Era o doce e extasiante travo da liberdade. Sem limites. Sem restrições. Sem moralismos. Sem reprimendas ou impossibilidades. Apenas o mundo à sua frente. Apenas ela e o universo. Uma astronauta na enorme aventura do espaço e do tempo. Só assim se é livre. Sem constrangimentos. Apenas vontade e caminho. Apenas ânsia de seguir. Só mais uma volta ao quarteirão. Mais uma ronda pelo bairro. As pernas doridas de tanto pedalar, mas nem sinal de abrandamento ou cansaço. Era livre. O vento saudava o seu cabelo, as fitas da bicicleta e a sua coragem e juntos celebravam o primeiro e incomparável passaporte para a vida. Para a autonomia e independência. Tanto, mas tanto que uma bicicleta nos dá. Terão todos consciência disso? Saberão devidamente apreciar este bilhete que soma viagens sem regresso? Idas sem volta? Uma bicicleta é tudo aquilo de que se necessita na vida. Porque uma bicicleta não se move a necessidades, antes a vontades. Vontade de partidas, aventuras, descobertas e loucuras. Vontade de ter vontade. De ir e descobrir. O mundo e os seus limites, as nossas urgências e os destinos a que elas nos conduzem. Rita sabia tudo isso. Por isso pedalava. Sem cansaços. Sem destino, sendo essa a melhor maneira de partir. Sem destino ou agenda. Sem hora de chegada nem local previsto para paragens.

Nenhum outro momento na vida se compara a tudo aquilo que se experimenta com a nossa primeira bicicleta. Nada! Nem o primeiro carro, nem o primeiro bilhete de avião, nem a primeira viagem à lua nos braços de um amante ou a possibilidade de pousar em Júpiter, num qualquer ano de calendário. Rita pedalava. Tinha até à hora de jantar. Tinha até lhe apetecer. E se não virasse na mesma rua de sempre e seguisse para a estrada? Esse perigo anunciado e, por isso, proibido.

– Não saias do bairro, ouviste?!

A voz da mãe, do pai e dos irmãos mais velhos. “Não saias do bairro.” “Não vás para a estrada.” Mas a sua bicicleta amarela – amarela, ainda por cima, com fitas no guiador e um cláxon que o Gui lhe tinha adaptado, para garantir que a irmã mais nova se fazia anunciar devidamente ao trânsito e aos perigos do mundo motorizado e pedonal – ansiava por alcatrão profissional, municipal, por aventuras reais e não mediadas pelas protetoras ciclovias do bairro. Um dia teria de se aventurar e a temerária bicicleta amarela – amarela, ainda por cima, com fitas no guiador e um cláxon que o Gui lhe tinha adaptado no guiador – não pretendia esperar. Estava pronta e Rita, com ela, sentia-se preparada para os primeiros sinais de trânsito de verdade, para o risco do tráfego, para a intensidade da adrenalina de quando os riscos são reais e o vento sopra de forma diferente no rosto, agora sério e compenetrado pela constante avaliação das melhores decisões.

Vamos. Vamos com calma. Vamos conseguir. Rita não contornou pela rua dos avós. Parou um instante, a avaliar a firmeza da sua decisão, o nível de certezas do seu jovem e ansioso coração. Mãos firmes e doridas, de tanto apertarem os punhos do guiador. Pé firme no chão. Se o primeiro carro que por ela passasse fosse amarelo como a sua bicicleta, iria. Isso significava não ter muitas certezas. Carros amarelos não são muito comuns. Talvez um preto ou… Passa um carro. É amarelo. Rita sorri. Rita ri. A bicicleta dá uma sonora gargalhada e o vento, divertido, abana as fitas penduradas de cada um dos lados do guiador. Era amarelo. Dá para acreditar?! Era um sinal. Não. Era um incentivo. Melhor, era uma certeza de que estava destinado. Tinha de acontecer. Era hoje. Rita sente o coração a palpitar enquanto segue em frente. Para trás a ciclovia. Agora só já passeios e estrada. Ela pertencia à estrada. Passou pelo cabeleireiro onde cortava a franja. Pelo escritório do avô. O coração ia galgando as escadas de acesso à sua boca. Já lhe ouvia o riso, que já se misturava com o seu. O vento era diferente. Havia cheiro a alcatrão, a escapes e a borracha, a emoções fortes e a bravura. O medo que sentia era um desconhecido combustível, que incitava a seguir. Paradoxalmente, instigava a seguir sem medo. Rita pedalava a sua intrépida bicicleta amarela, com franjas coloridas no guiador, um cláxon brilhante e sonoro, e ria. Ria alto. Acelerava. Acabava de ultrapassar um autocarro que, na paragem, deixava umas pessoas e recolhia outras rumo a outros destinos. Ainda que parado, ultrapassar um autocarro era um feito. Um fato. Real. Uma verdade que poderia contar na escola: “Ontem, ultrapassei um autocarro na estrada.” Só de proferir mentalmente esta frase, Rita já se sentia uma super-heroína. Era crescida. Decidia a sua vida e os seus percursos, montada no seu passaporte amarelo.

Um semáforo. O seu primeiro semáforo. Um autocarro e um semáforo, sem esquecer o carro amarelo, responsável por tudo isto. Concentrou-se no semáforo. Estava verde. Aceleraria para que não tivesse de parar. Parar implicaria reiniciar a marcha, o que se traduziria num lento arranque, e numa estrada movimentada, com carros de verdade a andarem de pressa… Isso assustava Rita. Percebeu que também a bicicleta estava receosa. Tinham de passar com o verde. Tinham de acelerar. Ser a Telma Monteiro da corrida. A Patrícia Momona do ciclismo. A barriga das pernas em esforço, acusava dores que não sentia. Estava verde. Estava verde. Estava amarelo. Travar seria imprudente. Sentia carros no seu encalço. Só mais um esforço. Estava amarelo. Tinha de decidir. Estava vermelho. Faltava pouco. Não podia parar. Estava muito vermelho. Rita voava no ar imenso, engolindo golfadas de ar poluído e incerteza, presa à sua bicicleta amarela com franjas e uma campaínha brilhante e sonora , com destino ao espaço. Com destino?

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