… ventanias presas no cabelo, frémitos vulcânicos ilusoriamente domados nas tranças. O sol nascia e punha-se no seu sorriso e o meio dia fazia o pino do verão a cada gargalhada sua. O mar ondulava no seu corpo, onde cada maré vaza acabava em maré cheia. Nele apetecia mergulhar, mesmo em dias de fúria invernal, mesmo correndo o doce risco de um clímax tsunâmico. Sob a copa exuberante do seu cabelo ventoso, a sombra fresca da juventude, o poder primaveril da vontade e da ação. A sua pele morna, da cor da areia da praia, aquecia desejos e despertava luxúrias. Os seus lábios carnudos e escancarados à alegria sopravam sonhos e anunciavam tormentas. Tudo ou nada. Viver ou morrer. Rir ou chorar. Nos seus olhos, um arrozal verdejante, por onde dançava a luz quente do verão e as geadas gélidas de outros sentimentos. A postura e o caráter, firmes e serenos como o tronco uno e resoluto de toda uma floresta.
Ela trazia a magia nos dedos, batutas de liberdade, comandos de libertinagem. Com eles regia o universo e tudo o mais nas cercanias. Címbalos estremeciam com o bandear das suas ancas e verdadeiras tempestades se amotinavam, desde logo, sempre que, num gesto largo, as suas delicadas mãos soltavam o cabelo dos entrançados grilhões. Há notícias de naufrágios e outras tragédias com honras de jornal, sempre que o seu cabelo era largado ao vento de que era feito. Com apenas um dedo, um qualquer para o efeito, e legiões caminhariam na direção indicada, sabendo que o sol e a saciedade eram destinos da rota sugerida. Sabendo que mesmo em pleno temporal, terra sólida e boa a sua frota alcançaria. Uma imperatriz do silêncio e do desnecessário palrar de quem nada tem para acrescentar ao muito que já foi dito. Nas suas veias a pura vontade de absorver a vida e tentar a felicidade.
Ela trazia uma orquestra de prazeres entretida na sua pele. Tocando vibrações inéditas e melodias encantatórias que obrigam a escutar e a sentir. Uma baladeira que se vestia de exóticas sedas e suaves veludos. Sem ostentação, sem gritos de prima-dona. Assertivos, mas coloridos. Sóbrios, mas garridos. Na voz, ela trazia a cadência dos riachos e de inesperadas cascatas, conforme as entranhas determinavam, conforme os ânimos decidiam. Ora feliz e estonteante, ora nostálgica e tristonha.
Ele tudo viu e tudo escutou. Ele parou para saber mais. Para experimentar e avaliar. Para provar e ser provado. Foi aportando em cada enseada daquela mulher-maravilha, pernoitando aqui e ali, seguindo um rumo que parecia pré-definido, deixando-se levar pela corrente, pelo sopro dos cabelos dela, seguindo a sua voz destemida. Ficou preso a todas aquelas estranhas e sedutoras sensações, daquelas que salvam navios das tormentas, indicando poisos inesperados em sítios e horas plenas de bonança, dificilmente visíveis na brava ondulação. Mesmo os temporais eram excitantes. Extremos sinais de vitalidade e vigor. Tudo nela era brutal como brutais são os caprichos da Natureza.
Ele quis mais. Quis poder ser ele a decidir o rumo, a fim de encontrar, livre e propositadamente, as sensações que ela lhe tinha apresentado. Quis fazer conserva de alegria, catalogar os spots mais extraordinários, mapear aquele corpo, comandar à distância vontades e desejos. Ousou criar, de forma artificial, desejos e disposições, quereres e disponibilidades.
Mas ela não praticava navegação à vista. Ela não podia ser condicionada. Ela não permitiria controlos, perto ou à distância, nem condicionalismos. Exigir-lhe isso era querer outra pessoa que não ela. Impor-lhe rotas e rotinas era negar-lhe a sua própria essência, a sua irrefletida necessidade de ir com a corrente da sua vontade, do seu destino. Na irrefletida vontade de a manter viva em cativeiro, ele começou a matá-la. Na possessiva loucura com que começou a amá-la, ele acionou nela um agonizante desamor. No infantil desejo de a querer sua para sempre, ele foi-a perdendo. Uma asa aqui, um trinado ali, um uivo permanente e o visível definhar.
Ele culpou-a de não o amar. De não o amar como ele a amava. Acusou-a de já não retribuir e até de já não ser espontânea. Um amante, por certo. Perdoá-la-ia se ela não repetisse. Mas ela repetiu. Não o amante que ele inventou, na vã tentativa de justificar os erros que eram dele, mas que ele entendia serem dela, mas repetiu a vontade de poder ser livre noutros lugares, pois só em liberdade poderia ser ela, tal como ela era, tal como ele a conhecera, tal como ele a amara. No insano tufão que crescia no peito dela, ele assumiu apenas uma pequena tosse peitoral. Um bom chá quente com mel e tudo voltaria ao normal. No tom pálido da pele outrora dourada de felicidade e praia ele entendeu apenas pó de arroz e outros maneirismos femininos. No tom agora negro do seu olhar, ele quis apenas ver mais seriedade e elegância. Nem se apercebeu que era o arrozal que morria.
Ela explicou-lhe um outro diagnóstico. Que sem água fresca secaria. Sem estar solta na rua perder-se-ia naquele ínfimo espaço. Sem vento no cabelo não voltaria a dançar. Sem sol no rosto, não voltaria a rir. Que o amor dele era clausura e que o ar poluído daquele tipo de querer bem era tóxico e não a deixava respirar. Daí o tufão que se agigantava no seu peito e as olheiras que sombreavam novas e revoltas quedas de água e rápidos que antes eram apenas calmos. Ela ensinou-lhe que colocá-la numa forma, possivelmente mais cómoda para ele, era torná-la noutra pessoa e que ela apenas conseguiria ser uma única pessoa: ela própria. Que ela própria, por conseguinte, já tinha a sua forma, a sua maneira de ser e entender e nenhum outro molde lhe poderia alguma vez servir. Que se ele insistisse, um dia seria ele mesmo a deixar de amá-la, pois que ela seria já outra pessoa que não ela. Seria já outra coisa. E que, finalmente, quando ele conseguisse que ela deixasse de ser ela, aquilo que os uniu já lá não estaria. Ele acariciou-lhe o rosto sem brilho e disse: “Que disparate!”
Na loucura do muito amor que lhe tinha, ele ordenou, então, médicos e medicamentos, encomendou curas e novos recomeços. Com tintas inéditas e não tóxicas, tentou amorenar-lhe a pele, num tom igual ao de outrora. As lentes de contacto reavivaram o verde quase ao nível do alface e uma suave música abafava aquela maldita tosse peitoral, que não havia mel ou comprimido que calasse. Os ruídos no peito dela ganharam volume e frequência. Foi preciso aumentar o som para o abafar. “Ignorar o óbvio não é caminho, entende que tenho de partir.” As palavras eram dela, a recusa era dele.
Certo dia, ela soltou os ventos ciclónicos que palpitavam sem descanso, e já sem mão que os domasse, no seu cabelo e no seu insuflado peito. Ouviu-se um silvo em tudo semelhante ao de uma câmara de ar em movimento de descompressão. Assobiou para o ar vazio. Era a voz da enorme e soberba baleia que vivia nas ondas do seu sangue.
Certo dia, ela abriu a represa das águas bravas que chocalhava em alvoroço nas suas ancas e coxas. Sacudiu o deserto de areias perras que lhe pesava sobre os ombros. Depois de libertados os membros, ela espreguiçou-se com deleite. Puro prazer muscular. Ganhou nova altura e reconquistou alguma destreza. Estava mais alta.
Certo dia, ela desativou o contacto daquelas risíveis lentes e plantou no olhar todo um novo e extenso arrozal. Bem de raiz, para que não crescesse com vícios ou restos de doença escura vindos de colheitas anteriores. As primeiras delicadas hastes já se faziam anunciar em cílios de cor.
Certo dia, os seus lábios abriram-se de par em par, permitindo que a boca soltasse a poeira que lhe consumia o ar e farfalhava nos pulmões. Uma espécie de melodia assomou àquela janela, por onde os raios de felicidade podiam voltar a entrar.
Certo dia, os pés dela, presos num palmo de lama, ousaram vir à tona. As suas pernas acordaram os músculos, agora raquíticos, e ensaiaram um treino tonificador. Calçou as velhas e confortáveis sapatilhas. Rodopiou, catapultada pelo sopro de vento que o seu cabelo soltava ainda.
Quando, por fim, hasteou a última vela de vontade e determinou uma rota com navegação à bolina, sem precisão de terra à vista, estava tudo pronto.
Certo dia, ela partiu e não mais voltou.
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