Não era a primeira a ser traída. Meus Deus! Na história da humanidade, na listagem de todas as traições já cometidas, qual seria o seu número? A contabilidade já devia ir em infinito mais qualquer coisa. Pior do que a traição em si – um ato que pode apenas indignar a vítima, que assume um ponto de vista, uma afetação e uma dor que ninguém mais se atreve a experimentar, não por falta ou excesso de empatia, mas por, eventualmente, nem sequer a considerar como tal –, pior do que isso é sentir-se traída. É saber bem lá dentro que ele não podia ter feito aquilo. Não daquela maneira… traiçoeira, pois claro. Poderia tão simplesmente ter-lhe dito. Senão de chofre – o que também podia ser recriminável e doloroso –, pelo menos através de sinais. De pequenos ‘toques’. Uma alfinetada aqui, outra acolá. Um silêncio programado. Uma resposta por dar. Uma má justificação. Um desentendimento. Os inexplicáveis atrasos. O natural afastamento. Ela teria começado a perceber e, quem sabe, acabaria por compreender e aceitar que tinha chegado o fim, senão para os dois, pelo menos para ele. E quando o fim acontece para um dos dois únicos envolvidos, então, é claro que o fim chegou para ambos.

Eram tão unidos desde sempre. Desde a adolescência. Um amor tão grande e desmesurado. Uma proximidade impoluta. Sem frestas. Sem mácula. Juntos desde sempre. Para sempre. Contra tudo e todos se preciso fosse e tantas vezes foi preciso. Um número que também se perde na calculadora e se agiganta no peito nestas horas de contabilidade afetiva. Um amor inquebrável. Com coração de borracha e revestimento de cauchu e treino para qualquer eventualidade. Um amor pleno. Vivido, primeiro, a dois, e, agora, a quatro. Quase foram cinco, mas… Não vale a pena falar disso. Um amor único. Maravilhoso. Imaculado. Um núcleo de força. De vida e resiliência. Celebrado a dois e a quatro, quase cinco. Chorado a dois – que a dor e as necessidades não se partilham com as crianças. A elas compete-lhes apenas a felicidade, ainda que na pobreza, mas sempre a felicidade. Tantas lágrimas e tantas aflições. O dinheiro que não chegava e que quando chegava se encaminhava para as tintas e os pincéis dele. As dívidas que se acumulavam, em nome da arte dele. Uma promessa gritante. Um génio a toda a prova. Um futuro que só lhe augurava sucesso e fama mundiais. Assim gritavam agentes e galeristas, de quando em vez. Assim bradavam os críticos. Clientes, todavia, não os havia. Raramente. Pagavam mal, já se vê, que quando se sente o cheiro da necessidade logo os preços tendem a baixar. Uma promessa maior que não se cumpria. Mas cumpriam-se as contas ao fim do mês, com prejuízo para tudo o resto, incluindo, por vezes, para a despensa. Não muitas, mas as suficientes para descarnarem esperanças, atormentarem a frágil bonança e puírem todo um guarda roupa que nunca se renovava. Uma estética boémia, própria de artistas, que mais não era do que falta de dinheiro, a bem da verdade. Tão unidos na partilha do que faltava. Tão esbanjadores no amor e na criatividade. Baloiços dentro de casa, para as crianças, apenas porque no inverno os agasalhos inexistentes não permitiam aventuras no jardim. As botas de boca aberta e as histórias que transformavam a pobreza em diversão. Ela deixou de esculpir o bronze ou qualquer outro material que tivesse de ser comprado. Passou para o ferro que logo se tornou velho. Criava peças que já não ambicionavam praças ou museus, apenas artigos decorativos que vendia em feiras ou via Facebook, para que houvesse uma refeição por dia que valesse esse nome. Um gelado para os miúdos numa esplanada. Uma atividade extracurricular na escola, sempre que possível. A maior promessa era ele. Nele investiram. Mais do que tinham. Mas tinham muito, porque não lhes faltava a cola, o amor, o imã que tudo aproxima.

By Robert Doisneau

O dia que tanto aguardavam e que já duvidavam se viria – o dia que mereceu festa e vinho tinto –, chegou. O dia chegou um dia. Um inesperado convite – esquecido numa caixa de correio que já não se consultava diariamente, porque a tristeza, a dúvida e as dívidas, quando se instalam minam as rotinas e esmorecem os sonhos – exigia a presença dele numa mostra de arte internacional. Sem paragens de permeio, o convite lançava-o de imediato para um dos maiores palcos. Tudo pago. Uma camisa preta nova. Uns ténis que ela recuperou com artes de mãe habituada a tecer sonhos pequeninos. Era verão. Que bom! Não precisaria de casaco. Ela enfiou-lhe écharpes na mala, para que pudesse parecer que havia muita roupa na mala vazia e que… Enfim! A família não o acompanharia. Ele precisava de toda a concentração possível.  Tinha de estar no seu melhor. Dar o seu melhor. Mostrar a sua arte. A sua luz. O seu brilho. Livre.

– “Impressiona-os como me impressionas a mim”, disse-lhe ela, no aeroporto, antes do último abraço apertadíssimo. A felicidade. A expectativa. A ansiedade. O nervosismo. Estaria a levar as melhores obras? O que levariam os outros? Destacar-se-ia? Teria sucesso? Lutariam para ao representar? Seria convidado para expor? Regressaria humilhado? Um pouco mais pequeno? Mais magro? Mais triste? Mais pobre? Bom, isso seria difícil, mas não impossível.

By Mike Kelley

Isso ela já não pode constatar. Ele não regressou. O sucesso foi retumbante. Tinham descoberto the next big thing, como uma publicação artística lhe chamou. O novo Basquiat. O novo qualquer coisa. O novo, simplesmente. O diferente. O vanguardista. O inesperado. O alternativo. Ele tinha de ficar. De expor. De seguir para Viena e para Florença e para Paris e para Nova Iorque e para Tóquio e até para não sei onde. Amavam-se agora pelo telefone. Choravam de alegria. O dinheiro começou a entrar abruptamente e em catadupa na conta, que finalmente tirava a barriga de misérias e substituía o sinal menos pelo sinal mais. Tão mais. Nunca tinham visto tanto mais na sua conta. Ele regressou logo que conseguiu. Festejaram pouco. Ele tinha de pintar. Tinha encomendas e exposições e uma agenda que exigia profissionais. O velho armazém onde viviam transformou-se no mais fotografado atelier do momento. Obras que a encantaram. Decorou-o com as suas peças gigantes. Convidou graffiters e arquitetos. Ela estava feliz. Achou que sim, mas agigantavam-se as saudades. Mesmo quando estava, ele não estava. Até que… Ele deixou de estar. Tinha de se instalar noutras paisagens. Precisava de novo ar. Renovar a inspiração. Fazer um reboot. Estar mais próximo de quem importava. Iria, primeiro sozinho. Um ano mais tarde, a família juntar-se-lhe-ia. Quando estivesse estabelecido. Quando o ano escolar das crianças não tivesse de ser interrompido. Quando tudo fosse mais sólido, que aquilo podia ser apenas uma bolha que se podia romper a qualquer instante e não valia a pena arrastá-los mundo fora em vão. “Será uma experiência para todos. Novas gentes. Novas culturas. Novas línguas… Talvez repetir um ano escolar seja demasiado pouco em comparação à grande aventura que todos viveremos…” Ele não concordou em pleno. O que ele mais desejava era que voltassem a ser uma família física, presencial, sem skypes e videochamadas, que isso não é coisa de família e sim de empresas, mas, por enquanto… As crianças necessitam de chão firme, solidez. Ao que ela contrapunha que também precisam de asas para se imaginarem de forma diferente. Acabaram por concordar. Um ano passaria rápido. Um piscar de olhos.

Assim lhe pareceu… a ele. Ela apenas viu uma montanha que nunca mais se galgava, por muito que andassem. Vou visitar-te um destes fins de semana, prometiam um ao outro, mas nem isso acontecia, por esta ou outra razão. Ela sentia-se mal. Agora que a grande aventura das suas vidas tinha começado, que ele estrava a chegar ao lugar que lhe competia e com o qual tanto tinha sonhado, que ela poderia voltar à sua rota artística, que o guarda-roupa se alongava com novidades, que a despensa ocupava uma enorme divisão e o frigorífico se internacionalizava na versão americana… Logo agora, ela tentava sugar-lhe oxigénio, impor a sua presença. Mais do que nunca ele precisava agora de liberdade para criar. Sem pré-adolescentes com crises constantes e birras e inseguranças. Sem choros e dramas. Não só isso como ainda precisava de paciência para aturar compradores, colecionadores, outros artistas, galeristas, curadores, oportunistas, gerir egos e a própria equipa que já o cercava. Ele era agora uma sumidade. Capa de revistas da especialidade. Um fenómeno à escala global. Ela sorriu. Largou as rédeas, mas manteve os braços abertos e os olhos fechados, enquanto aguardava o próximo abraço apertado num qualquer aeroporto do mundo. Um beijo demorado. Uma nova casa. Todos juntos de novo e tudo se selaria naturalmente.

Ele apareceu de surpresa. Que felicidade. Ele precisava muito de conversar com ela. Que alegria. Ele queria momentos a sós com ela. Que mágico. Um hotel cheio de estrelas. Que romântico. Ele queria o divórcio.

Não era apenas a nova vida. Todo aquele ritmo alucinante. Não era o ego de quem se tornou num nanossegundo na personalidade mundial mais requisitada do meio artístico. Era o artista plástico do momento. O novo grandioso pintor. Estava ao nível dos grandes e ainda seria maior, como todos anunciavam. Já mal tinha tempo. Só pintava. “Não importunaremos”, balbuciou ela. “As crianças precisam de ti. Precisam de nós. Mais do que nunca. São adolescentes confusos. Cheios dos problemas normais da idade. Sozinha não tomarei as melhores decisões nem encontratei as soluções mais acertadas. Preciso de partilhar dúvidas contigo. Precisamos de os criar…” Ele explicou-se, então, melhor. Tinha feito questão de falar pessoalmente com ela. De a olhar nos olhos. Não era um cobarde. Era um homem. Ele tinha-se apaixonado. Amava outra mulher. Tinha encontrado aquilo que, num momento de enorme insensibilidade ou filha da putice, como queiram, chamou de amor da sua vida. Agora, sim, sabia o que era o amor. Ela deixou finalmente os braços, que mantinha abertos para o tal a braço apertado, caírem ao longo do seu corpo magro, que os corpos abandonados definham, como as casas vazias. Abriu, por fim, os olhos, que, fechados, aguardavam ainda o tal beijo prolongado que já não viria. Não houve sequer aquele último sexo que os filmes anunciam como frequente nestas situações. Um derradeiro adeus carnal. Ele não tinha dúvidas e as dela eram tantas e tão dolorosas que o peito abanava a cada batida cardíaca. Como já não conseguia ouvir, ou apenas ele estava calado, ela não sabe, começou a dar atenção ao seu peito. Era visível. O seu coração não apenas era audível. O seu coração abanava carne, ossos e pele, embaulando o peito a cada batimento. Estaria a morrer? Claro que não. Aquilo era dor. Era sofrimento. Era traição. Sim. Era traição. Ele tinha outra. Não a tinha deste ontem. Já a devia ter desde há muito. Talvez já a tivesse mesmo quando ainda estavam juntos, apenas ainda não a tinha conhecido. No peito dela, um galope descontrolado. Na sua mente, um amor que morria.

A outra era mais nova. Tão mais nova que podia, sem escândalos, namorar com o filho mais velho de ambos, quase a completar 18 anos. Ela teria apenas mais seis do que o miúdo. A outra era manequim. A outra era linda. A outra era daquele tipo de mulher que se percebe que é dispendiosa. Do tipo que faz tratamentos à pele, exfoliações pelo corpo todo, retiros em spas, fins de semana tropicais, desintoxicações raras. Do tipo que faz as unhas dos pés e das mãos e a vida negra a todas as mulheres normais. O amor da vida dele era, portanto, uma barbie. Alguém que jamais teria ouvido falar no prato que mais vezes ela serviu aos filhos: arroz com atum, ou massa com atum, ou pão com atum ou, no verão, tomate com atum. Não lhes faltava Omega 3, graças a Deus.

Ele apenas se tinha acomodado a ela e à sua família – sim, sua, que filhos abandonados, trocados por uma barbie de 28 anos, são apenas filhos da mãe e com muito orgulho. Ele apenas estava com ela naquele intervalo de tempo que antecede a fama, o sucesso, a vida desafogada e o tal grande amor. Ela era apenas a estação em que ele esperava o comboio de alta velocidade que o levasse dali para fora. Ele aguardava apenas que o grande amor da sua vida chegasse, para com ele partir. Pois é curioso que esse grande e nobre amor tivesse chegado apenas com o primeiro cheque chorudo. Que essa mulher-maravilha, que amava já mais do que tudo aquilo que deveria ter significado para ele, surgisse para embelezar o sucesso dele. Bom, bem vistas as coisas, não poderia ter chegado muito antes, pois que tinha praticamente acabado de nascer.

Ela queria manter a cabeça fria. Não suportava ver-se no papel da pobre coitadinha abandonada pelo marido quando este atinge finalmente o sucesso. A pobre descartável. Alguém que já não estava à altura dele e da vida dele e de tudo o que agora esperavam dele. Ela não suportava o ódio, a inveja, o ciúme ou lá o que era que sentia a agigantar-se no peito. Tinha de acabar com aquilo. Seguir em frente. Mudar-se. Reinventar-se. Reciclar-se. Tinha de fazer consigo exatamente aquilo que fazia com as suas peças de arte. De um amontoado de coisas velhas e abandonadas por outros, criar um novo e incrível ser. Uma nova coisa. Algo inimaginável. Talvez o conseguisse. Estava até certa de que o conseguiria. Mas uma pesada sombra cor de chumbo toldava todas as frestas de claridade que teimava em acender por dentro. Ele não a tinha abandonado. Os adultos não se abandonam. Ele tinha deixado de a amar, isto, partindo do princípio otimista de que alguma vez a amara. Isso acontece. Pronto. Move on. Mas ele tinha abandonado os filhos. Sim. Tinha-os abandonado. Era abandono. Não se recupera o quotidiano. As zangas. Os castigos. As gargalhadas. A presença. Viver com, implica tempo e presença. Ele jamais voltaria a viver na mesma casa com os filhos. Ele quase nunca mais veria os filhos. Viviam em países diferentes. Continentes diferentes, com uns seis meridianos de permeio.  Até os telefonemas eram raros. Podia comprá-los, mais tarde. Claro. Isso podia. Ele era agora riquíssimo. Mais importante do que isso. Era influente a uma escala planetária e isso é ainda mais valioso do que o próprio dinheiro. Porque isso implica que nem tens de gastar dinheiro. São os outros que o gastam para estar contigo, ou para cair nas tuas graças, ou lá o que se faz para bajular os génios, as celebridades. Isso doía-lhe até à insensibilidade.

Ele anunciou ao mundo um filho. O primeiro para quem não sabia da existência dos outros. Dos mais velhos. Daqueles dois que por pouco não foram três. Histórias e segredos que já não são de família, de ambos, apenas dela e de mais ninguém. Um filho que acabaria por roubar definitivamente o pai aos seus filhos. Um filho que ele veria todos os dias até ao fim dos seus dias e que ele veria crescer como não viu os seus, os dela. Ela podia reinventar-se e fá-lo-ia o quanto antes, que a vida não se estica para quem sofre. Todos temos de aproveitar o melhor que se pode. Mas quem reinventaria a felicidade no peito dos filhos abandonados? Teria ele pensado nisso? Teria ele, algum dia, pensado nos filhos? Na família que saiu dele? O brilho da nova vida, o rosa daquela barbie, a genuflexão que a sua presença agora exigia eram o bastante para esquecer os filhos? Para os deixar de amar? Amava-os de verdade? Algum dia os amara verdadeiramente? Que egoísmo estéril coloca o Eu acima dos filhos pequenos? Num mar tempestuoso, qual o pai que larga a mão dos filhos para se salvar? Isso não se perdoa. Esperava que os filhos jamais sentissem e pensassem tudo aquilo que se projetava na sua mente. Que jamais encenassem tamanha tragédia das suas vidas. Que os presentes obscenamente caros, as férias exclusivas e o dinheiro se conseguissem disfarçar de algum tipo de afeto. Queria que os filhos tivessem o pai que ainda fosse possível ter. Mas isso doía muito. Isso não lho perdoaria jamais. Ele não podia ter abandonado os filhos dela. Sentia-lhe tanto ódio. Tanto desprezo. Ele era agora um completo estranho. Um homenzinho abjeto.

Colocava, agora, a si própria uma questão. Um cenário retórico, de impossível ocorrência. Uma hipótese que a esventrava de vez, por pôr a descoberto uma outra injustiça. E se tivesse sido ela? Ela, a ser a grande artista, a virar costas a tudo e a ir desbravar o seu talento lá fora, a seguir o seu caminho e a impor o seu talento, a apaixonar-se por um homem mais novo, tão mais novo que poderia ser o namorado da sua filha, que a vida não nos dá tempo para perder oportunidades de viver o amor e partir em busca da felicidade. Os filhos seguiriam, um dia, o seu próprio caminho. Ela teria de percorrer o seu. Sem culpas. Sem grilhões. E se tivesse sido ela? O mundo compreenderia? Idolatraria a arte de uma mulher capaz de tudo isso? Não seria apenas uma grande cabra? Uma psicótica com o ego a viver no seu próprio umbigo? Sim. E se tivesse sido ela? Alguém responde?

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