Tinha apenas uns dez minutos, para entregar o formulário de acesso a um financiamento a fundo perdido que, estava certo, mudaria a sua vida. Algo lhe dizia que, de alguma forma, conseguiria chegar a tempo, já que tudo o que se relacionava com o assunto lhe parecia chegar à última da hora. O próprio anúncio, tinha-o descoberto, quase por acaso, nesse mesmo dia, o último para a inscrição. Uma primeira fase, uma espécie de pré-seleção dos candidatos mais aptos e que antecedia a entrega do projeto. A fim de se habilitar, Deus teria de apresentar uma ideia bem fundamentada e criativa. Acima de tudo, criativa, original, inesperada e inspiradora pois era isso mesmo que o concurso premiava: a capacidade inventiva e a originalidade dos concorrentes. Teria, na verdade, de apresentar a ideia mais bem fundamentada e mais criativa de todas, pois apenas essa, e nenhuma outra, seria financiada a 100% e a fundo perdido. Abaixo do primeiro lugar, os índices de financiamento não lhe interessavam, na medida em que não tinha qualquer espécie de verbas pessoais, que pudesse juntar ao valor de qualquer um dos prémios em jogo. A sua aposta era no tudo ou nada. Seria, para si, uma questão de vida ou morte. Nada de permeio. Vencer ou desistir. Ganhar tudo ou nada ganhar.
Pedalou até quase perder o fôlego, galgou, depois, a enorme escadaria que conduzia à secretaria do Olimpo e, pode dizer-se, cruzou a ‘meta’ no último instante, já que estava prestes a esgotar-se o último segundo para a entrega das inscrições. Depositou a sua, em voo rasante, em cima do balcão, permitindo-se, só então, abrir de par em par a janela do seu melhor sorriso de satisfação. Missão cumprida. A primeira, apenas, a menos importante, ainda, mas sem essa nenhuma das outras, as seguintes, poderia existir e esta estava concluída.
Só então, os canais sensoriais começaram a despertar daquele estado de alerta e urgência que o tinham mantido em modo de suspensão. Viu o rosto do funcionário, entre o espantando, o repreensivo e o divertido com a sua arrebatadora chegada. Percebeu como estava acelerado. Sentiu as gotas de suor em mega slide por todo o seu corpo. Começou, então, a ouvir. Primeiro, as batidas descompassadas do seu próprio coração, que ecoavam no seu cérebro como as badaladas de um carrilhão suspenso no crânio. Seguiram-se restos de orações, conversas cruzadas e um palpável entusiasmo reinante vindo, só agora o compreendia, do cruzamento de conversas de outros participantes – os seus rivais –, que por ali se mantinham. Agarrados ao íman da excitação dos seus planos futuros, das suas ideias fervilhantes. De súbito, entre farrapos de conversas compreendeu que concorreria com projetos de astronomia, geográficos, teleológicos, filosóficos e tantos outros, que se sentiu esmagado. Deus sentia-se perdido e sem inspiração. Tinha-se concentrado tanto em preencher a aplicação e entregá-la a horas que não tinha, por um segundo, questionado o seu cérebro sobre o que faria. Para efeitos da candidatura, tinha apenas referido, de uma forma bastante vaga, as ciências da vida como tema a abordar e a desenvolver. Porém, agora, perante a constatação de gente com ideias concretas e amadurecidas, questionava-se ou, pior do que isso, assustava-se. Que projeto ou protótipo criaria? Em que área concreta? O que é que verdadeiramente o entusiasmava?
Há dois anos, aquando do anterior concurso do género, recordava-se que tinha ganhado um fulano da sua rua. Inventara os rios. Um projeto ultra-inovador e muito revolucionário, logo patenteado, licenciado e colocado em prática. O sucesso dos seus cálculos e inventos tinha sido tal que, depois de criada a água, os caudais dos rios, os mares e os oceanos, todo o potencial hidrográfico se tinha espalhado pelo planeta e dado brado nas redes divinais. Uma ideia fenomenal, é o que era. Precisava de uma que a pudesse superar e ultrapassar em todas as direções e medidas.
Não tinha ainda chegado ao fim da escadaria, de onde já avistava a sua bicicleta amarela, quase toda enfiada num arbusto, para onde a tinha atirado, ainda em andamento, e surgiu-lhe, com a força e determinação da órbita de um meteorito, qual seria o objeto do seu trabalho, aquilo a que, a partir desse momento, dedicaria todo o seu conhecimento e engenho: inventaria toda uma nova espécie. Seres com os quais os Deuses poderiam ocupar os seus tempos livres, seres lúdicos, dotados de inteligência e autodeterminação, indivíduos desafiantes, com os quais, inclusive, pudessem pôr em prática algumas das suas ideias e conceções, sempre tão cimentadas no plano teórico, que as discussões que suscitavam se eternizavam durante séculos, dada a impossibilidade de as corroborar ou, simplesmente, refutar. Parou junto à bicicleta, olhando o húmus que se acamava na base do tronco do arbusto. Matéria orgânica, resultante da decomposição vegetal. Húmus. Repetiu a palavra até ela perder todo o sentido e filtrar-se no seu cérebro apenas como um som, um barulho sem significado. A sua nova espécie chamar-se-ia… húmunos. Não adorou. Húmanos. Talvez. Tentou sem o acento esdrúxulo. Humanos. Gostou. Soava bem. Tinha o h, letra muda, e um ótimo prefixo para algo sem valor inicial, mas que, tal como o húmus, poderia estrumar um universo de possibilidades. Como seriam os humanos? Que características físicas teriam? Como pensariam? De que forma se relacionariam? Era já o seu espírito de maker a germinar. Quase ouvia a engrenagem intelectual a ranger. Estava tudo em aquecimento.
Encerrou-se na garagem durante tanto tempo que a barba já lhe tapava o estômago. Tinha de fazer um intervalo. Tinha de respirar. Tratar da higiene. Descansar um pouco. O entusiasmo não o permitia, mas tinha de se obrigar, nem que fosse para atingir os mínimos olímpicos. Ficar apresentável. Limpo. Mais fresco e, com alguma distância, talvez conseguisse ultimar com maior sucesso os últimos detalhes do protótipo. Tinha quase finalizado o seu primeiro humano. Aquele que apresentaria perante o exigente júri.
Dados à cusquice, muitos eram os colegas que, de vez em quando, com as desculpas mais esfarrapadas, surgiam à sua porta, tentando espreitar a sua garagem/oficina/atelier/makerzone. O único a quem abria a porta, era a Baco, sempre tão alcoolizado e rodeado de bacantes que nem distinguia uma porca de um parafuso. Além de que era divertidíssimo. Um fartote! Foi precisamente ele quem o havia alertado para a sua figura. Nem se quis ver ao espelho. Se a sua higiene pessoal era assunto para Baco, um debochado, então, estaria mesmo, mesmo a precisar de um pouco de água e, agora que já a havia, não tinha qualquer tipo de desculpa.
Tinha razão, quando pensou que um intervalo, ao cabo de semanas e semanas de clausura, lhe permitiriam ver e perceber coisas que, sem algum distanciamento, jamais veria. Já sabia como concluiria o seu Humano. Chegado o dia da apresentação, estava seguro de que venceria. O que mais poderia estar à altura de tão criativo, inédito e exigente projeto? Criar ‘mini-mes’ dos Deuses ou algo parecido com meros wanna be deuses! Criar vida provida de inteligência, sim, teriam intelecto com capacidades ilimitadas. Pensariam, amariam, ririam. Toda uma nova colónia de seres. Jamais alguém surgiria com algo semelhante. Não haveria rios, este ano, capazes de competir com tamanho engenho e audácia. A sua era matéria viva e vibrante. Venceria.
A sua ideia, todo o conceito e conceção, arrojados e inovadores em toda a linha, foram sobejamente elogiados no decurso de toda a sua apresentação. O Olimpo ecoava com ‘Oh! Magnífico!’, ‘Oh! Genial!’, ‘Que maravilha!’ e entusiasmos do género que se afunilavam num único resultado: só podia ganhar. Nunca se vira o auditório dos jurados em tamanha exaltação e tão propenso ao elogio da genialidade de um feito. Estava seguro de que, no final desse mesmo dia, Deus seria o nome anunciado em todo o reino divino. Seria o Deus dos deuses. Todavia, acalmem-se as exaltações, sosseguem-se as arritmias: não foi o seu o nome anunciado. Foi outro. Nem sabe qual. Não interessa qual. Não foi o seu. Justificaram a rejeição total da sua criação com os riscos envolvidos em tal invenção, com o perigo que ela implicava. Havia todo um universo a considerar e não apenas o mérito de um conceito, de uma ideia, principalmente se esta podia colocar em risco tudo o resto. Um ser pensante, desprovido da matéria divina, por muito engenhoso que fosse o conceito no plano teórico, acabaria por ter planos de domínio e ambições desmesuradas. Seria, por definição, um ser egoísta, preenchido com soberba e revestido de inconsequência. O júri, unanimemente, chumbou o seu projeto. Deitou por terra o seu plano. Morreu um pouco. Não conseguia encher o peito de ar. Teve o seu primeiro ataque de pânico – outros se seguiriam – e forço o choro, com vista a abrandar o sofrimento e o vexame que sentia, um no peito, o outro no orgulho. Voltou a deixar de ouvir, a visão em túnel protegia-o dos olhares de comiseração. Foi sozinho, sem coroa de louros ou sorrisos descontrolados – como imaginara que seria –, que regressou nessa noite a casa. Nem deu por Baco, a dormir a um canto. Também não deu por ele se ir embora.
Deus não aceitou a nega, menos ainda o suficiente menos da avaliação final e, na oficina que montara na garagem, longe de olhares indiscretos, logo na manhã seguinte, decidiu agir por sua conta e risco e levou o seu projeto avante. Era um maker, por amor de si próprio, faria tudo sozinho. Como lhe faltava dinheiro para material de primeira, foi reunindo sucata e lixo abandonado de projetos vizinhos e basicamente tudo o que ia encontrando, aqui e ali, nas longas perambulações que passou a encetar noite dentro. Assim nasceu o seu ‘Homem – Um projeto de Vida’. Criado o primeiro par deles, um casal, pois tinha engendrado uma fórmula formidável de procriação, que dispensaria a permanente manufatura de seres e mais seres, deixá-los-ia num qualquer planeta da galáxia, à laia de mega tubo de ensaio, e manter-se-ia atento. Cuidaria deles, como se seus filhos fossem, providenciar-lhes-ia o que quer que fosse necessário para que desenvolvessem o intelecto e prover-lhes-ia tudo o que fosse necessário. Seria um pai que mima, um pai esbanjador e liberal. Um dia qualquer, bem cedo, como previa, poderia mostrar o sucesso do seu invento a todos os que o haviam recusado. Eles veriam. Esfregaria na cara do júri o erro que haviam cometido, ao rejeitar o seu invento. A sua bela criação. Um dia, que não tardaria, receberia os louros com que o tinham privado, naquela noite que deveria ter sido de glória. Que deveria ter sido inesquecível. Foi-o, de qualquer maneira, menos da maneira que desejara e sonhara noites a fio. Eles veriam só! Deus voltava a estar seguro de que estava certo.
Um dia destes, eles veriam e engoliriam toda a soberba com que o tinham chumbado, a si, o melhor em concurso. No momento certo, levá-los-ia, de surpresa, até à Terra, onde habitavam as suas cobaias, e mostrar-lhes-ia como eram seres especiais, dignos de confiança, beneméritos e merecedores. Gente de bem. Tal como ele próprio. Um dia destes! Um dia! Deus aguarda ainda esse dia. Cansado de esperar resultados mais animadores, Deus foi desinvestindo, um pouco a cada dia, do seu maravilhoso invento. Perante a incúria dos Humanos e a sua alarve e inesperada mesquinhez, Deus deixou de ‘mondar’ aquele jardim com os cuidados do jardineiro que, em nome das rosas que brotam de cada botão, não concebe, sequer, a ideia de erva daninha. Claro que esperava picos, mas jamais imaginou que não crescessem rosas. Ainda assim, talvez por teimosia ou egocentrismo – sim, ele próprio não seria perfeito –, Deus aguardava o dia. Por várias vezes tinha achado que chegara a hora de apresentar a Humanidade aos seus pares, mas acontecia sempre algo de tão brutal na Terra, por conta da estupidez humana, que retrocedia prudentemente nas suas intenções. Dispunha-se, então, a esperar mais um pouco. E mais um pouco. Mas estava certo de que o dia iria chegar. Deus aguarda esse dia.
Magnífico texto. Parabéns.