Durante anos, a avó materna não passou de uma personagem distante, uma entidade abstrata, descrita por todos como uma mulher lunática, ou mesmo insana, enlouquecida. Distanciada da realidade. Uma tola, sem grande préstimo ou valor. Era tida por todos aqueles que a conheciam e mesmo apenas por aqueles que apenas dela ouviam falar, como a tontinha da família. A inútil. A imprestável. Sempre muito aquém do que era socialmente exigido, sempre muito para lá do previsível. Um ser à parte. Com os anos, mais ainda sem que dela tivesse uma memória clara, já que um oceano as separou durante a maior parte da sua vida, a imagem da avó ganhou contornos fantasiosos, pelo que, quando Simone chegou à idade adulta, a ideia que tinha construído da avó era a de uma mulher perigosa, psicótica e alucinada. Uma mulher egoísta, egocentrada, pouco merecedora do amor dos outros, displicente e nada digna de afeto. Dela só se contavam episódios caricatos, alguns dos quais denunciadores de uma mente inconsequente, errática. Tudo o que envolvia a vida da avó era de tal forma surreal que ganhou contornos de ficção, de irrealidade, até descambar numa aura de lirismo.
Imaginava-a de cabelo solto, desgrenhado e cinzento. Uma qualquer hippie que, não obstante a idade e as amolgadelas que o tempo imprime no físico e na biologia, das mulheres em particular, se recusaria ainda a usar soutien. Concebeu para a avó um guarda-roupa flower power, uma sapateira apenas aberta a sandálias de tiras rasas e ténis prateados (não sabe muito bem a razão do tom prateado, mas era o único que lhe ocorria), e caixas cheias de coroas de flores, tecidas com destreza em milhares de festivais de música e amor livre. Razão pela qual nutria secretamente um certo carinho e entusiasmo por essa avó mistério. Por essa entidade afetiva irreal, fruto da imaginação individual e coletiva de toda a família. Um ser alienígena que estava prestes a reencontrar, agora que se encontrava de regresso a Portugal.
Antes do tão ansiado reencontro com a avó materna, porém, teve de se submeter a um verdadeiro desfile de jantares, visitas e saídas com familiares, próximos e distantes, e, quer mesmo acreditar, até com estranhos que se diziam primos e outros tantos chatos e tarados. De tal forma que, no meio de uma família que considerou sui generis, ruidosa, desinteressante, chata e deveras boçal, tudo aquilo que sabia ou julgava saber sobre a avó estimulava ainda mais a sua curiosidade e entusiasmo pelo reencontro.
Simone fez um primeiro telefonema e o resultado baralhou, por completo, o quadro que, durante anos, pintou do perfil da avó materna. Do outro lado, foi recebida por uma voz doce, educada e carinhosa, que se emocionou com o seu contacto. Um timbre acolhedor, com promessas de colo e garantia de saldo afetivo. Uma voz que lhe confidenciou uma revelação inesperada, ambas se chamavam Simone. Quer dizer, a avó, de origem italiana, chamava-se Simonetta, mas foi dela que Simone herdaria o nome. À conta de anos a ser apenas referida como a avó louca, a pobre senhora tinha ‘perdido’ o nome próprio que lhe era devido. Simone teve o pressentimento de que esse, afinal, não seria o único elo em comum com aquela mulher que, a cada segundo, se revelava de forma tão distinta da imagem que tinha criado na sua mente e bem longe da descrição que sempre recebera de todos os outros.
A avó Simonetta acabava de se mudar para uma casa nova, com o segundo marido, com quem se tinha casado há já vinte anos, após cinco de viuvez. O avô de Simone tinha morrido envolvo em mistério, havendo quem garantisse que tinha sido Simonetta que, ao não travar convenientemente o carro, acabara por atropelar o pobre coitado. O avô de Simone, todavia, não teria morrido apenas com o rodado do carro, mas como Simonetta não se apercebeu do ocorrido, o pobre coitado ficou três dias debaixo das duas rodas traseiras da viatura, acabando por sucumbir. Não se sabe muito bem como, mas a polícia acabaria por aceitar a versão de Simonetta, e esta era apenas uma das muitas histórias que sempre ouvira contar sobre a avó e a sua bizarria.
Acabada de se mudar, para um bairro nas cercanias da cidade, rodeado de pinhal e junto à orla costeira, Simonetta não aceitou que o tão esperado reencontro entre ambas acontecesse noutro local que não na sua casa nova. Simone concordou, claro. Até porque bisbilhotar a casa de alguém acaba, muitas vezes, por ser mais revelador do que a própria pessoa. A casa onde se vive cristaliza gostos e manias e denuncia coisas que por vezes se pretende, e se consegue, esconder de terceiros. Ficou, desde logo, combinado que a nova casa da avó seria o ponto de encontro, o que entusiasmava ainda mais Simone. Veria a personagem no seu próprio set. Conheceria o seu mundo íntimo. Entraria no ‘avesso’ da sua vida. Poderia ler as etiquetas, ver as costuras, avaliar a confeção… Perfeito!
Sábado, ao meio-dia, Simone tocava à campainha da magnífica moradia da avó. De linhas modernas, o projeto, soube-o pelos seus pais, tinha a assinatura de um arquiteto que moldava a contemporaneidade da arquitetura no país. Não tinha ideia de que a avó fosse mulher de posses ou dada a sofisticações estéticas. Segundo lhe contaram, meio entredentes, parte do património tinha sido conquistado à conta de alguma inteligência financeira e boa gestão de meios, de que tinha dado provas após beneficiar do avultado seguro de vida que recebera após a morte do seu avô. A informação fez tocar alguns sinos na mente imaginativa da sugestionável Simone.
A avó tinha ficado rica após a patética morte ‘acidental’ do marido, preso sob os pneus de um carro que a avó não tinha travado convenientemente, na sua própria garagem. Era estúpido de mais para ser verdade, além de que tinha sido investigado por peritos judiciais e pela própria seguradora, e nem os primeiros nem a segunda são conhecidos por se deixarem facilmente ludibriar. Oficialmente, não tinha havido crime. Familiarmente, todos concordavam que tinha sido mais uma das tontices da avó, mulher de dramáticas distrações. Recordava-se bem de um outro episódio, em que Simonetta – sim, agora que a avó tinha um nome, era bom que o começasse a usar na sua mente, que o materializasse, pois as pessoas são muito mais do que os seus laços familiares –, tinha causado escândalo, ao sair, certa vez de casa, completamente nua, usando unicamente umas galochas. Simonetta nunca conseguiu cabal ou convincentemente explicar o sucedido. Teria dito, para se justificar, que tinha demorado tanto tempo a calçar-se que se esquecera de que ainda não estava vestida. Mas quem começa pelos sapatos? Há uma espécie de lógica no ritual: banho, roupa interior, roupa exterior e, no final os sapatos e algum agasalho, quando é caso disso. Todavia, como se tratava de Simonetta, tudo foi aceite como mais uma das suas idiossincrasias, apenas mais uma das suas loucuras e não se falou mais disso, senão nos serões familiares em noites de Natal, em que acabava por ser a rainha das conversas, já que as suas eram, de longe, as mais apetecíveis histórias. Episódios de risota que todos ansiavam por ouvir e partilhar, principalmente em petit comité.
Foi a própria Simonetta quem abriu a porta à neta e Simone não estava preparada para a imagem que lhe surgiu. A avó estava a milhas de distância da hippie de peito caído, desastrada, enlouquecida e desgrenhada que tinha construído na sua mente, ao longo de anos de suposições e esboços, retocados de cada vez que ouvia mais uma história. Tinha sido, na sua vida, um quadro em constante mutação e aperfeiçoamento, o que se mantinha real, já que teria de voltar a repintá-lo, praticamente na íntegra. A mulher que lhe abriu a porta tinha o olhar vivo, cristalino e brilhante, de um azul inimaginável. O cabelo, entre o louro e o ruivo, era farto e sedoso, apanhado num displicente, mas elegante rabo de cavalo, o que fez com que ambas sorrissem, pois também Simone se penteara da mesma maneira. O quadro geral era de uma elegância a toda a prova. O bom ar do muito atual guarda-roupa da avó, denunciava bom gosto e uma irrepreensível delicadeza, diria mesmo que era uma sofisticado blasé, e tudo isto se traduzia de igual forma nos seus modos, naturais e de uma suavidade que afastava afetações ou elaborações premeditadas. Era ainda uma mulher bela e atraente, não obstante os quase 70 anos de idade. Com tudo isto coabitava um espírito gaiato, inquisitivo e desempoeirado, pouco esperado numa ‘avozinha’. A velhice e todas as efabulações que criamos em seu redor, são, de facto, madrastas. Ainda imaginamos uma avó de coque e cabelo branco, vá-se lá saber porquê! Pois Simonetta nada tinha disso. Na verdade, Simone reviu-se naquela mulher e imaginou-se assim, tal e qual, se tivesse mais 45 anos ou, o mais correto, gostou da ideia de chegar à idade da avó, com aquele mesmo porte e perfil.
A única coisa que, de facto, se manifestou em modo avó, foi a curiosidade sobre a sua vida, os anos no estrangeiro, os estudos, os amores, aquilo de que gostava e odiava, o que esperava da vida… Um genuíno interesse, salpicado de gargalhadas, lágrimas e abraços espontâneos. Ou seja, nada do que Simone havia esperado, mais ainda de uma avó distante e ‘louca’. Para aquele dia, Simonetta tinha planeado um piquenique, um programa com que qualquer avó encantaria uma neta pequenina, mas que achou que resultaria de igual modo com adultos. A cesta estava preparada, e sobressaída da bancada da ampla e sofisticada cozinha da enorme casa, comandada por um sem fim de cérebros tecnológicos e domóticos acionados, imagine-se, por voz. Simone ria. Aquela mulher, a sua avozinha ensandecida, não parava de a surpreender. Simonetta não permitiu que a neta carregasse a cesta, entregando-lhe apenas a manta que lhes serviria de toalha. A cesta, apesar de grande e visivelmente pesada, só garrafas de sangria contou Simone duas, ergueu-a Simonetta como se fosse apenas um bloco de notas. Percebeu que a avó era mulher de yoga.
De ginásio, corrigiu-a Simonetta, para maior espanto ainda da neta. Gustavo, o marido, que também as acompanharia, pois queria que aquele fosse um encontro familiar, encarregar-se-ia de levar a cesta para o carro. O próprio Gustavo era um charmoso avô, também ele um desportista, cheio de bíceps e outros músculos, cujo nome desconhecia e que, Simone garantiria, ela não tinha. Ao pescoço, Gustavo levava uns impressionantes binóculos, amigos inseparáveis de qualquer ornitólogo, explicou quando percebeu os olhos de Simone sobre o enorme objeto. O almoço não podia ter sido mais simpático e delicioso. Simonetta, espantem-se, era uma exímia e dotada cozinheira. Dos doces aos salgados e à sangria de champanhe e frutos do bosque, tudo estava maravilhoso e apresentado de forma sublime e requintada. Simone estava maravilhada com o serviço e a companhia.
Curiosamente, quem passou o tempo todo com os binóculos apontados a Este e Oeste, a Norte e a Sul, foi a avó, que ria despropositadamente de quando em vez. Simone começava a perceber porque é que a apelidavam de louca. Havia nela uma espécie de arritmia, de despropósito temporal, de desacerto ligeiro. A imagem que melhor descrevia aquilo que sentia era o delay de algumas dobragens. Isso mesmo. Havia um desacerto desconcertante, qualquer coisa de estapafúrdio, que assomava de vez em quando e tornava tudo um pouco estranho, mas de uma forma divertida, nunca assustadora. Simonetta era uma mulher ímpar, entre uma elegante delicadeza e uma desconcertante e inusitada… demência. Sim, algo que não se encontra nos ditos sãos de espírito. Mas era algo lúdico, quase parecia cultivado, propositado para surpreender ou apenas porque nada se preocupava com o que dela diziam ou o que dela achavam os olhares alheios. No geral, Simone estava fã da avó. Achava-a verdadeiramente única e divertida. Sem filtros ou preconceitos.
O dia, de repente, parecia estar a terminar. Em parte, era verdade, o tempo tinha passado célere, mas a escuridão devia-se, em igual medida, a uma mancha de fumo negra que se erguia, espessa, para os lados da casa de Simonetta e Gustavo. Reparam, só então, que o barulho de sirenes de bombeiros começava a inundar o ar. Simone e Gustavo levantam-se, num ápice, tentando perceber a origem do fogo e dispostos a partirem de imediato. Simonetta diz, então:
– Este é o dia mais importante da minha vida. Estou de novo com a minha única neta, o que é que importa uma casa a arder? Não vamos deixar que isso nos afete, certo? Gustavo, serve-nos mais sangria, serves?
Gustavo balbuciou:
– Mas, Simonetta, temos obrigação de tentar ajudar, pode haver gente a precisar de ajuda, vidas em perigo…
– Querido, a casa está vazia, ninguém corre perigo.
Incrédulos e estupefactos, Simone e Gustavo questionaram-na com o olhar, sem conseguirem articular as questões óbvias perante tal ensandecimento. Como poderia ela saber ou sequer adivinhar tudo aquilo?
– É a nossa casa que está a arder, há já algum tempo. Vi-o há uma hora, ou perto disso, já pouco ou nada se poderá fazer!
Simone entendeu, mais profundamente, a que loucura se referiam todos quando falavam da avó, e a enorme falta de lógica e racionalidade das suas atitudes. Não só isso, como no seu cérebro, vinda não sabe muito bem de onde, bailava a palavra seguro em torno da imagem de Simonetta, a tarde toda de binóculos em riste. Tudo isso se esfumou, ou talvez não, quando Simonetta solta:
– Mas não vamos estragar o nosso piquenique por causa disso, certo? Gustavo, a sangria, por favor!
Amei! Há anos tento escrever, descrever minhas memórias de forma fluida e envolvente assim e não sou capaz. Talvez não tenha coincidido o tempo certo… continuo aguardando, um dia escrevo.
Fiquei fã da sua escrita! Me será inspiração… obrigada!
Muito obrigada, Elisa Maria Sobral. Não imagina como as suas palavras me deixam feliz.
Não desista. Não desista nunca. Escreva. Escreva sempre. Mesmo quando não gosta ou mesmo quando as palavras fogem para outros caminhos que não aqueles que pretendia. A escrita é caprichosa. Tal como um músculo, também a escrita precisa de se exercitar.
Um dia, vai sair-lhe tudo de supetão e verá no papel o espelho do que lhe vai lá dentro.
Obg por estar por aí