Da porta aberta, de par em par, da varanda chegavam-lhe as conversas da cidade, o chiar dos elétricos, as travagens dos mais nervosos e as buzinas nos impacientes. Da porta aberta, de par em par, da varanda chegava-lhe o pulsar do bairro, a tensão da vida urbana. Chegava-lhe ainda, da porta aberta, de par em par, da varanda, o espelho prateado do rio e a silhueta deitada daquela outra cidade que se espreguiçava naquela outra margem lá longe. Daquela porta escancarada chegava-lhe tudo aquilo que parecia fugir-lhe do seu próprio corpo. Chegava-lhe a vontade de viver e cabrear por aí. A vontade de rir e se inquietar. Aquela moldura de luz trazia-lhe vibrações e frémitos que o seu corpo calara. Demasiada cor para o universo a preto e branco a que se entregava.
A arrastar a perna, ainda dorida, levantou-se para fechar aquela pálpebra, através da qual experimentava e espiava a rua, a vida lá fora. Fecharia, primeiro, a porta escancarada. Abafaria, assim, os ruídos, os ritmos. Depois, e seria esta a ordem, cerraria as translúcidas cortinas, fazendo-as bailar no varão até se unirem em harmonia. Com isto, filtraria a endiabrada luz, que nada parece deter. Seria o seu entardecer artificial. Domesticada a luminosidade, poderia deixar de semicerrar os olhos, feridos com tanta alegria diurna. De seguida, a ordem era esta, baixaria os estores, moldando o nível de sombra aceitável para aquela hora sentimental do seu dia. Caso fosse necessário, retrocederia todos os anteriores passos e começaria por fechar as portadas e, assim, dar por findo o espetáculo da rua.
Equilibrada num só pé, a bailarina preparava-se, pois para fechar, primeiro a porta (ou desde logo as portadas), para pôr cobro àquela banda sonora quando outra se lhe sobrepôs. Vindo lá de fora, um teclado de piano, primeiro hesitante, depois ritmado, soltava notas que despertaram nela vontades adormecidas. Um trecho que parecia conhecer, ou seria apenas vontade de conhecer? Do andar de cima, até então apenas um ruído de passos de homem solitário, o convite para voltar a colocar o pé no chão, tateando destrezas, ensaiando atrevidos rodopios, talvez mesmo o esquiço de um pliê. Se, ao menos, se atrevesse. Se, ao menos,… Os nervos em pontas, as mãos nos arabescos da varanda, à laia de barra. Sorriu. O sol cintilou no seu cabelo, mas isso a bailarina não viu. Riu alto. A rua estremeceu em gargalhadas, mas isso a bailarina não ouviu. Arriscou, depois, caminhar até à porta da entrada. A dor na perda cada vez mais uma memória. Reconhecia aquele ímpeto apaixonado. Lembrava-se bem dele. Recordava-se desse motor. Dessa guita que a fazia rodopiar sempre que se deixava ir. Sempre que obedecia à espiral de felicidade e se deixava guiar pelas sapatilhas. Iria conhecer aquele homem, as suas mãos velozes, aquela pauta endiabrada. Há sempre beleza num homem que conhece o piano daquela maneira, com aquela intimidade e sabedoria. O peso e a cadência certos em cada tecla. Há coisas a aprender com aquelas mãos. Serão sempre mãos de amante. Não há olhar, temperamento ou outro enleio que se equipare ao feitiço de umas mãos de pianista, de umas mãos de amante, ainda que amador, mas sempre e já amador.
Dançaria como sempre. Sem parar. E se, afinal, até já se conhecessem e aquele fosse apenas o reencontro? Imaginou a possibilidade do reencontro. Os olhares silenciosos. Os sorrisos a medo. O coração em desordem e as palavras já em alvoroço, num canto da mente, a ensaiarem, sozinhas ainda, as coitadas das palavras, discursos e abordagens apropriadas. Qualquer narrativa serviria num caso desses. Concebeu ainda que tudo isso poderia igualmente acontecer se nunca se tivessem visto. Estas coisas acontecem. Ouve-se falar delas a todo o instante. É o amor a acontecer. A paixão a brincar aos namorados. Essas coisas acontecem. Abriu a porta. Ia tornar a dançar sobre as teclas daquele piano, sob a batuta daquelas mãos de pianista. Subiu as escadas. Ia permitir-se uma aventura. Ia tocar à campainha.
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