinge sofrimento e ansiedade como hóspedes permanentes, numa casa onde não há espaço para tanta preocupação? Continua a ser apenas um a pagar a renda, a reparar torneiras incontinentes e dobradiças perras. Para quê mais gente num espaço tão exíguo? Onde armazenaria ele, agora, tanta preocupação? Alguma coisa teria de ir fora, de forma a conseguir libertar prateleiras e meia dúzia de gavetas para todas estas coisas novas que o assoberbavam. Mas o quê? Tudo era importante, além de que já tinha tudo tão bem organizado, compartimentado e indexado que qualquer alteração ou mudança de sítio se revelariam em enorme transtorno. Genésio, aterrorizado, percebeu que não podia esvaziar por completo nenhum dos itens. Assim, o que se impunha era que reduzisse o espaço que cada coisa ocupava. Livrando-se de pequenas partes de cada coisa, poderia encaixar na mesma área espacial, um pouco mais de coisas. Paz de espírito, despreocupação, sanidade mental, felicidade, compreensão, simpatia… Tudo foi reduzido, tal como numa empresa em plena crise financeira. Não se eliminam logo departamentos, mas reduzem-se todos eles à sua expressão mínima, para que ainda se consiga produzir, para que ainda se consiga funcionar parecendo ainda, aos de dentro e aos de fora, que ainda se é uma empresa. Mantendo-se a crise é que é pior. Aí, urgem medidas drásticas e cortes pela raiz. Achou que não era ainda o caso.

By Arnulf Rainer

Genésio, porém, não se iludia. Seria sempre uma outra versão de si. Um outro eu já na fornalha, a fim de cristalizar o novo organograma. Um novo plano estava já em marcha.

– Você não é um homem assim tão grande que justifique um coração tão volumoso, tão magnânimo. O seu coração tem o dobro do tamanho da média. Tem de parar com tanta bondade. Tem ainda bons anos pela frente, não os reduza em nome de disparates, como seja o amor ao próximo. O mais próximo é você mesmo, nunca se esqueça disso.

A recomendação médica não deixava espaço a ‘mas’, nem estes lhe foram permitidos.

– Não há cá ‘mas’ nem mais ‘mas’. A partir de hoje, na sua condição de cardíaco, tem de pôr cobro a 90% de toda essa bondade. Recomendo-lhe até, um ano de abstinência, a fim de estabilizar as batidas cardíacas e travar o crescimento desse coração gigante.

A medicação era clara, bem como a posologia. Teria de começar de imediato com o tratamento. Pois iniciá-lo-ia já. Despejou a sua primeira dose de antipatia e impaciência – agora já mais desafogadas nas suas respetivas prateleiras –, ao pequeno-almoço, lembrando alto e bom som, para que todos no café ouvissem bem a sua determinação, que todos estavam com pressa, pelo que respeitassem a ordem de chegada e a vez de cada um. E a menina Justa que se mantivesse atenta a quem estava primeiro, que isto de filhos e enteados não fica bem nem nas famílias. Os habitués, ainda acharam que era uma das graçolas de Genésio, o bonacheirão, homem de esmerada educação e demasiado civilizado para se apoquentar com ordens de chegada, mas logo vislumbraram aquele brilho febril no seu olhar. Todos o reconheceram. Era cólera.

Genésio estranhou-se, mas não deixou de apreciar o respeitador silêncio que ia abrindo alas à sua passagem. O seu espaço estava a aumentar. Dilataria ele a sua própria liberdade, agora que tinha mais área para se movimentar? Manteve o registo ‘alerta vermelho’ durante todo o dia, alarmando, em particular, os colegas de trabalho mais insolentes e incumpridores, que, por norma, contavam com a sua boa-vontade para horas extra, que permitiam a Genésio cumprir com os prazos e afazeres de toda a equipa. Era o fim de uma era. O nascer de um novo homem.

Curiosamente, o tratamento não era complicado, nem difícil de cumprir. Era até libertador, não ter de pensar em ninguém que não nele próprio. Porque nunca o fizera antes? Porque razão, a mente e o coração lhe pendiam sempre para o exagero de apenas se preocupar com os outros? Com o bem-estar e a felicidade destes em vez de com as suas próprias necessidades e satisfação pessoal? Aquilo era até divertido e libertador, já para não referir que era a melhor peneira do universo. Era ver os crápulas a fugirem e os bullys a retraírem-se. Genésio entendia aquele novo eu como um exercício de coragem, de ousadia. Desafiar os outros era mergulhar na natureza humana e das relações interpessoais. Aquilo era até didático e lúdico. Um verdadeiro jogo. Como ele acabava de alterar o código-base das regras habituais, havia quem se sentisse completamente perdido, preferindo desenrascar-se a solicitar a sua ajuda ou parecer.

Foi divertido. Pelo menos, nos primeiros meses. Divertido e compensador, clinicamente falando. O seu médico exultava. O coração não voltara a dilatar e, parecia, tinha até regredido um pouco. Melhores notícias era impossível. Genésio começou depois a aperceber-se de que a satisfação inicial, tal como uma droga, deixara de surtir o mesmo efeito. Passara a entristecê-lo. Começava a perceber a mesquinhez da natureza humana. As pessoas eram muito ‘pequeninas’. Tão ínfimas e insignificantes que, por vezes, seria fácil pisá-las e esmagá-las ou apenas nem as ver, tal era o seu reduzido tamanho ou importância. Os amigos não o eram de verdade. Eram apenas pessoas de quem gostávamos um pouco mais, o que nos impedia de perceber as suas verdadeiras intenções. Reconheceu honrosas exceções, mas em número tão limitado que não conseguiu evitar escandalizar-se.

Porque razão nunca se apercebera desta tão enorme insignificância? Porque andara toda a vida a olhar o mundo com a graduação incorreta, com as dioptrias inapropriadas. O peso de um coração grande trouxera-lhe nitidez e acuidade a todos os sentidos. Aportou-lhe uma visão mais clara e nítida das pessoas. Calibrando-se pela média, Genésio percebeu que era agora apenas isso, um homem médio. Sem excesso, sem defeito. Apenas mais um cínico. Achou que não se incomodava com o facto, até porque os resultados dos seus exames físicos denunciavam melhoras alucinantes e o seu médico utilizava linguagem efusiva, colando-se quase ao fenómeno milagreiro.

– Genésio, você devia ir de joelhos a Fátima.

Genésio, num primeiro momento, e porque não é homem de fé, nem nasceu nem se criou segundo os cânones cristãos, horrorizou-se e assustou-se seriamente, pois deu conotação sexual a tudo aquilo que o médico dizia em modo de excitante exaltação. Qual Fátima? A dos recursos Humanos?

Genésio percebeu nesse instante que já não dava grandes ouvidos a quem quer que fosse. Tornara-se desconfiado, petulante. O médico apenas se autoenaltecia pelo que conseguira num caso tão complexo quanto o de Genésio: o de um coração que se agigantava para quase o triplo do tamanho de um órgão cardíaco ‘normal’.

Normal. Médio. Calibrado. Desde quando Genésio se medira ou pesara pela medida do meio? Desde quando sonhou ser normal? Desde quando entendeu ser o seu caminho igual ao de todos os outros? Desde quando? Genésio entrou em depressão. Reconheceu o pânico e a tristeza, sem surpresas ou inquietações. Com o seu universo de amizades num crescente quarto minguante, com a hipocrisia como amante, o desfecho não era completamente inesperado. O médico não entendia as razões, agora que caminhava a olhos vistos para a cura. Agora, que era um novo homem.

Um novo homem não interessava a Genésio, que já tinha demasiadas saudades de si para se reconhecer nesse novo homem, tão cheio de ódio que até o coração lhe mirrava no peito. Genésio decidiu suspender o tratamento. Viver livremente como mais lhe aprouvesse. Dispensar as novas lentes com que observava o mundo. Preferia ser visto como um pateta feliz do que saber-se um astuto miserável. O mundo que continuasse como sempre fora, voltaria ele a olhá-lo com mais amor e compreensão. Estava na sua natureza. Porque razão a contrariaria? O que era mais importante: A sua incapacidade torácica para acolher um coração em permanente crescimento? Ou a felicidade diária de um coração onde tudo cabia e onde a tudo era permitido brilhar?

Genésio sabia as respostas e sabia que estavam corretas, que acabaria aquele teste com 100%. Nota máxima. A mesma que deu ao seu coração, juntamente com a autorização expressa para rebentar quando quisesse. Ele assim fez.

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