Não queria dar nome àquilo. Àquela coisa, mas, a cada dia que passava, tornava-se mais e mais premente que o fizesse. Que nomeasse aquela lapa, aquele pensamento obsessivo que a ela se agarrava logo que tomava consciência matutina de que já estava acordada e que era ela, regressada ao seu corpo de sempre e à vida de todos os dias, e que com ela se deitava até, já quase de madrugada, quando fechava os olhos, mais de cansaço do que de sono. O sono é coisa dos felizes e despreocupados. Só a esses surge gratuito, diário e sem limites. Para todos os outros é o maior e mais desejado dos luxos. Um artigo exclusivo e raro.
Pensou, primeiro, que andaria deprimida, triste, abatida. Seria stress e ansiedade. Afinal, quem não consome doses diárias de ambos? Por causa do trânsito, do trabalho, da família, do dinheiro, ou antes, da falta deste, da escola dos miúdos, com valores cada vez mais altos e as crianças com notas cada vez mais dececionantes, um período em atraso e o pavor de mais um filho, o frigorífico avariado, o pai que se esquece de tudo, o amor morno e já sem graça… Parou. Era escusado continuar a enumerar pequenas desgraças e fim de consubstanciar um grande mal. Tudo isso era normal, no sentido exato em que a vida não é uma normalidade. A vida é a exceção e tudo nela pode ser estranho, doloroso ou incrivelmente belo e surpreendente. Não esperar o inesperado não é razoável. Assim, chegava sempre e irremediavelmente à conclusão de que estava apenas viva e que viver implica, ou não, tudo aquilo que se poderia desejar e o outro tanto do qual se tenta fugir, mas sem escapatória. A maior mentira em que sempre embarcara com a maior candura e ingenuidade é a de que tinha a sua vida toda controlada. Que tudo dependia apenas dela e da sua vontade, pelo que sempre assumira que o amor jamais findaria, que a saúde eram favas contadas e que para sempre não apenas era verdade como muito, muito distante. Não era. Nada controlava. Tudo existia autonomamente e de forma dissociada de si e da sua vontade. As crianças decidiam coisas por si mesmas, o emprego dava voltas insuspeitadas, os amigos iam e vinham e até o casamento… Voltou a parar. Era o carrocel da vida, umas vezes mais lento e aprazível, outras mais descontrolado e temeroso.
Tanto rodeio, tanto malabarismo, apenas para não nomear aquilo que no seu coração já tinha passado pela pia batismal, já tinha nome e apelido, já era nomeável e identificável. Porque lhe custava tanto pronunciá-lo? Trazê-lo ao mundo dos sons e dos significados? Porque não, simplesmente, dizer aquilo que era, por esses dias, não apenas uma palavra, mas toda uma verdade? Atreveu-se. Não. Falso alarme. O nome foi dito para dentro. Apenas soou no seu cérebro. A palavra não era ainda palavra, pois continuava sem ser pronunciada.
Tomou banho, entrou naquela cápsula do tempo em que tudo obedece à rotina e os gestos se automatizam, como que comandados à distância, pelo hábito e pela necessidade, de pressa e alguma ordem. Pequeno-almoço tomado, miúdos nos carros, dois no dela, o terceiro no do pai. Tudo vestido e calçado, nada rimava, mas isso já pouco importava. Há muito que deixara de conseguir combinar as ‘toilettes’ dos miúdos na véspera, a fim de poupar tempo e cabeça, até porque se repetiam birras matinais de que não se queria ir de saia ou apenas se queria ir de saia e todo e qualquer planeamento acabava por sair furado, anulando os esforços da noite anterior e duplicando o tempo perdido na simples tarefa de vestir os três filhos (mais difíceis elas do que ele, claro!).
Os filhos. Como reagiriam? As crianças são astutas e adaptam-se. Melhor do que os adultos, mas também têm as suas resistências. Dificilmente se terão apercebido. Não havia tempo. Nem aquilo que sentia era assim tão passado na sua mente, como não havia, de facto, tempo físico suficiente para que o ambiente em casa fosse qualquer outro que não o habitual, o rotineiro, o de sempre. Morno. Apenas ocupado com afazeres infinitos. A escola, as atividades, os trabalhos de casa, os lanches, os jantares e os fins de semana, estes últimos a girarem quase em exclusivo em torno da agenda dos miúdos: os treinos, os passeios e as festas de aniversário. Tantas festas de aniversário! Raro era o fim de semana sem uma festa. Como era isso possível? Não tinha memória de tal frenesim na sua infância. Nem mesmo na adolescência. Desde quando as crianças passaram a ter uma vida social mais preenchida do que a dos pais? Deve ter sido a partir do momento exato em que os pais abdicaram candidamente da sua vida para viver em função exclusiva dos filhos. Que tempos estes.
O melhor seria num anúncio conjunto. Sem dramas. Apenas factos. Para o mais velho seria o fim do mundo. Elas, apostava, voltariam de imediato para os seus jogos e penteados e impertinências, que não dispensavam demasiado tempo aos assuntos dos adultos, espalhando pela casa os seus gritinhos e energia. Como anunciar em conjunto se a palavra, aquela que ainda não conseguia pronunciar para si mesma, era ainda um segredo só seu? Andaria ele na mesma luta gramatical? Já teria ele, bem mais pragmático, atribuído significante ao muito significado que já deveria sentir no peito? Ou, no caso dele, seria algo que ainda se passava somente na cama onde, há muito, nada se passava? Passar-se-ia noutra cama? Talvez. Não eram desconfianças dessa natureza que a apoquentavam. Aquilo que sentia era apenas no coração, que já não dançava movido por ritmos saltitantes, apenas caminhava ao som solitário da sua batida binária, e na sua mente, onde ganhava forma a tristeza de uma vida, de um casamento pouco satisfatório. Dava por si a imaginar-se já a sorrir para outro amor. Um amor que ainda não existia para lá do seu desejo de o encontrar, mas o qual voltava a dar-lhe ganas de fazer coisas, de sorrir, de se despreocupar. Seria esse para sempre, ou acabaria, como agora, num baile sem música, apenas dois corpos que não sabem o que fazer, sozinhos na pista, sentindo-se ridículos e patéticos por acharem que devem ainda continuar a mover-se ao som de uma música que já não se ouve?
Finalmente, sozinha no carro, parada num sinal vermelho, arriscou dizer a palavra. Gritá-la. Ensaiou. Ganhou coragem. Um carro pára ao seu lado e congela-lhe os esforços guturais para emitir o som. Para dizer alto aquilo que anseia dizer a si própria. Para que se ouça, para que se mentalize, de uma vez por todas, de que é aquilo que quer. Aquilo tem semanas na sua vida. Meses, provavelmente, já que no início se apresentou singelamente como uma pequena tolice. Uma fase de maior insatisfação. Um nada, ainda. O nada cresceu tudo e agora só já pensava nisso. Nessa liberdade. Seria mesmo isso? Liberdade? Não acabaria mais presa às necessidades comezinhas da vida que agora a sufocam? Talvez deixasse que os filhos fossem mais velhos, mas, aí, também ela o seria. Mais desgastado o amor. Mais desesperante a coabitação. Mais triste o seu peito. Menos vontade e maior comodismo. Não podia esperar. O ímpeto para acabar atingia o pico naquele momento. Tal como uma paixão, deve ser agarrado a tempo, para que não fuja. Para que não se torne outra coisa, talvez mais insuportável, mas mais dominadora.
A casa. Como seria com a casa? Outro degrau que não tinha visto nesta escada em caracol que já lhe tirava o fôlego, quando nem sequer ainda tinha iniciado a subida. Ou seria descida? Seria ele um cavalheiro e deixá-la-ia ficar com a casa, a fim de não causar transtornos extra às crianças? Para que não mudasse tudo nas suas vidas de repente? Não há muito civismo nos momentos de rutura. As pessoas transformam-se. Vestem-se de egoísmo. Munem-se de rancores e ódios insuspeitados. Metem-se as famílias ao barulho e, tantas vezes, acabam a dividir os rolos de papel higiénico, ainda em stock na despensa. Seria horrível, somar tudo isso ao que já lhe crescia no peito magro.
O peito. Abriu um parágrafo, pois tornou-se urgente a questão do peito. Teria de avançar para uma estética? Colocar próteses? Mamas novas, ou apenas as mesmas, mas reparadas, com mais volume e mais subidas, seriam inevitáveis para um novo amor? Quem apreciaria o peito de uma mãe quarentona que sempre amamentou? Dinheiro. Ainda isso. O dinheiro. Caso ele lhe deixasse a casa, seguramente não continuaria a ajudá-la com a renda, pois se já prescindia da sua parte do imóvel… Uns rápidos cálculos de cabeça diziam-lhe que, dependendo da mensalidade que ele estivesse disposto e fosse capaz de dar aos miúdos, talvez conseguisse pagar a renda sozinha. Tentaria renegociar o empréstimo ao banco. Tudo menos mudanças. Quase preferia a tristeza a ter de se mudar. Que disparate. Como impedir-se de tomar uma decisão tão séria e importante, daquelas que mudam toda uma vida, por conta de receios burocráticos e logísticos? Tanta coisa errada que era capaz de magicar e dizer e apenas não verbalizava uma estúpida palavra.
Um estranho pensamento atravessou-lhe a mente, como um clarão. Um relâmpago. Não entendeu logo. Teria de esperar pelo trovão, para cristalizar aquele sentimento. Aquela emoção que lhe apertava o coração. Ciúmes? Seria isso? Ciúmes por antecipação? Imaginava-o a encontrar outra mulher sem grandes problemas ou demoras. Giro, magro, um físico impressionante, bom gosto, traços sedutores, cabelo no início da fase grisalha, um certo estatuto e um ótimo ordenado. Sim, ele não precisaria de pôr mamas, como ela, a fim de aspirar a novo romance. Quem avançaria com os dedos por entre aquele cabelo que tinha sido seu? Quem passearia os lábios pela boca dele? Que inferno que era a sua mente. Talvez ele ainda nem se preocupasse com o assunto e já ela tinha aqueles ciúmes típicos dos separados de fresco. Cairiam, também eles, naqueles episódios de sexo do adeus? Recaídas que serviriam apenas para voltarem a perceber aquilo que já era sentido? Aquilo que já sabiam? Sentir-se-iam pior, depois disso? Reatariam durante uns dias para total desconcerto seu e dos miúdos? Tentava pensar em tudo… Não tentava. Não era uma opção ou vontade expressa. Era apenas a sua mente em modo desabrido a encher-lhe cada segundo com ‘ses’, ‘mas’, ‘comos’ e ‘porquês’. Se lhe fosse dado a escolher ou permitido decidir, optaria apenas por conseguir dormir, uma noite que fosse, durante dez horas. Era tudo o que pedia. Horas seguidas de um sono tranquilo, sem sonhos para recordar, sem idas à casa de banho, sem acordar em sobressalto, sem crianças com pesadelos enfiadas entre os pais, pontapeando-os sem dar tréguas.
Os amigos. Manter-se-iam todos? Haveria lados para onde pender? Partidos a tomar? Acabaria sozinha? Em encontros de speed dating para tentar encontrar alguém? Estaria a voluntariar-se a uma existência patética? Rodeada de novas amigas solteironas e mal casadas em busca do plano B? Acabaria sozinha em bares, como nos filmes? E porque pensava já que teria forçosamente de encontrar outro alguém? Não viveria bem sozinha, sem os desassossegos de outra relação? Já o pensava porque sabia que ninguém vive bem sozinho. Tudo se passa melhor e é mais feliz aos pares e isso é sabido desde os tempos de Noé. Tudo aos pares. A dois é mais fácil e provavelmente, ou, no mínimo, hipoteticamente mais feliz. Um mau casamento mata, mas a solidão não o faz por menor preço. Mesmo que o faça, por um custo menor, já se sabe que o barato, tantas vezes, sai caro.
A mãe. Quase desistiu, quando pensou na conversa longa e penosa que tal decisão implicaria junto da mãe. “Um homem tão bom para ti. Um pai excecional. Onde julgas que vais encontrar igual?” Explicar-lhe-ia que não era igual que procurava. Era diferente. Para igual não valeria a pena mudar. E como saber que encontraria diferente e, ainda assim, bom? Bom para ela, para os filhos, atencioso, carinhoso, divertido, leve, giro, bom de cama… Não poderia avançar por aí numa conversa com a mãe. Melhor. Talvez apenas diferente. Novo. Tão somente outro. Não era preciso comparar. Pessoas não se comparam. Avaliam-se por si só e pela forma como nos fazem sentir. Não há mais nem menos, apenas aquilo que nos inflamam na alma. Voltou a pensar no negativo desta imagem que apenas a refletia a si e ao seu possível futuro. E quanto à outra? Compará-las-ia ele? Diria ele, de si para si, ou até de si para outros – ou, pior do que tudo, de si para a outra – que essa outra era bem melhor do que ela? Que a nova estava muito acima da velha? Que finalmente aquilo, sim, era amor verdadeiro e incondicional? Como se daria ela com os seus filhos? Já se sabe que as madrastas são isso mesmo, madrastas. Pessoas más e invejosas, capazes de desejar mal às crianças apenas porque não são suas. Apenas porque lhes recordam a vida passada e feliz da qual não fizeram parte. O outro universo do homem que amam. É um clássico bem retratado na literatura infantil. Nada a dizer em relação a padrastos, não obstante haver homens infernais e abusadores de enteados, mas quando queremos dizer que algo é mesmo muito mau, dizemos dessa coisa que é madrasta e não que é padrasto, a verdade é essa.
Antes de aparafusar mais todos estes pensamentos sufocantes, precisava de se acalmar. De avaliar e decidir. De garantir que estava absolutamente segura daquilo que lhe ia na alma e da porta que pretendia abrir, do caminho a escolher. Valeria a pena abordar o assunto, sob o prisma terapêutico ainda, com o outro interessado? Ou era certo e sabido que para aquilo que sentiam não havia cura nem operação possível? Que um enterro decente era o mais civilizado e aquilo que ambos mereciam, ao invés de um sofrimento atroz que se arrastasse pela eternidade dos seus dias? E se ele fosse apanhado de surpresa? Se tudo isto apenas existisse no seu espírito e ele vivesse feliz e satisfeito com o deplorável estado da relação? E se ele já tivesse um plano B em andamento, daí não se incomodar sobremaneira com a falta e privação que se vivia lá em casa? Mais valia não andar com rodeios ou panos quentes. Tinha de abrir o jogo. Consigo e com ele. Arranjar coragem, fôlego e o momento indicado. Sem crianças, sem azedume… Sem esperança? Para lhe falar daquela palavra. Aquela que ainda lhe escapava. Aquela que falava do degrau descendente que todos os dias, quase invisível, ameaçava uma entorse no tornozelo ou até partir-lhes os pés – na mais moderada das versões –, sempre que tentavam dar um passo. Estava na hora de o tornar visível, para que todos o pudessem descer sem dramas nem ferimentos. Talvez uma lista amarela, que o sinalizasse, ou um ainda mais claro anúncio: Cuidado com o degrau.
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