Sete pisos. Dois apartamentos por piso. Catorze casas. Catorze células, catorze indivíduos. Catorze. Isto, colocando apenas uma pessoa em cada fogo, tomando o seu exemplo de solteiro e de solitário. Vinte e quatro inquilinos menos um (já que Filipe não tinha companheira fixa), caso fossem jovens casais ainda sem filhos. Mínimos dos mínimos. Uma contabilidade simples, óbvia, mas que nunca lhe tinha ocupado os cálculos matemáticos. Nunca parou para fazer essa insignificante conta de somar. Interessava-lhe tão pouco que nem por curiosidade se tinha debruçado sobre quem eram os vizinhos, quantos eram, o que faziam, com quem e como viviam… Demografia e sociologia não eram o seu forte. A curiosidade também não. Seria apenas curiosidade? Não seria mais acertado falar de humanidade, empatia, solidariedade e outros termos que tais, dos quais sofreria de um manifesto déficit?
Agora, porém, tudo era diferente. Forçado à clausura, obrigado à quarentena, domesticado pela temerária Covid-19, Filipe matutava permanentemente sobre quem eram aquelas pessoas que colocavam as mãos nos mesmos puxadores e corrimãos que ele, cujos dedos tateavam as mesmas teclas do código de segurança – os mesmos números para todos –, os mesmos botões do elevador a serem pressionados, pelo menos, por dois indivíduos diferentes por piso. Um duplo risco. Quem eram aquelas pessoas com quem raramente se cruzava? Quais os seus hábitos de higiene? De que doenças padeciam? Que profissões tinham? Que idades? O que até ali lhe pareceu o melhor dos negócios – viver num condomínio com poucos inquilinos e a vantagem acrescida de nunca os ver, por conta dos seus loucos horários de jornalista freelance –, suscitava-lhe, nesta fase, muitas incógnitas e receios. O edifício era relativamente novo, numa boa zona da cidade, mas tinha sido vendido num período meio estranho e conturbado para o setor imobiliário, com enorme benefício para os compradores. Podiam partilhar arquiteturas e benesses, vizinhos com rendimentos altos e outros com possíveis dificuldades financeiras, já que o valor unitário de cada andar estava deflacionado à época da compra. Seriam mais homens do que mulheres? As mulheres tendem a cuidar mais da higiene e a preocuparem-se mais com a limpeza. O mesmo é dizer que Filipe entendia que os homens são mais porcos.
Ainda que em teletrabalho, e com as reportagens reduzidas aos mínimos olímpicos e os turnos mais espaçados, Filipe deu por si com tempo, mas, mais incrível do que isso, com vontade, quase ganas, de conhecer cada um dos vizinhos. Dedicou tempo à tarefa, mas antes disso, dedicou tempo a elaborar um plano de vigilância e a determinar, a cada hora do dia, os melhores locais de vigília para o efeito. Que pena, lamentava-se, nunca ter ido a uma reunião de condóminos. Delegava tal tarefa na empresa de advogados do irmão, onde havia sempre um estagiário que podia dedicar-se a serviços menores. Pensava em tudo isto enquanto sentia tremores no olho esquerdo, o qual cerrava para espreitar pelo monóculo da porta de casa, e que já não aguentava tamanha pressão na pálpebra. Mudou de olho. Precisava de ir à casa de banho, de beber água, de sair daquela posição e daquele estado detectivesco que até o fôlego lhe retirava, com receio que a sua presença fosse sentida do outro lado, mas tinha percebido movimento na escada e, com a luz do seu piso acesa, queria perceber de quem se tratava.
Viu, pela primeira vez, a pessoa que moraria no mesmo piso que o seu, o sétimo. Em três anos, seria possível só agora ver o vizinho do lado? Correção, vizinha. Uma fulana com pinta. Parecia uma miúda, mas garantidamente já não o era. O que ainda era, isso era certo, era uma quarentona capaz de animar a sua quarentena. Trazia uma mala e compras de supermercado. Seria uma daquelas almas caridosas, cuidadoras de gente alheia à sua, levando medicamentos e sopa a idosos? Seriam os idosos seus pais e vinha apenas de visita? Talvez se saísse de rompante… Não podia, vestia um mísero fato de treino que nem sequer era digno da solidão de uma quarentena forçada, quanto mais para primeira imagem a uma mulher. Aquietou-se. Ela tinha a chave daquela casa, pelo que haveria o mínimo de familiaridade com quem lá morava, isto no caso de não ser a própria, como, de repente, tanto desejava que fosse. Logo que a porta se fechou, deu finalmente folga ao olho, que quase não se mantinha aberto, e correu para o WC. Ainda que sozinho, lavou demoradamente as mãos. Menos um enigma para revelar. No sétimo Esquerdo, uma tipa toda apetitosa. Anotou no bloco de notas do telemóvel as primeiras impressões bem como hora de chegada. Devia estar a precisar de mantimentos. Não podia dedicar-se a um novo piso, enquanto não percebesse se a vizinha ficava para dormir ou se sairia.
Entretanto, a ‘buena’ do sétimo, juntava-se já a um casal de jovens hipster , ou apenas extravagantes, do terceiro direito, que vestiam de igual, ou assim lhe parecia, com kits a fazer pendant com os dos próprios cães. O macho com papillons e/ou gabardinas, e a cadela com laçarotes e/ou capas para a chuva com as mesmas cores da indumentária dos donos. Já os tinha visto duas vezes e os quatro condiziam, pelo que imaginava que não tivesse sido apenas coincidência, e sim um acerto coletivo de guarda-roupa. Talvez costurassem tudo em casa. Tudo rigorosamente tailor made. Simpatizou com tamanha idiotice, resultado de paternalismo da sua parte, mas Filipe não se incomodou com isso. Os do rés do chão tinham sido fáceis de observar, já que em frente ao prédio existe um jardim de onde facilmente percebeu que conseguiria ver para dentro das varandas, tanto do esquerdo como do direito, e como a primavera já espreita e as pessoas não podem sair, tinha sido fácil detetá-los a apanhar sol, num dos casos, e a pôr roupa a secar, no andar do lado. Dois casais de velhotes. Um deles com um ar requintado, muito digno e bem-posto, o outro mais descontraído, muito embora a varanda deste último casal tivesse, de longe, mais bom gosto do que a dos vizinhos, onde os vasos e os gatos se amontoavam numa desordenada selva, e que em termos de higiene deixava muito espaço à imaginação de Filipe. Uns deviam dar valor à imagem exterior, os outros à estética interior. Identificou-se com estes últimos, o casal mais blasé, porém ficou cheio de vontade de ver a casa dos que pareciam mais sofisticados. Dava tudo para ver o resto da casa, mas apenas por mera curiosidade social. Adivinhava-se medonha, atulhada e pouco limpa.
Por este andar, demoraria a preencher a sua caderneta de cromos, já que esperas no átrio do prédio, na garagem e nos patamares, além de desconfortáveis, eram morosas e, sem meter conversa – o que toda a gente evitava por esses dias –, não poderia garantir se as pessoas estivam de passagem ou se eram os ocupantes de todos os dias. Repensava o seu plano de ataque, que incluía já um hacker conhecido, a fim de obter a identidade de toda aquela gente, quando conheceu o hacker analógico do prédio: a vizinha cusca, ou apenas a curiosa, com tempo e interesse genuíno em conhecer todas as pessoas ‘com quem morava’, que lhe bateu à porta com o pretexto de lhe deixar um doce caseiro, agora que estava em casa e tinha tempo para cozinhar e dar um ‘mimo’ aos vizinhos. Filipe começou por ter medo de toda aquela gentileza. Passou depois a desprezar aquela mulher, nova ainda, para aí uma geração cima da sua, se tanto, tão deleitada a tecer teorias e comentários sobre a vida de toda a gente, enquanto, de olhos brilhantes tentava sugar toda a informação que conseguia deste vizinho, de repente falador e simpático. Quando aquilo que descobria o satisfazia ou entusiasmava, Filipe ia deitando migalhas na conversa, que a mulher, a do quinto direito, já agora, como anotou disfarçadamente logo no início da conversa, apanhava delicadamente como quem junta contas num sagrado rosário de informação. Manuela, assim de chamava a divertida criatura, tudo sabia sobre todos, exceto sobre Filipe. Por isso, este esquivo vizinho do 7.º Direito, o maior mistério do prédio, era olhado por Manuela como o pote no final do arco-íris, a peça que faltava no puzzle e que revelaria o rosto do herói, ou o mistério que desvendaria o nome do culpado e resolveria o crime. Excitadíssima por haver um membro da imprensa no edifício, quase nem foi preciso dar-lhe corda, pois, após estar na posse dessa informação, e olhando Filipe com enorme consideração, logo desbobinou todo o folhetim interno.
– Que curioso. À sua frente temos a querida Emília, uma neurocirurgiã extraordinária, com fama de salvadora por onde quer que passa. Volta não volta surge nas revistas científicas. Uma querida e um génio. Ajuda todos e qualquer um. Olhe, ainda agora, foi às compras e ligou aos diabéticos do prédio, aqui no quarto esquerdo – mãe e filho diabéticos – para saber se precisavam de mantimentos, isto depois de ter estado dois dias inteiros sem sair do hospital. Diz muito sobre uma pessoa, não acha? Por baixo de si, vive um casal encantador. Ele é norte-americano e ela é japonesa, não é o máximo?! O que será que comem aqueles dois? Sushi de hamburger ou T-bone de algas, seguramente. Que divertido! O vírus apanhou-os em viagem, mas chegaram bem e testaram negativo. São muito reservados, mas nada que se compare ao eremita que vive em frente. Desconfio de doença mental, ou isso ou muito azedume. Ou tristeza, também, já me ocorreu que pode ser isso. Uma viuvez dolorosa ou coisas traumáticas do passado, que a vida das pessoas é complexa, como bem deve saber. O Filipe devia fazer uma reportagem sobre nós e a nossa clausura, aqui no n.º 20.
Filipe achou que Manuela estava coberta de razão, numa fase em que já simpatizava com ela, por perceber que adorava saber tudo sobre todos, mas nunca criticava ou condenava. Além disso, acabava de lhe dar uma ideia brilhante, digna de um bom editor. Porque não propor um diário com relatos da vida, ou a falta dela, durante todo o longo período de isolamento imposto numa microcomunidada como era um prédio de habitação? Uma espécie de crónicas resultantes do vírus, ou um Big Brother caseiro, sobre a vida num edifício com os seus moradores. Aquilo daria até uma peça de teatro e um guião para Hollywood não colocar defeitos. Além de que, que melhor forma de conhecer todos, mesmo que fosse através da porta, ou pela janela, ou com fatos de astronauta à prova de viroses. Parecendo adivinhar aquilo em que magicava, Manuela sai-se com esta:
– Até posso arranjar fatos espaciais para todos, sabe. Estaria agora na NASA, para dar continuidade a uma colaboração em Biologia Molecular, minha área de especialização, prevista para três anos, mas que já vai em cinco, mas com isto do vírus, preferi manter-me por cá, perto dos meus e para fazer algo se necessário fosse pelo meu país nesta fase de medos. Isto tudo para lhe dizer que tenho cerca de 30 fatos concebidos para as equipas médicas em contacto com epidemias como o Ebola, mas cujo protótipo foi abandonado. Como detesto desperdícios, fiquei com todos eles, além de que se amarrotam na palma de uma mão e não ocupam quase lugar. Nem imaginava como poderiam vir a ser preciosos na minha própria casa.
A cabeça de Filipe fazia tilt a cada palavra da vizinha. A cusca do prédio, a mulher com espírito de porteira e formação em hacker analógico era uma cientista ao serviço da NASA. Não queria acreditar. Voltava o seu cinismo e em força. O mais certo era ser uma mentirosa compulsiva. Percebeu que aquela conversa exigia outro local e outras comodidades para ser bem apreciada que não ali, enluvados e com máscaras no vão de um lanço de escadas a cerca de três metros de distância e com vozes de sussurro.
– E se fosse buscar dois desses fatos e comêssemos parte da sua sobremesa em minha casa, Manuela?
O brilho nos olhos da mulher multiplicou-se por quinze. Estavam ainda e apenas no início da clausura, terceiro ou quarto dia, mas a noção de que se está só e confinado é mais dolorosa do que o simples confinamento ou solidão. Estes podem passar despercebidos, tornarem-se condição de vida, ou mesmo traços de carácter, desde que não sejam impostos. Desde que não sejam ordenados e orquestrados pelo alto-comando de uma epidemia à escala global, cujo propósito era dizimar-nos. Dizimar a espécie humana, uma faixa etária de cada vez, um país atrás do outro. De forma democrática e desordenada. Lançando o caos, o desemprego e a miséria em todo o planeta, bem como a desconfiança entre vivos, ou apenas sobreviventes. Por isso, não apenas para Manuela, a nerd de laboratório, mas também para Filipe, o indómito aventureiro, aquele encontro estava a revelar-se providencial e terapêutico. Acima de tudo, terapêutico. Manuela foi buscar dois fatos, os quais, tal como ela dissera, se conseguiam dobrar, ou apenas amarrotar, até não serem maiores do que uma bola de tamanho entre a de golfe e a de ténis. Porque não avançaram com a produção daquele equipamento? – quis Filipe saber.
– Oh, o de sempre. Lobbies, interesses financeiros vários, farmacêuticas, cobardia política, marionetas mundiais, corrupção… Um dia, pode fazer um belo artigo sobre tudo isso, partindo da palma da minha mão, abrindo um plano para a outra bola, a planetária. Da morte deste fato à morte da Terra.
Outra boa ideia para uma reportagem de investigação. Filipe condenava-se intimamente por ter considerado inicialmente que Manuela não era mais do que a cusca desocupada do prédio, que se entreteria a ver quem entra e sai enquanto ia tricotando lã sem propósito, apenas como terapia ocupacional. Ajuizar e julgar sem conhecer alguém, é, de facto, letal. Manuela não apenas era inteligente na sua área, obviamente, que a NASA não contrata qualquer um, como ainda tinha uma visão acutilante sobre a vida e o mundo. Cheia de curiosidade. Claro que o seu apreço por visões microscópicas, fosse de moléculas ou de vizinhos se sobrepunha a tudo o resto, mas estava claro que não vivia presa ao seu microscópio e parecia genuinamente alerta. Tinha até uma visão jornalística dos factos, fruto de uma mundividência que advinha do muito que sabia sobre tudo, incluindo sobre a natureza humana.
Já equipados, e um terço da sobremesa deitada abaixo – um tiramisu divinal, pelo que também as alquimias da culinária lhe eram familiares –, partiram em romaria pelo prédio.
– Aqui, no quinto esquerdo, paredes meias com a minha casa, vivem o Henrique e a Rita. Ele é pintor, infelizmente pouco reconhecido, mas com uma obra notável, que mistura fotografia e pintura e teve uma fase de colagens também muito interessante. Henrique Raimundo, nunca ouviu falar?
Filipe não conhecia.
– A Rita é advogada, mas não é um ser tão iluminado quanto o Henrique, mas é suficientemente pragmática e solidária. Uma ótima pessoa. É a ela que confio a minha chave de casa, sempre que estou fora, e eu passo muito tempo fora. Quando regresso, imagine que até a casa me manda limpar.
Filipe sentia-se estupidamente excluído daquele universo de seres bons e de toda a interajuda que por ali circulava, com motivos de interesse a cada lanço de escadas. E ele que sempre acreditou que a vida citadina não permitia tais encontros e generosidades. Uma sinergia viva da qual, na verdade se autoexcluíra apenas porque aceitou que assim deveria ser. Cada um na sua toca, sem contactos desnecessários, sem intrigas ou reparos, sem azedumes e conversas, sem ligação, portanto. Filipe sempre vivera para si, a sua vida, a sua profissão, as suas coisas e afetos, sem se permitir alargá-los a pessoas apenas por partilharem uma morada. O estúpido e mesquinho tinha sido ele, enquanto, lá dentro, se sentia muito moderno e cosmopolita. Uma vizinha gira que tuteava o interior do cérebro humano, um artista, uma cientista de mérito internacional… Ele, o que era? Apenas mais um jornalista, com emprego incerto, ordenado mísero e horários estafantes, que mal lhe permitiam uma vida, um grupo de amigos, um amor seguro.
Qual guia turístico, Manuela voltou a erguer os braços no ar, forçando o detetor de movimentos que mantinha acesa a luz da escada e seguia já à sua frente para o quarto piso.
– O quarto direito está temporariamente vago. O Artur, delegado de informação médica de um grande laboratório ficou retido na Alemanha, onde se encontrava em formação e por lá se tem mantido. Deve ter-se entendido com a germânica com quem anda de forma intermitente nos últimos dois anos. Ainda bem. Pode ser que ela regresse com ele no voo que o estado tem agendado para repatriamento dos portugueses apanhados de surpresa com o fecho das fronteiras. São novos e fazem falta crianças neste prédio. Pela primeira vez, Filipe discordava de Manuela, mas seria o seu cinismo a falar mais alto de novo. Crianças? Bom, seria sofrível, desde que não fossem suas. Abandonou as suas considerações, pois Manuela avançava com informação.
– Aqui ao lado, vive a Mariana, reformada da função pública e demasiado hipocondríaca para sair de casa. Compras online, médico ao domicílio… Já era uma reclusa antes da Covid-19. Tem um bom coração que a sua saúde mental não acompanha, infelizmente. Por causa dos atrasos nas entregas de mantimentos comprados online, fiz-lhe as compras e entreguei-lhas ontem. Disse-me para deixar os sacos no patamar, pois teria de desinfetar cada produto com álcool. Pois!
– O segundo piso está desocupado de momento, isso eu sei, pois recebo os relatórios das reuniões de condomínio e sei que o dono das duas habitações vive na África do Sul.
– Muito bem, senhor jornalista. Steve e Betty só cá vêm no verão, e ficam três meses. Têm uns filhos lindos. E o Filipe, não tem tempo para formar família? Ou tem e vivem noutro sítio?
– Solteiro, alérgico a crianças e sem tempo para assegurar a manutenção de uma relação que dure mais do que uma semana.
– Hummmm. Bom, no terceiro vivem o João e a Joana, dois seres curiosos e muito fechados, mas com um guarda-roupa e uma estética verdadeiramente artísticos. Vale sempre a pena cada encontro. Ao lado, o Augusto. Vai achar-me tonta, mas acredito que seja um trio de poliamorosos. Acho que a Joana e o Augusto partilham o amor do João. A piada reside no facto de Augusto andar sempre de fato de treino, enquanto os outros dois devem viver para as fatiotas. As pessoas são muito curiosas, não são?
– No primeiro andar, vive, no direito, o Luís e, no esquerdo, a mãe, Célia. Investiram nestes dois apartamentos após a morte do patriarca, o senhor Rogério, que fez algum dinheiro na bolsa, mas acabou por ceder a um ataque cardíaco que lhe roubou o tempo que ele tinha posto de lado para aproveitar a sua pequena fortuna. São eles os diabéticos que tanto preocupam a sua vizinha. Parece que não levam a doença muito a sério, ou que a subestimam e, volta, não volta, aqui vem o INEM. No rés do chão decorre uma das histórias mais divertidas do prédio. O vizinho do esquerdo apaixonou-se pela vizinha do direito. Houve um pequeno escândalo, que poderia ter passado despercebido se Vasco, um dos homens, não fosse surdo e tudo lhe fosse gritado aos ouvidos. Nisto, retomou-se a calmaria, tudo voltou ao normal e achei que a traição tivesse sido perdoada pelos traídos e suplicada pelos traidores. Mas, depois, deu-se o fenómeno das varandas. De um lado, todos os gatos que antes viviam em dois apartamentos e a plantação de uma floresta que impede contacto visual entre casais. Do outro, um esmero decorativo que parece mudar a cada quinze dias. Não consigo perceber algumas coisas, mas finalmente percebi o que aconteceu. Trocaram-se os casais.
– Não!
– Verdade. Demorei a perceber, mas quem agora vive com a Célia é o Norberto, enquanto a Camila se mudou para a casa do Zé. Um dia, a Camila acabou por me informar que não estranhasse a troca. Tinha havido uma feliz conjugação de amores e desamores. Tendo em conta que todos eles têm mais de 60 anos, é magnífico e dá-nos esperança, não é? O amor acontece em qualquer lugar, a qualquer hora e de qualquer maneira. É a mais extraordinária história aqui do N.º 20, não acha?
Sem dúvida, concordava Filipe, mas a personagem que não lhe saía da cabeça era a da sua vizinha, que rivalizava com a vontade de colocar todos os habitantes do prédio em contacto direto, e, quem sabe, obter autorização para falar ao mundo daquele pequeno formigueiro, daquele microcosmos a que as suas vidas se tinham reduzido, por causa desse outro ser ainda mais minúsculo, o malvado vírus. Era mais do que reality television, porque era também reality building. Não colocava as pessoas em ‘laboratório’. Não as observava longe do seu ambiente nem dos seus afetos, mas sim na rotina de todos os dias, agora adulterada por uma época de crise, de medidas sanitárias e de toda uma nova etiqueta social que tornava tudo mais cru, mais duro, mas também mais humano. Além de que não se infetava ninguém mais por causa do programa. Tudo se passava entre portas, como numa enorme família, e ainda se dava alimento televisivo a uma massa de gente forçada a entreter-se com o que quer que fosse. Quem resistiria a uma quarentena em direto? Mais ainda, com gente tão interessante quanto aquela que Filipe acabava de descobrir mesmo debaixo do seu nariz? E no seu habitat natural, o que implica mais segurança e menos máscaras. Menos cuidados, também, pois está-se com as suas gentes, entre as suas próprias paredes. Aquilo era genial e só podia agradecer a Manuela por aquela brilhante ideia.
Agora, restava vender bem a ideia na empresa, talvez ameaçar vender a outro canal, em caso de desinteresse, e, bem mais laborioso do que isso, convencer toda aquela gente. Talvez em troca de abastecimento regular de todos os bens de que necessitassem, papel higiénico, álcool, máscaras e luvas incluídos alguns cedessem e, atrás destes, outros seguissem o exemplo. O pior de tudo é que também ele, Filipe se exporia, mas, no seu caso, seria um feito profissional, uma experiência social, ambos dignos de nota e louvor.
– Manuela, preciso da sua ajuda. Temos de ir de porta em porta, pedir autorização para nos incluirmos num Big Brother de condóminos em quarentena. Há mais histórias aqui, neste prédio de sete andares, do que em alguns bairros inteiros. Isto é uma mina de interesse. Conto consigo?
– Só se não houver guiões predefinidos, nem imposições, nem jogadas para aumentar audiências. Se querem saber como vivemos, então têm de se contentar com a nossa monotonia e o nosso desinteresse. Compreende o que digo, Filipe? Um documentário sério sobre natureza humana, vizinhança e solidariedade em tempos excecionais. Não um programa de entretenimento para mentecaptos.
A visão de Manuela continuava anos luz à frente da de Filipe. Um documentário, pois claro. Com especialistas, narração e enquadramento científico.
– Claro que sim. Dada a crise, seguramente aceitarão as vossas – Filipe corrige –, as nossas, exigências. Deixaremos tudo claro num contrato. Levarão connosco para o bem e para o mal, na saúde e na doença. Manuela, comecemos por fazer uma festa no prédio. Todos juntos. Com os seus fatos e álcool de todo o género. Será uma espécie de paródia de máscaras, para enganar o vírus, e um exercício de descompressão para todos nós. Que me diz?
– Certo. Veremos democraticamente quem está interessado neste workshop de vizinhança à prova de tédio. Tem de se apressar Filipe, pois têm de lhe aprovar o projeto antes que tudo regresse à normalidade e preferencialmente antes que todos morramos.
A visão hiper-realista de Manuela surpreendia sempre. Sim, a morte também brincava sobre as suas cabeças.
– Sim. Trataremos de nos reunir todos o quanto antes. Aliás, depende totalmente da Manuela. Ninguém me conhece, pelo que ninguém responderá ou aceitará se for eu a tomar a iniciativa.
Nesse mesmo dia, Filipe e Manuela deixaram à porta de cada casa um fato e um bilhete a convidar para uma inesperada festa para todos os vizinhos de fortúnio e, por esses dias, de infortúnio. Convívio e debate de assunto de interesse de todos eram mencionados. Por fora, no envelope, Filipe atreveu-se a colocar o nome que já imaginava para este Documentário/Observatório virulento:
COVID-Todos
To be continued, ou talvez não!
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