Tinham mesmo, mesmo, de se antecipar e ser os primeiríssimos a experimentar o novo restaurante do Príncipe Real, na capital do reino do trendsetting mundial da atualidade. Um chef megaestrelado, uma decoração que já viajava pelos mais conceituados sites de arquitetura e design do planeta, um edifício secular, um restauro de milhares de milhão, uma conceção de interiores completamente inovadora… Tudo em muito grande e majestoso. Não podiam aguardar meia hora que fosse, pois arriscar-se-iam a que tudo aquilo não tardasse a aparecer escarrapachado nas Time Out da vida ou, pior cenário possível, numa das muitas rúbricas televisivas sobre o lifestyle e outras cenas da moda. A partir daí, já não poderiam ir. Pelo menos, não o poderiam fazer com o mesmo encanto e fascínio. Já não podiam anunciar que tinham sido os primeiros do seu grupo de amigos a estar lá, em primeira mão, praticamente os descobridores daquele tesouro. De que lhes servia terem batedores de rua, olheiros gastronómicos, a quem pagava pequenas fortunas, para receber dicas e informação antes mesmo de esta ser informação?

Era um investimento de que muito se orgulhavam, e que continuava a render preciosa informação, fontes que jamais revelariam, ainda que a isso os forçassem sob pena de prisão, tendo em conta os inúmeros proveitos. Fora ele e a mulher os primeiros a descobrirem as casas privadas de delicada gastronomia de outras paragens, confecionada com os encantos desse princípio que se começava a perder: o caseiro. Ainda não havia cevicherias e já eles frequentavam um pequeno restaurante peruano, numa escura e recôndita rua da cidade, onde enchiam a barriga e o orgulho pioneiro de peixe cru marinado em secretismo. Os primeiros. O segredo e o propósito era serem sempre os primeiros. Isso não saía barato, mas serem olhados com admiração pelos demais, serem procurados para dar indicações sobre o que de melhor se comia na cidade, era um privilégio de que jamais abdicariam. Não podiam, jamais, deixar de ser aqueles a quem todos os outros recorriam para saber sobre um novo e muito fashion hotel, onde dormir de terça a domingo, quando se sofre de cólica renal, ou onde encontrar o melhor brunch da cidade às quintas-feiras, por exemplo, quando está de chuva e não se tem gabardina vestida. Sim, porque há dias, indumentárias, condições atmosféricas e estados de espírito que definem locais específicos. Não é, assim, à maluca. Por isso, tinham tabelas, em documentos Excel, que davam um trabalhão a elaborar – falamos de uma tarefa que percorria anos de apurada investigação acerca do saber-viver, e em bem –, onde anotavam tudo com obsessiva minúcia e dotes de artista do saber estar em contemporaneidade.

E isso, meus caros, tem um alto valor comercial. Estavam já na fase de transição, de meros conselheiros de amigos, para experts validados pela comunidade dos HiperAtuais, o que passaria a granjear-lhes avultadas maquias na nobre, requisitada e deveras exclusiva arte da consultoria em lifestyle. A meio passo de ingressarem nesse universo dos mais sabedores sobre o que fazer, como e onde fazê-lo, não podiam deitar tudo a perder.

Foi imbuídos desse espírito, que se pode traduzir no ‘formigueiro de pioneiro’, conceito que os próprios grafaram nos dicionários urbanos, que partiram à descoberta de mais um local de culto. Sim, sempre que asseguravam que eram os primeiros, tentavam elevar a fasquia do local, a fim de puxar para cima os créditos pessoais, somar divisas às suas patentes. De que servia serem aos primeiros, para depois, de forma crítica e inconsequente, arrasarem com a reputação do sítio? Claro que, por vezes, não havia como não dizer mal. Certa vez, por exemplo, percebendo que eram portugueses, brindaram-nos com uma carta apenas em português. Quer dizer!… Heloooo! Eles gostavam de testar a versão inglesa e francesa dos menus, ver se a tradução era à letra, via um qualquer Google Translator, ou se tinha sido pensada na própria língua a que se dedicava. Nas suas folhas de cálculo, depois de pressionada a tecla Caps Lock, e eleita a cor vermelho, escreveram com inequívoco deleite: PÉSSIMO. NÃO RECOMENDAR. NÃO VOLTAR. Outra vez, imagine-se a ousadia, um restaurante não tinha chá de Ceilão. Pior, ainda lhes tentaram dar aulas de História, referindo coisas avulso como quando disseram que Ceilão já não existia, que agora se chamava Sri Lanka e outrora fora a Taprobana… Nem queriam acreditar. Não estavam interessados em conhecimento, apenas num chá de Ceilão, obrigatório até numa boa tasquinha de esquina. Passavam muito, para não dizer horrores, nessas suas deambulações.

Sempre em modo next big thing, lá se aperaltaram, com os seus mais fascinantes looks neo-hipster-rockabilly-50’s-urban-hippie-chic e lá foram, no seu quase privado uber, tresandando a colónias bio e a sabão artesanal. Desculpando-se com uma terrível constipação, o motorista, alérgico a todo e qualquer tipo de produto eco-friendly, patologia já inscrita nos manuais de patologias médicas, lá conseguiu justificar o uso de uma máscara cirúrgica. Estavam excitadíssimos, além de que adoravam a zona do Príncipe Real, não apenas era um principado, como ainda era real. O que mais se podia pedir de uma zona? Quando pisaram a calçada frente ao restaurante já se estavam a sentir realeza. Antes de entrarem, ele enrola um cigarro de folhas de tabaco bio, provenientes de plantações sustentáveis, atestadas ainda por um selo de comércio justo. Ser contemporâneo exigia um elaborado manual de sobrevivência em consciência e alguma verba extra, para assegurar a compra de produtos verdes e amigos do ambiente, todos eles caríssimos, por conta da exclusividade, e porque o que é bio sai caro. Os polutos são menos exclusivos, além de que ensombram qualquer tentativa de ser verdadeiramente cool e progressista.

À porta, olharam com algum desagrado para alguns dos comensais que já ocupavam a esplanada. Não havia ali muita contemporaneidade, nem visuais a destacar. Aliás, no que toca a conjuntinhos, era tudo bastante maçador. Lá tiraram a selfie do costume, para fins de arquivo, e entraram. Tinham tentado reservar mesa, mas não o permitiam. Gostaram disso, muito embora, se enervassem sempre um pouco quando iam às cegas. Ao telefone, um empregado tinha dito:

– Aqui, aviamos quem chega primeiro.

Ela delirou com o desempoeiramento de tudo aquilo. Era “um daqueles sítios que apelam à genuinidade da linguagem, que tuteiam a clientela, num gesto que é já de pertença, de acolhimento”, escreveu no moleskine que destinava a pequenas resenhas ou breves recensões, que deixavam no papel toda e qualquer impressão que recolhessem dos locais, antes mesmo de lá chegarem. Dava voz a sentimentos e disposições. Tudo era informação, para elaborar uma atmosfera. “Um ambiente não são apenas paredes e coisas. É algo mais”, orgulhavam-se de defender. Os empregados, cada um de sua nação, sem farda que os distinguisse, davam colorido a estas primeiras notas. À entrada, num quadro de ardósia, podia ler-se: Aberto das 10h às 11h. Primeiro, horrorizaram-se de felicidade. Aquilo é que era exclusividade. Aquilo é que era marketing. Abertos apenas uma hora por dia. Imaginavam de antemão, as futuras filas para entrar. Ainda bem que tinham decidido ir antes do restaurante se tornar conhecido. De seguida, horrorizaram-se de angústia. Tinham apenas meia-hora para jantar. Depois, inquietaram-se. Se apenas abriam das 10h às 11h, como já estava tanta gente a jantar?

– Das 10 da manhã, às 11 da noite.

O esclarecimento foi dado por um dos empregados – todo decorado com uma tattoos extraordinárias – num tom entre o paternalista e o enfado. Não gostaram do modo, mas o homem disse logo de seguida.

– Então, o dia não tem duas 10 e duas 11 horas?

Aquele olhar fresco sobre a temporalidade das coisas, aquela segunda oportunidade a cada hora do dia era de uma tão ‘enormérrima’ inovação que passaram, de imediato, ao inicial estado de deleite. O espaço já lhes estava a permitir ver as coisas com outros olhos. Era toda uma nova experiência, e millennials, a geração Y, e centennials, ou geração Z, viviam para isso: para viver o momento, vivenciar novas experiências e não revisitar enfadonhos conceitos de gerações moribundas. Estavam a adorar tudo aquilo. Foram ‘aviados’ – como por ali se dizia, num rasgo de recuperação de antigos dialetos de rua, de seculares e esquecidos étimos – por um tipo incrível. Toda a sua estética era inovadora. Absolutamente desconcertante e inesperada. Quase mongol. Melhor, uma reinvenção dos trajes dos sem-abrigo, cujo corpo é o próprio roupeiro, pelo que se vestem por camadas. Ele vestia uma t-shirt, uma camisola de malha, por cima desta duas camisas, uma camisa fechada e outra completamente desabotoada e, sobre esta, um casaco de malha giríssimo, e ainda um anorak. Por baixo, sob umas calças de fato de treino, espreitavam uns jeans mais compridos. E isto era o que estava visível, podendo haver mais peças ocultas sob tudo aquilo. Tomaram nota daquele visual. Já se imaginavam a surpreender tudo e todos, quando, no dia seguinte, o mais tardar, o replicassem, mas em bom, claro, com peças mais giras e atuais, assim entre a Fashion Clinic e a feira de Carcavelos, com uma absoluta vocação blasé. Só por isso já estava a valer a pena.

Um breve elogio sobre o seu visual e o empregado, com um incrível sentido de humor, quase se desculpava, dizendo que não tinha tido tempo de se trocar. Fazia recolha de lixo durante a noite. Fãs da ‘desplastificação’, ficaram encantados com o hobby noturno daquele espécime. Também eles colaboravam com uma fundação ambientalista que limpava praias e reciclava embalagens de plásticos, as quais, transformavam, depois, em verdadeiras obras de arte, algumas delas espalhadas por museus do país. Tão cool! O empregado olhava-os estarrecido, ou desinteressado. Foi então que sorriu. Nunca tinham visto aquilo antes. Depois do ouro e dos diamantes, eis o carvão vegetal. O tipo tinha cerca de três dentes neste material, com o qual, muitos dos seus conhecidos, fabricavam agora pastas de dentes naturais. Um mimo. De tão perfeito, quase pareciam buracos negros na vastidão do universo. Tinham de apurar que clínicas dentárias já faziam aquele trabalho, mas suspeitavam de que seria coisa estrangeira. Tomaram notas.

De atmosfera sombria e húmida, o local tinha uma patine difícil de descrever. Havia camadas e camadas de vivências sobre cada uma das peças de design. Os bancos, típicos das tabernas chiques que frequentavam, tinham a peculiaridade de ter um furo no centro do tampo. Genial. Podiam, assim, ser facilmente transportados. Bastava que se enfiasse um dedo por aquele orifício. Tão simples e prático. Tiraram fotos. O bom design, de facto, é inspirador. A um canto, um grupo jogava cartas, Bisca Lambida, explicaram-lhes. Não era tarot, percebia-se. Deviam ser intelectuais ou boémios artistas. Que maravilha de sítio! Que relíquia! Mal podiam esperar para ver a ementa. Pois ela não tardou e era enorme. Tinha diferentes menus. Colocaram os seus óculos de massa colorida, para conseguirem ler aquela que já adivinhavam vir a ser a sua próxima bíblia. Pois a carta dividia-se em variadíssimas categorias, a fim de satisfazer qualquer tipo de exigência, todas elas com nomes que já abriam o apetite dos criativos.

– Meat Lovers

– Veggie Fans

– Veganlosophy

– Mini Veganbonds

– Brunch Maniacs

Pediram um prato de cada um dos menus, para partilharem e cabalmente avaliarem a qualidade da cozinha.

Começaram com um prato ‘verde’, do Veggie Fans, que dava pelo nome de Wild Green Stuff. Era, de facto, um sabor selvagem, quase terroso, algo que jamais tinha tocado os seus palatos citadinos. De seguida, a sopa Wannabe Spinach But All I Got Was This Greenish Color Thing. Só o nome do prato já abria, de par em par, as portas da boa disposição e da mais recente modernidade, já para não avançar que punha um dedo acusatório e cáustico na egocentricidade narcísica do momento, em que parecer valia mais do que ser. Tomaram mais notas. Tiraram mais fotos. Aquilo não era apenas um restaurante, era uma recensão crítica da nova e vazia filosofia da sociedade urbano-depressiva.  Um tratado. Uma perdição. Passaram para a carta Meat Lovers e um nome teve unanimidade instantânea: Portuguese Do It Better Even With Their Feet, nome ao lado do qual figurava a cabeça recortada de Cristiano Ronaldo. Um pormenor – ou antes, um pormaior –, bem ao estilo kitsch a que não resistiram. Fizeram logo ali uma insta story. Estavam apenas desolados por acharem que talvez não fosse possível, àquela hora, experimentar uma das iguarias do brunch. O tipo fantástico que os servia, disse-lhes que seria um prazer abrir uma exceção. Claro que podiam provar pratos do brunch desse dia e acrescentou algo mais que lhes pareceu ter a ver com a política de reciclagem, reutilização e reaproveitamento do estabelecimento. Palavras começadas por ‘Re’ recebiam toda a sua devoção e carinho, e não se ficavam pelos 5 Rs – reciclar, recusar, reduzir, reutilizar e repensar –, que visam minimizar a pegada ecológica e reduzir o desperdício, eles englobavam outras ‘re’líquias nesse seu ‘re’alfabeto. Foi assim que, ao ouvirem o empregado proferir a palavra mágica rebrunch, solicitaram de imediato o menu To Bean Or Not To Bean, onde o feijão vermelho era rei. Exultavam de felicidade. Ainda por cima, eram os primeiros a descobrir aquela pérola rara. Um diamante em bruto, atreviam-se mesmo a qualificar.

Já que tinham caído nas graças do empregado, avançariam ainda para um prato infantil, da carta Mini Veganbonds. Yellow Dolly foi a sua opção. Os pratos não tinham apenas nomes sugestivos e plenos de humor, eram confecionados com paixão e os sabores, entre o exótico e o tradicional, eram absolutamente divinais. Algo nunca provado antes. Quiseram conhecer o chef. Pois ele surgiu. Não o esperavam tão suado, mas nada que não ultrapassassem. Na testa, tatuadas, cinco singelas estrelas, seguramente uma forma de não esquecer as distinções Michelin, que, segundo diziam, tinha recebido em anos consecutivos, mas não tinham conseguido apurar isso junto do Sr. Google. Estavam cativos de tão genuína simplicidade e bom gosto. E os preços eram incrivelmente acessíveis. Baratucho, até, comentaram entre si. Nada ostensivos, nada armados ao pingarelho, aquilo era um sítio de gente boa e isso transbordava em tudo aquilo que faziam e na boa atmosfera.

Na cozinha, o chef Melgas, que desenrascava uns petiscos à maneira, desde os tempos do primeiro estabelecimento, nas Galinheiras de cima, pergunta ao Sem Dentes, enquanto acende um cigarro:

– O que é que aquela gente esteve para ali a dizer? Não percebi patavina. A gaja veste mal que dói e o coisinho é gayola, não achas?

– São estranhos, sim. Muito estranhos, mas, olha, vão pagar-te pelo jantar mais do que aquilo que deves à Micas, pelas cinco tatuagens que fizeste quando saíste da choldra.

– Ai, sim! Isso é bom, se bem que ando a pagar-lhe em suaves prestações sexuais, mas ela começou agora a falar em juros de mora e não me larga com a conversa da dívida e cumprimentos e mais prazos. Ahahaha. Só pode ser amor. Bem vistas as coisas, a Micas é bem mais bonita do que aqueles dois juntos. Como é que os levaste a comerem tanto? Comeram por quinze, já estou cansado de cozinhar.

– Dei-lhes o menu para totós. Nunca falha. Conheço de ginjeira estes modernos, armados em entendidos. Nem percebem o que estão a comer. Se lhes disseres que comeram salada de nabiças, sopa de beldroegas do quintal da tua mãe, pezinhos de coentrada, um prato de feijão, da feijoada que sobrou do jantar de ontem, e batatas fritas em óleo de peixe dispostas no prato como se fosse a cara da Micas, diziam-te que era mentira. Ainda bem que aprendeste a cozinhar na prisão, pá.

– O que querias!? Cinco anos certinhos, tinha de ocupar o tempo, até empratamentos aprendi, com um tio que por lá andava a dar-se ares de entendido na etiqueta e mais não sei o quê.

– Prepara-te, vem ali mais gente. Hum… Diria que pobretanas e idiotas. Avança já com o menu Desempregados e algo do Menu dos Estúpidos.

Antes de saírem, o casal maravilhado, ainda tirou uma foto à placa que anunciava o nome daquele verdadeiro céu da boca.

– Que nome curioso e tão apropriado, até tem um erro de concordância. ‘Tasca do Cinco Estrelas’. Genial. Deviam abrir também um na Expo, sempre podíamos ir a pé.

– Deviam era estar na Estrela, não achas?

– Ó, querido, és tão engraçado! Isso é que era. Agora temos de pensar num título para o artigo.

– Que tal: A Cinco estrelas do Céu da Boca?

– Simplesmente, genial! Genial!

 

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