Costumava ter olho para a coisa. Saber exatamente ao lado de quem se sentar, com vista a uma viagem tranquila e segura. Sem que alguém ousasse meter conversa. Ou se atrevesse a sorrir, num tolo convite a uma impossível troca de palavras àquela hora da manhã, ou outra hora que fosse. Sem que as pernas começassem a roçar uma na outra. Sem intimidades ou grosserias. Sem incómodos, portanto. Aquele tipo tinha-a enganado. Completa e totalmente. Apenas um ar de asseadinho. Tão-somente o faz de conta de carnes lavadas e cabelo sedoso. Tudo uma grande mentira. Um real embuste. Deveria haver multas e penas pesadas para os porcos que utilizam os meios de transporte públicos. Estava sentada ao lado de um indivíduo do pior que há, aqueles cuja cara e aspeto não são reveladores da sua verdadeira natureza de inimigos da água. Imundo. Um embusteiro. O cheiro a desodorizante com que disfarçava a falta de água e sabão era agoniante. E patético, também. Um banho rápido, com sabão azul e branco, sairia mais barato do que um frasco de aroma rasca com que ludibriar a imundice.
O que mais incomodava Custódia – por esta altura, já à beira do vómito compulsivo, aquele que já nem lhe permitiria chegar à casa de banho –, era o seu próprio pudor em levantar-se e mudar de lugar. O homem veria. Perceberia que dele se afastava intencionalmente. Que preferia, por ventura, ir de pé a estar sentada ao lado de tais odores: um misto tóxico de mofo, tabaco, chocolate, laranja e latas de conserva abertas e expostas ao ar há mais de sete dias. Que culpa tinha ela? Qual a sua responsabilidade em tudo aquilo, para que ainda carregasse o peso da vergonha alheia? Ela, que mesmo quando a bilha do gás se permitia baixas de tensão e esvaziamentos inoportunos, se submetia ao esguicho de água gelada, afagada por canalizações por onde facilmente se imaginam nano estalactites do mais glaciar frio. Logo ela, Custódia Geraldina. E que não lhe viessem com níveis de vida, pobreza e misérias depressivas. Não a ela. Vivera um ano na rua sem que alguém reparasse. Banho diário, nos balneários públicos da capital. Sempre roupa lavada, às escondidas que fosse, em casas de banho públicas, ou mesmo nas dos empregos por onde ia passando, em busca da liberdade. Quer dizer, daquela forma de prisão que nos tira da rua: emprego, casa e meio de subsistência. Grilhões com que nos habituámos a viver, mas com os quais lidamos bem, na vã ilusão de que isso é liberdade. Podia não ser erudita, nem muito sofisticada, mas para saber que isso não era liberdade, Custódia tinha estudos mais do que suficientes e uma mente demasiado lúcida para que não soubesse o que é a verdadeira liberdade. Uma utopia com que se entretinha a fabular, sempre que a seu lado não se sentava um porco com banho tomado num aerossol de má qualidade comprado no Mega China, lá da zona. Toda a gente acha muita piada aos Nirvana da vida, desde que estes se mantenham a cantar em palco e não se atrevam a sentar-se ao seu lado num transporte público. Todos pagamos bilhete, pelo que a todos assiste o direito a uma viagem sem desmaios, por motivo de mau cheiro. Já para não falar no risco sério de contrair doenças de pele ou coisa pior.
Nesse dia, ainda uma sonolenta e gelada madrugada, Custódia encheu-se de coragens e levantou-se do lugar onde, para seu escandaloso horror, o tipo já se encontrava a cortar as unhas das mãos com um corta unhas, fazendo com que lascas de casco humano saltassem aleatoriamente sobre o mísero proletariado, mulheres de limpezas e estudantes que enchiam as carruagens do comboio suburbano que a todos levaria à capital. O que era aquilo? De onde tinha aquele tipo de gente saído? Cortar as unhas em público? Teria nascido debaixo de uma pedra, o porco? Liberdade era isso. Era não ter medo. Não ter medo nunca, nem mesmo de se levantar de um lugar numa clara fuga ao mau odor de um tipo que tudo desconhece de civilização e mínimos de convivência em sociedade. A pobreza pode ser triste, doente e depressiva, mas não é imundice. Também há liberdade na pobreza. Liberdade para não ter medo de se ser pobre. Liberdade para decidir não se ser porco. Liberdade, finalmente, para fugir dos porcos.
Custódia sentia-se uma heroína por, pelo menos essa vez, uma vez solteira, ter decidido mostrar o seu desagrado por uma situação. Não precisou sequer de falar, apenas agiu em função do que sentia. A enorme repulsa pelo odor de um cretino, que devia acreditar que tudo gira em seu redor, fê-la levantar-se sem pudores e procurar um lugar melhor. Gostaria de ter conseguido fazer algo do género na véspera quando, pelo espelho da pala para o sol do carro de uma colega que lhe deu boleia para casa, assistiu a uma cena surreal. A fulana que conduzia o carro imediatamente atrás daquele onde seguia, ambos parados numa fila de trânsito capaz de assustar Godzilas, tirava furiosamente macacos do nariz, os quais comia de seguida. Não. Não era ficção, nem um escape mental à paralisia do tráfego. Foi real. A mulher tinha uma técnica que permitia perceber anos de prática. Tudo era manobrado com o polegar. Isso mesmo. Colocava a aba de uma das narinas entre o indicador – que ficava do lado de fora do nariz – e o polegar – este, todo enfiado na narina. Depois, retirava o ‘produto’, e, num simples gesto rotativo, virava o dedo polegar para dentro da boca, de onde sacava… Não conseguia prosseguir com aquela descrição, nem mesmo mental. Era repugnante. Nem se atreveu a contar à colega, pois o tema embaraçava-a, como se fossem seus aqueles atos nojentos. Tinha de acabar com aquilo. Porque continuava, já adulta, a colocar debaixo do tapete o lixo alheio? De que se poderia culpar? Seria uma púdica? Teriam os seus pruridos higiénicos algo a ver com Distúrbio Obsessivo Compulsivo?
Boa. Um lugar vago. Custódia correu a sentar-se. A vizinhança parecia-lhe civilizada. Todos pareciam valer a pena o risco. Era um daqueles lugares duplos, de frente para outros dois lugares. Evita-os sempre que pode, já que olhares frontais são do pior que há num transporte público, exceto para quem anda no engate, o que era, nitidamente, o caso da rapariga à sua frente. Blusa de poliéster wanna be seda branca. Soutien colorido – parecia-lhe bordeaux – que se via à transparência. Uns calções tão mini – na verdade, eram tamanho nano – que, sentada como estava, parecia usar apenas parte de cima. Era gira. Tudo tinha um certo bom ar, mas, ao mesmo tempo, era vulgar. Solteira, concluiu Custódia. À janela, ao seu lado, um totó, agarrado a um portátil, armando-se em muito moderno e ocupado, quando apenas jogava uma idiotice qualquer que parecia demasiado infantil para a sua idade. Pobrezinho. Mesmo de lado, recorrendo a uma bem treinada visão periférica, Custódia bem percebia como ele não tirava os olhos das pernas da miúda do engate. Claro que esta não procurava aquele tipo de artigo. Um adulto preso na adolescência, a matar soldados no ecrã, com uma t-shirt do super-homem e a desesperada ambição de parecer hipster, quando tudo aquilo que revelava era solidão e desespero, como todos os outros. Ela jamais se interessaria por ele. Aquilo era mulher de homens de camisa e blazer. Podiam até vestir jeans e sapatilhas, mas camisas, seguramente que sim. Ela fingia que lia umas sebentas. Podia ser um caso jurídico, mas de calções de ganga não poderia ser advogada, para professora também não estava condignamente vestida, e para estudante já era um pouco velha. Devia ser apenas um disfarce, até porque olhava em redor com frequência, principalmente sempre que, a cada estação, entravam novos passageiros. Não era lésbica. Fixava apenas os homens. Os de camisa e blazer, como previra. T-shirts lembram-nos a pobreza e simplicidade de onde vimos e da qual queremos partir o quanto antes, não obstante teimarem em torná-las moda. São apenas os ricos a brincar aos pobrezinhos. Aquela miúda sabia que t-shirts nem no iate, onde os polos são mais adequados. Porém, os de camisa e blazer, por norma, já tinham sido conquistados lá atrás, numa anterior estação, na altura em que também eles usavam t-shirts. A vida não é fácil. Mas ela não era distraída e vasculhava os anelares de todos eles. Não valia a pena perder tempo, ou, então, procuraria apenas uma historieta e não um qualquer impossível final feliz, e, nesse caso, uma aliança é um porto seguro. Era esperta. Não tinha de se preocupar com ela.
Ao lado desta mulher, encostado à janela, de frente para o ‘super-homem’, um neurótico. Roía as já quase inexistentes unhas nos curtos intervalos em que não dedilhava ágil e maniacamente as teclas de um gigantesco smartphone. Trabalho, ou uma mulher ciumenta, daquelas que começam logo às sete da manhã com mensagens de amor e de preocupação, que não passam de vigilância cerrada? “Já chegaste?” “Chegaste bem?” “Não te esqueceste da marmita, certo?” Devia ser o único homem naquela carruagem que nem reparara nos micro calções da parceira de banco. Um caso sério de absorção ou preocupação.
Custódia não queria acreditar. De onde estava conseguia ver perfeitamente o tipo do guarda-chuva, como lhe chamava para si mesma, que estes assuntos matutinos, não são de partilha social, apenas esboços de vidas que desenha na sua mente. O homem do guarda-chuva chamava-se assim por ser o seu homem da meteorologia. O homem sabia sempre quando ia chover. Reparou nele certa vez, numa manhã bem-disposta que se adivinhava de sol e veraneio, em que deu conta daquele indivíduo, que destoava de todos os outros pelo seu enorme guarda-chuva absolutamente patético, tendo em conta o que o céu azul prometia. Nesse dia, ainda nem tinha tido tempo de chegar ao emprego e cai uma carga de água vinda não sabe de onde, que teve o efeito de lhe recordar aquele homem prevenido e sapiente. Era o seu Borda d’Água. O melhor de tudo é que acompanhava há semanas um ainda pré-romance entre este tipo previdente e uma viúva. Sabia-o porque a mulher teimava nas duas alianças, uma maior do que a outra, a qual travava com a mais pequena. Sinal de que usava a aliança do falecido sem conseguir mandar apertá-la à medida do seu dedo. Pelo andar da carruagem, nem precisaria de se dar ao trabalho, já que o homem do tempo parecia já ter a presa bem segura nas suas garras de embeiçado. Começou por se manter próximo dela. Por serem tão do mesmo género físico e estético, começou por pensar que eram um casal. Sóbrios a vestir, mas com bom gosto e algumas marcas a dar a dar, eram uma espécie de par, de saleiro e pimenteiro. Apercebeu-se, afinal, de que não eram. Não por inicialmente não se falarem, mas por, além disso, entrarem e saírem em estações diferentes.
Depois, vieram os meios sorrisos, os olhares aflitos quando não apanhavam o mesmo comboio ou não entravam na mesma carruagem. Depois, a tática de entrarem sempre na mesma carruagem, tal como Custódia fazia. O hábito é tramado. Mais tarde, vieram os sorrisos já não pela metade nem disfarçados. O toque. O cuidado, da parte dele, de a amparar aquando de travagens mais bruscas e tão oportunas. Uma gripe impediu Custódia de acompanhar o início do diálogo, talvez a propósito do clima instável dos últimos tempos ou qualquer outro tema de ocasião, pelo que ficou excitadíssima, quando regressou à rotina e percebeu que o seu Borda d’Água e a jovem viúva já se cumprimentavam e falavam o tempo todo. Hoje, porém, algo tinha acontecido. A viúva não seguia naquela composição e ele não a procurava, seguia calmo, de olhos postos num jornal e sem guarda-chuva, pelo que já deviam ter trocado de números de telefone ou comunicar-se pelas redes sociais, o que justificaria a tranquilidade do homem. Ele devia saber antecipadamente que ela não iria estar. Estava tristonho, mas não inquieto. Seriam já um casal? Teriam discutido? Teria ela, finalmente, decidido mandar apertar a aliança do falecido à medida do seu dedo, para desespero do Borda d’Água?
Voltou a sentir aquele odor de quem substitui o banho por uma dose extra de desodorizante. Não suportava aquilo. Mas o que é que se passava com toda aquela gente? De pé, quase a roçar o seu ombro, aquela roupa pestilenta, desta feita de uma mulher ainda nova. Aquilo não devia ver água há umas boas semanas. Deve poupar-se o planeta, fazer uma gestão inteligente da água e evitar os tóxicos detergentes, mas deixar de tomar banho não ia salvar quem quer que fosse. Tirou do bolso um lenço perfumado, com o qual fingiu assoar-se, a fim de conseguir respirar algum ar menos poluído. Custódia era prevenida, só lhe faltava o guarda-chuva do outro, pensou orgulhosa dos seus métodos. Nisto, a pestilenta lá se afasta. Volta o ar menos contaminado às sensíveis narinas de Custódia.
De repente, perdeu-se. Não gostava quando tal lhe acontecia, mas, de vez em quando sucedia enredar-se na sua mente, seguir pensamentos sem retorno. Deixar de ver, ouvir e sentir e apenas pensar nas suas coisas. Começou por pensar que deveria aproveitar as viagens para ler, mas como lhe dava sono, nunca achou indicado dedicar-se a isso. Malha tinha sido outro dos projetos, mas à hora a que ia para Lisboa, nem sempre conseguia lugar sentada e andar carregada com o cesto da malha para meia dúzia de carreiros… Lembrou-se ainda de que essa seria uma noite diferente. Tinha sido convidada pelos colegas de trabalho para uma saída. Comida tailandesa, ou vietnamita, que Custódia não era muito entendida na geografia da Ásia e acabava sempre a baralhar países. O que já não acontecia com os restantes continentes, sobre os quais sabia imensa coisa e não apenas a distribuição geográfica. Nem sabe bem como, memorizou tudo aquilo, mas a verdade é que era quase uma expert. Qualquer coisa que ouvisse acabava gravada nos seus registos geográficos. Já a Ásia…Fosse como fosse, estava entusiasmada. A única coisa que a desgostava era ter de estar duas horas sem nada fazer, entre o horário de saída e a hora combinada para o jantar. Esse tipo de contratempos, muitas vezes, era fatal. Chegava a retirar-lhe o ânimo e a vontade natural de se divertir, isto quando não a desmotivava, desde logo, a ir. Desta vez, porém, decidiu que tinha de ir. De conhecer melhor os colegas. De lhes mostrar que era porreira e nenhum bico do mato. Que gostava de se divertir. Fizera bem. Mais do que bem. Depois de aceitar o convite, tinha ficado a saber que Raimundo também iria. Era chefe de outro departamento e Custódia sentia suores frios só de ouvir o nome dele. Sim, era do tipo de camisa e blazer e não, não era casado. Pelos menos, dizia não ser casado, que isto a gente nunca sabe tudo, tudo sobre alguém. A não ser que se queira muito saber. Custódia queria, e lá andou a vasculhar as redes sociais de Raimundo. Muito desporto, muita pesca, muitas viagens. Mulheres, nada. Talvez fosse gay. Poderia ficar a saber tudo isso hoje à noite. Bastava que acertasse na dose certa de vodka. Por defeito, manter-se-ia acabrunhada como sempre, por excesso, enrolar-se-ia com o primeiro que a convidasse. Era essa a história da sua vida. Tinha de agir com cautelas.
Com a distração, deixou passar a sua estação. Não podia pagar um táxi para recuperar o tempo perdido, isso era um luxo para as suas finanças. Que chatice, pensou. Nem sequer percebeu quem tomou o seu lugar frente à miúda do engate. Seguramente, já deveria haver interessados. E o Borda d’Água? Teria saído na estação do costume ou iria ter com a viúva a algum lado? Ou já viria da casa dela? Que nervos! Como se pudera distrair daquela maneira? Estava a perder episódios preciosos da sua loco-novela. Tudo por causa da insondável Ásia e do magnífico Raimundo. Rai. Mundo. Assim, separadas, as duas palavras levavam a crer que era uma transmissão da televisão italiana para o mundo. Divertia-se a desmontar as pessoas em pequenos puzzles menosprezíveis, que lhe permitiam, depois, não se sentir tão intimidada frente a elas, ou poder recorrer a estes jogos mentais sempre que se sentia atrapalhada na presença de alguém. Raimundo era a sua emissão de TV privada. A Rai Sport, provavelmente. Uma simples avaria num cabo ou retransmissor, na fibra que não seria ótima ou um ecrã com falta de pixéis, e lá se ia o Raimundo.
Saiu disparada do comboio e, sem pensar demasiado, desatou a correr, em direção ao escritório. Estava um vento frio e o ar na cara fez-lhe bem. Seria um banho de vento, para retirar os odores de toda aquela gente suja. Serviria até para se ‘desbacterizar’. Custódia passou a manhã esbaforida. Antes da hora de almoço, quando foi à casa de banho, verificou, horrorizada, que tinha manchas de suor nas axilas. Marcas escuras em forma de ângulos retos de transpiração, daquela corrida parva de manhã. Sentiu-se obtusa perante aquela imagem aguda. Logo hoje, porque não fora a andar simplesmente? Um pequeno atraso não é pena capital, mais ainda de uma funcionária assídua e pontual, como era óbvio no seu caso. Nem sequer se traduziria em atraso, pois vai sempre um pouco mais cedo, e mesmo hoje ainda tinha conseguido chegar antes de todos os outros.
Por sorte, tinha trazido um vestido para essa noite, e a bolsa da maquilhagem. Queria causar boa impressão. Queria que Raimundo visse o outro lado daquela mulher séria e competente. Os homens gostam de rigor no trabalho, mas para companheira alguém que tenha uma certa dose de imprevisto, de loucura. Ela mostraria a todos como podia ser divertida, como gostava de dançar… Tinha apenas – repetia-o como uma nota para si mesma, um post-it mental – de acertar na dose certa de vodka. Não se podia embebedar e perder o controlo, nem se acobardar a um canto junto dos nerds. Não podia permitir que qualquer uma dessas situações ocorresse.
O resto do dia parecia não ter fim, tal era a ansiedade com que aguardava aquela oportunidade e a esperança que nela depositava. Aproveitaria o tempo que teria de matar até à hora do jantar para, com calma, se aprontar na casa de banho da empresa. Bastaria avisar o segurança de que ficaria até mais tarde, não fosse ser apanhada nua numa das rondas do homem. Logo que percebeu estar sozinha, entrou na casa de banho, para se refrescar, trocar de roupa, pentear-se, maquilhar-se. Tinha mais do que tempo para se tornar espetacular. Despiu a blusa que trazia e, com ela limpou as axilas. Depois, lavou-as e secou-as debaixo do secador das mãos, pois com papel poderia ficar com algum rolinho inestético numa das rugas dos sovacos e nunca se sabe quem poderia vir a dar com esse inestético detalhe, lá para o fim da noite. Assim o desejava, pelo menos, mas sem o rolinho de papel encravado debaixo dos braços. Isso não. Dobrou a roupa que trouxera vestida e abriu o saco com a roupa destinada ao jantar, onde colocaria a primeira. Decidiu, entretanto, maquilhar-se primeiro, já que o longo fecho do vestido permitiria que o vestisse pelos pés, sem que tivesse de passar pela cabeça, o que poderia causar danos na maquilhagem. Assim fez.
Só de roupa interior, penteou-se e maquilhou-se até achar que tudo estava como queria. Enquanto isso, magicava no receio latente de que o Sr. Vasco, o segurança, fosse acometido por um ataque de loucura ou de lascívia e libidinagem e entrasse pelo WC adentro. A sua não muito longa, mas bem dramática experiência de vida ensinara-lhe a estar atenta e a preparar-se para qualquer cenário. Atacá-lo-ia com o quê? Estava tudo preso às paredes. A pinça, recordou-se. A pinça, bem espetada numa parte mole do corpo podia até ser fatal, ou cegar. Tirou a pinça das sobrancelhas da bolsa e manteve-a à vista o tempo todo, que isto, como Custódia dizia, “a gente nunca sabe”. E a gente nunca sabe mesmo. Nem Custódia nem qualquer outra pessoa.
Custódia, porém, estava prestes a saber o impensável. Que o vestido, afinal, tinha ficado esquecido e todo bem dobrado em cima da cómoda, onde tinha o perfume, último ritual antes de sair de casa e razão pela qual aí colocara o vestido: para dele não se esquecer. Nem dele nem do perfume. Que acreditara tê-los posto numa bolsa lateral da mala, onde não se amarrotaria o primeiro nem se partiria o segundo, mas que não chegara a fazê-lo. Quando percebeu isso, depois de ter esvaziado a carteira um milhão de vezes, mais à espera do milagre do que de, verdadeiramente, encontrar o vestido, Custódia olhou o estado miserável da blusa com que acabara de limpar as axilas… Não perdeu tempo. Lavou-a o melhor que pôde no lavatório, com detergente para as mãos. Secou-a com esmero no secador das mãos. Vestiu-a com repulsa, pois não cheirava como acreditara que poderia ficar a cheirar, depois daquela apurada barrela. Ponderou voltar para casa, no comboio das oito. Ainda poderia recuperar algumas das histórias perdidas nessa manhã. Não. Não podia deixar de ir ao jantar. Seria pior do que uma nerd, seria uma mentira, alguém em quem não se pode confiar. Uma cobarde. Tinha mesmo de ir. A maquilhagem estava ok, ainda. O cabelo também. O fato que trazia era giro, podia optar por nunca tirar o blazer. A blusa… A blusa não cheirava bem. Vasculhou a necessaire onde levara a bolsa da maquilhagem e o secador de cabelo. A mão de Custódia nervosamente palpando o fundo da bolsa, em busca de auxílio, em busca de socorro. Nisto, os seus olhos fixaram o branco icy e puro daquela embalagem metalizada brilhante, enquanto os seus dedos atestavam a sua superfície fria. Estava salva. Custódia tinha encontrado um resto de Deo Parfum Spray.
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