Passava os dias à janela. A ver o mundo. O mundo de quem passava por ali, que o resto do mundo passava noutros lados, por outras janelas. A sua dava para aquela estreia rua. Poucas pessoas, a caminho do trabalho, do café e das compras. Pessoas com crianças que as iam levar e buscar à escola. Isto quando havia escola. Agora, tudo se passava em casa. Havia o mesmo, as mesmas coisas ou parecidas continuavam a acontecer, mas de forma diferente e sempre no sítio de sempre: em casa. Na casa de cada um. Na casa de todos. Não na sua. Não tinha crianças. Nem cão, para levar à rua. Poucos carros. Sempre haviam sido poucos, mas agora eram ainda menos. Menos carros, menos gente. Tudo em casa. À janela. Noite e dia, numa altura em que a noite se assemelhava cada vez mais ao dia e o dia se travestia de noite, nas poucas pessoas, no trânsito quase nulo, no silêncio, no abandono. Poucas árvores também, mas nela percebia agora os pássaros, as abelhas, os insetos, o pólen, as folhas que se renovavam e se revezavam, numa, agora percetível, mudança de cor. Verdes para todos os gostos. Já la deveriam andar quando, mesmo que à janela, ela espreitava o mundo, aquela sua magra fatia de universo, mas noutros tempos procurava movimento, vida, gente e pouco reparava nessa outra vida, mero pano de fundo de tudo o resto. Os plátanos agigantavam-se. Cobriam já mais de metade do prédio fronteiriço, largando cada vez mais neve dos seus ouriços, provocando os tão assustadores espirros e a necessidade constante de mais uma passagem de pano do pó sobre os móveis. Talvez devesse fechar a janela. Protegeria melhor o interior, limpo e arrumado, de mais uma camada de poeiras. A poeira é invisível, exceto quando pousa nas superfícies. Aí, torna-se véu, depois manto e logo coberta. Imaginava esse cenário impossível, de uma total neblina de pó sobre todas as superfícies de casa e sobre elas o seu indicador indicando palavras e poemas, escrevinhando nostalgias que, também elas, se depositavam no seu peito, onde há muito ninguém se atrevia a escrever com o dedo, palavras e emoções.

A D. Custódia. Tantas recomendações para que não se saia de casa naquela idade, e ela ali ia. Ao pão? Acenou-lhe com moleza. Fixou-a com a pouca curiosidade de quem adivinha a que vai. Isso. Agora vai virar à esquerda, contornar a papelaria e entrar na mercearia do indiano. Não. A D. Custódia deve preferir o pão alentejano do café da Guida, umas portas mais à frente. Pelo volume do saco, no regresso, se nada mais a distraísse, perceberia onde tonha ido ao pão. O do indiano é mais pequeno, menos volumoso. O alentejano, mesmo que um dos pães mais pequenos será sempre maior. Não que a D. Custódia precisasse de muito pão. Uma viúva come pouco. Mas um pão grande dá para mais tempo e poupam-se saídas à rua, pouco recomendadas, quase proibidas naquela idade. Porque se preocupavam tanto com as pessoas daquela idade? Porque não deixar que circulassem livremente? Vivem-se os últimos dias de uma vida, pena é que se vivam em clausura, que se passem sem esperança de qualquer coisa boa. Já nada é bom. Aprisionados, os velhos morrem mais rápido. Mais tristes. De forma mais desolada. Quais as alegrias dos velhos? Falar com os vizinhos, uma refeição com os amigos, um passeio à beira-mar, um café numa esplanada, ver as crianças a brincar na rua, abraçar as suas crianças quando elas existem, adormecer numa sombra. Coisas pequenas, tão ínfimas que retirar-lhas é pura maldade. É cruel. Dizem por todo o lado, sublinham-no nas notícias, que era para seu bem, dos idosos, que se isolassem, que não visitassem, nem recebessem visitas, que não saíssem nem para as compras, que essas alguém as deveria fazer por eles. Quem? Porquê? Nem à farmácia? Será pior morrer? Será morrer pior do que não poder viver?

Vivia à janela. Olhava a rua vazia. Recordava quando o prédio da frente ainda andava em construção. Anos a fio, que a obra ficou embargada por falta de dinheiro e o esqueleto daquele mamarracho só ganharia perfil de condomínio muitos anos depois. Até que tal acontecesse, vieram indigentes em busca de alguma dignidade, sem-abrigo à procura de abrigo, toxicodependentes em busca da paz inalcançável, mesmo quando ela se prometia na ponta de uma agulha partilhada e deixada ao acaso. Vieram os graffiti e os bandidos. Recorda-se de uma noite ter ouvidos tiros. Seriam mesmo tiros? A pergunta foi-lhe feita pelo marido que dormia que nem uma pedra e que nada ouvira, preferindo, na manhã seguinte, perante o seu relato, duvidar da sua experiência. O que levaria alguém a não acreditar que ela tinha ouvido tiros? Que outra coisa, a meio da noite, vindo de um edifício abandonado à mercê de meliantes, poderia parecer o som de tiros não o sendo? Não contestou. Teria sonhado, sim. Seriam aves noturnas, pois claro. A irritação era enorme, mas de que valia um amuo colossal, uma dantesca discussão, para a qual se arrastariam coisas outras, antigos assuntos, os e sempre, na verdade, em nome de um ruído que ela tinha ouvido durante a noite? Não havia respeito, ou aquele que havia já não era suficiente para calar o passado a cada nova implicação. Não valia a pena. Anos mais tarde, a obra arrancou e para ali se mudaram dezenas de famílias. Classe média baixa em todo o seu esplendor. Um vespeiro de casais novos e menos novos, com e sem filhos. Quase todos com cães, cuja porcaria nem sempre apanhavam. Agora apanham mais. Já não é como nessa altura. Felizmente. Civismo e educação, quanto mais, melhor. Era hoje a sua maior fonte de distração. Havia sempre um cão a precisar de passeio higiénico, cartas que exigiam carteiro, algumas encomendas que chegavam aos mais jovens, que tudo compravam pelo computador. Também se tinha aventurado nessas lojas, mas sentia falta do toque, do tato, do cheiro, do ar na cara…

Lá vinha ela. Pão alentejano. Tinha ido ‘à da Guida’. Chamou pelo marido. Não obteve resposta. Iria ela. Correu lá dentro. Voltou num segundo. Debruçou-se no parapeito.

– D. Custódia. Venha cá, se não se importa. Não ande na rua sem máscara, que é perigoso. Venha aqui, que eu dou-lhe uma. Ando a fazê-las, para passar o tempo. Roxa, pode ser? Era de uma saia minha. Tudo lavado e o saco está desinfetado, não se apoquente. Lave-a sempre que sair.

Agradecida, de máscara púrpura a cobrir-lhe a idade, lá seguiu ela com o pão alentejano no saco. Sem rosto, as pessoas ficavam curiosas. Já não havia bonitos nem feios, velhos ou novos. Tudo era uma democrática incógnita. Apenas olhos. Apenas gente. Apenas pessoas. Apenas susto e novidade. Todos se adaptavam e habituavam a coisas que jamais supuseram ou imaginaram possíveis. Escondidos uns dos outros, à frente uns dos outos. Que tempos estranhos. Tudo tão bizarro. O que continuava a perceber-se era o dinheiro que cada um tinha. Era incrível, mas até as máscaras denunciavam estatuto. Depois das máscaras, podiam impor-nos fatos e outros equipamentos, mas continuaríamos a perceber quais os melhores, os que mais protegiam, os que melhor assentavam, os que melhores materiais empregavam, e a quantidade de cada coisa que cada um possuía. Havia diferentes tipologias de máscaras, com diferentes preços, claro, e assumidos níveis de proteção e grau de beleza. Os humanos são um bicho curioso. Aspiram e gritam pela igualdade, mas adoram distinguir-se, sobressair dos demais. Fugir deles, até. Misturava conceitos, mas não deixava de fazer sentido aquilo em que pensava.

By Fred Stein

Imaginava todos aqueles que não tinham janela. Todos os que não tinham paredes para ter janela. Todos os que não tinham casa para ter paredes. Não se sentia mais feliz, ou grata, ou sortuda, que ser prisioneiro não assenta bem em ninguém. Principalmente não encaixa nos planos de quem já tem pouco espaço para planos e para quem cada dia fechado é um dia a menos de uma qualquer possibilidade de apreciar a vida. Pensar em quem não tinha janela e tudo o mais de ausência que essa falta de janela implica, atormentava-a ainda mais. Sentia o endiabrado coração a subir pela garganta, a chegar à boca. Fechava-a em aflição, com medo de arrotar o coração, de o bolsar para fora do peito. Tentava engoli-lo, persuadi-lo a voltar ao seu lugar, como quem convence um cão que planeia um ataque a manter-se quieto e a recuar. Engoliu-o. Sorriu. Repetia sem fim que preferia a morte àquela sorte final, de acabar fechada em casa, a aguardar uma cura, pela qual todos ansiavam, uma vacina que todos aguardavam, mas a verdade é que os velhos, todos os velhos, têm um medo de morte da morte. Deixai-os falar. Quanto mais perto, mais ela assusta, mais ela amedronta, mais dela se foge. Mais se reza e mais tempo de sobra se deseja, se é que o tempo alguma vez é de sobra. Lavava as mãos, claro, durante o tempo de um fado inteiro da Amália, que sempre distraía mais do que o Parabéns a Vocês, e lavava o chão com lixívia e praticamente o marido também sempre que ele vinha da rua. E desinfetava a roupa, lavada agora em todos os graus possíveis da máquina de lavar, e os sapatos ficavam à porta e sobre o tapete da rua um pano embebido em lixívia e tudo aquilo que entrava em casa pela primeira vez, papel incluído, era passado por água e sabão. Uma penosa loucura, mas a isso se habituariam, ou não.

Passava o tempo à janela, enquanto aquele tempo não passava. Ia fazer coelho à caçador, para o jantar de hoje e de amanhã. Havia que economizar, ingredientes, gás e cabeça, que com o trabalho de uma refeição para dois, faz-se uma para quatro e é menos um dia de fogão. Olha, há tanto tempo que não via o Sr. João. Vinha com o Bob, já cego e surdo, coitado, mas sempre com aquele porte altivo e feliz dos rafeiros.

– Estão todos bem, Sr. João? Os meninos? Nós também, obrigada, mas já muito saturados desta prisão. Claro, não nos podemos queixar.

Não nos podemos queixar. Claro que podemos. Se há alguma coisa que sempre poderemos fazer, com ou sem razões para tal, é queixarmo-nos, é não nos satisfazermos com as coisas, para tentar mudá-las e melhorá-las sempre que possível. Imaginava quão ingrato e injusto seria apanhar o vírus, mesmo com todas as precauções e passar da prisão de casa, para a prisão hospitalar e já de lá não sair. Não mais veria quem quer que fosse, exceto médicos de bata e máscaras, cujo rosto não veria nem reconheceria e jamais voltaria a ver o mar, ou os sobrinhos, ou… tudo! A quantas pessoas em todo o mundo, de entre todas as baixas de que diariamente davam conta as notícias, isto mesmo não teria acontecido? Morrer após meses sem ver um rosto amigo, sem um motivo para sorrir, sem um naco de esperança, sem um maldito abraço. Diziam-lhe para se manterem positivos, não se deixarem abater, que o fim chegaria, mas que demoraria. Acontece que há quem tenha tempo e possa esperar, mas não é esse o caso dos velhos. Aos velhos nada falta exceto tempo. O tempo escasseia para eles e desbaratá-lo em aprisionamentos é uma antecâmara do fim. Podia nunca mais voltar a almoçar fora com os amigos, ou sequer a vê-los, a viajar, a percorrer quilómetros sem destino de carro, ou ir longe apenas com o pretexto de um café, que nem se apreciava, mas pelo qual valia a pena sair de casa… tanta coisa e tão pouca e agora apenas nada.

Da janela tentava ver outras janelas com outras pessoas perdidas em nostalgia e pensamentos. Pontos de esperança. Acenavam-se. Outras vezes não. Faziam-se brincadeiras com as crianças, que, aborrecidas de morte, esborrachavam os rostos de encontro aos vidros agora sempre sujos de saudades e embaciados de tédio. Saudades de tudo e tédio por causa de tudo. Aconteciam coisas bonitas e enternecedoras em algumas ruas. Disso davam conta os telejornais e alguns vídeos que o marido, também ele perdido naquela espécie de solidão, lhe ia mostrando para a entreter e ajudar a passar o dia com pequenos apontamentos de diversão, alegria ou emoção. Havia ruas onde se cantava à noite, se dançava nas varandas, se casavam no passeio, se declaravam em direto, e em que bombeiros cantavam parabéns e artistas atuavam. Nada disso acontecia na sua rua. Tudo o que ali se passava era inventado por si, em relatos surdos de coisas que talvez nem se passassem, mas que se entretinha a imaginar, como quem tece um tapete com restos de fio. Era indiferente. Ninguém comorava o que quer que fosse por esses dias. Ainda acabavam a quarentena ricos. Ela tinha feito um mealheiro e, por alto, dava-se por satisfeita. Eram menos café na rua, menos cisas que se compravam, mesmo para a despensa, onde o desperdício estava agora perto do zero e só havia tempo e atrevimento para ir comprar o estritamente necessário. Tudo se remediava com o que havia. Muito se inventava na sua cozinha. Decidiam-se os pratos em função dos ingredientes disponíveis e não o contrário. Talvez já nem deixasse de se reorganizar assim. Não havia normalidade a que voltar, pis que tudo muda e tudo tinha, de facto mudado. O mundo estava diferente, porque ela estava diferente e dessa diferença vinham todas as outras. Ela seria sempre, até que o sempre acabasse, uma pessoa diferente daquela que reconhecia ser antes de tudo isto. Valeria a pena voltar a adaptar-se a essa pessoa passada?

Foi prostrada à sua janela que soube de uma pessoa que tinha morrido por causa do vírus. Não era familiar, nem amiga, mas era uma pessoa conhecida e era, por isso, uma perda pessoal. A primeira. Seria a última?

– Pobrezinha. Nem velório, nem funeral de jeito. Tudo à pressa, tudo tapado e selado, as filhas com máscaras, os da agência funerária com fatos espaciais. Um horror. Nem há despedida nestas condições. Olhe, a mim que que cremem…

Riram-se com o ‘cremem’ e em uníssono, disseram, ela à sua janela, a amiga no passeio, em frente, com as devidas distâncias recomendadas e ainda mais meio metro à cautela:

– Que Deus nos perdoe.

Também, se Deus não perdoar, o que lhes poderia acontecer? Já eram velhas, em breve tudo acabaria, com ou sem vírus, que ninguém fica para semente, como o pai dela tantas vezes dizia. Não haverá humor no Céu? Que tristeza lhe ia no peito, mesmo quando ria, ou fingia que sorria, porque a pessoa deixa de saber distinguir. Quando se finge uma vida, tudo o resto parece ensaiado, artificial, falso, não verdadeiro.

By Eva Besnyö

À janela, ela fingia que vivia. Fazia de conta que a vida era assim, até porque, para já, era mesmo assim. Manteria esse mesmo registo depois que pudessem sair? E quando poderiam, sem perigo, sair? Só depois de haver medicamentos que curassem a doença, ou vacina que a prevenisse, antes disso… E quanto tempo implicaria tudo isso? Um ano, diziam. Um ano, com sorte, acrescentavam. Viveria ela esse tempo todo? É que um ano naquela idade, mais ainda naquelas circunstâncias de confinamento e pavor, tem uma passada particular. Passa num instante, mas nunca mais passa. E valeria a pena vivê-lo à janela? Eram horas de ir tratar do jantar. Tudo muda, menos a vontade de comer à hora certa. Raio de vida esta. Coelho à caçador para quatro, ou seja, para dois vezes duas refeições. Ainda avistou a Cremilde. Mesmo a tempo de se pisgar para dentro, sem levantar suspeitas de que ela a enfadava. Que supositório de criatura. Falava que se desunhava. Não se calava nem por nada. Pessoas que apenas se querem fazer ouvir são do pior. Porque não falam sozinhas? Frente ao espelho, por exemplo. Porque maçam os outros com os seus assuntos se não se disponibilizam sequer a saber como é que vão? Só as suas vidas é que interessam? São mais valiosos os seus assuntos do que os dos outros? Se apenas querem orelhas, que adotem um animal de estimação, que apreciam a fala dos donos independentemente daquilo que digam. Agora, parar duas horas a dizer coisas que só interessam ao próprio, roubando sanidade mental aos ouvintes?! Não, obrigada.

Regressou à janela. O marido não tinha fome. Ela não tinha fome. Uma sopa bastava. Faria o coelho amanhã, que estava no frigorífico e de lá não fugiria. Ainda era cedo para se acenderem as luzes. Ligaria a televisão, sempre reviam as notícias do dia, sempre as mesmas, com ligeiras variações.

– O Manel já deve ter voltado ao trabalho. Está a estacionar agora. Tem o carro amolgado. Se calhar teve algum acidente e nós sem sabermos. Espero que estejam todos bem. Vou ligar à Júlia, para saber como estão. Coitados. Logo agora que ninguém está disponível e que o dinheiro falta para tudo, quanto mais para bate-chapas careiros…

Reparou que a Luisinha ainda estava à janela, sempre a ler e a apanhar sol, ou a ler e a apanhar lua. Sempre só. Sempre silenciosa. Talvez a ela não custe tanto passar os dias. Estes dias de provação e desprovidos de ação. Podia sempre limpar, a casa, os armários, lavar as janelas… A nostalgia que limpasse. Não queria acabar agarrada a um esfregão.

Se não fosse a janela, o que seria dela? Ali se ocupava da única coisa que lhes era exigida: que esperassem. Pois ela esperava, mas custa muito esperar coisa nenhuma ou coisa pouca quando já se espera a morte. Enfim, lá ia passando o tempo à janela, enquanto aquele tempo não passava. Quem era aquele que lá vinha?

By Rui Palha

By Marina Khrapova

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