Os tremores. A comichão. As dores. A brutal ansiedade. A avidez. O apelo do desespero. A disforia. Passou o pacote. Janeco aquecia já a colher. Dividiriam. A meias. Não havia tempo para mordomias, nem seringas, ao que parecia.

– Falta muito?

A voz sumida. Cavernosa. Não a reconhecia. Era Janeco quem falava ou tinha sido ele? De quem era aquela voz? A quem faltava o tempo? Quanto tempo é pouco tempo quando falta o tempo? Janeco sempre mais funcional, a aparentar uma calma que a ambos faltava. Uma mão segura, disfarçando necessidades. Uma aparência de normalidade, um braço limpo de mazelas, mas um pescoço que não mostrava ao mundo. Um passador. Um verdadeiro amigo da desgraça.  Um amante. Uma paixão. Tudo e nada.

Janeco tinha o caldo pronto. A carga embarcava já naquele contentor tantas vezes usado. Que se lixe! Tinha de ser já. Faltava o garrote. Tateou as calças. Não encontrava o cinto. Ainda haveria cinto no seu guarda-roupa? Não se recordava. Do que se recordava, na verdade? Tinha mãe? Pai? Quem era? Não tinha memória. Deve ter havido uma casa, amor, uma escola primária, amigos, namoradas, amantes, uma cama, calor, colo… Deve ter havido uma vida, mas não conseguia chegar a ela. Um passado? Passado onde? Com quem? A fazer o quê? Tentava. Não conseguia. Quem era? O que fora? O que fazia? Aguardava. Aguardava apenas. Entre doses de falsa esperança de se poder voltar a lembrar, apenas para depois desejar voltar a esquecer-se. Não importava de onde vinha. Importava para onde ia. Desde que fosse em breve. Desde que fosse já. Não sabia como. Uma gravata. Janeco ajudava-o. Grande amigo. O seu amor. Seria? Terá sido? Não sabia se tinham um passado ou um futuro. Mas tinham o presente. Agora. Já!

Dividiriam. A meias. Fifty-fifty. Eram parceiros. Isso, eram.

Virou a cara. No chão, o pacote. Vazio. Janeco deve ter-se enganado. Já teria consumido a sua parte? Estaria tudo na seringa? Levantou a mão. Não. A mão não subiu. Ia dizer-lhe. Não. Não disse. Não tinha palavras. Tinha, mas…

– Janeco, é para dividir isso.

Não ouviu a sua voz. Tinha de conseguir articular aquilo. Era para dividir. Era muito!? Não podia deixar passar o momento. O êmbolo a galgar distâncias. Tinha de ser já…

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