Confinamento obrigatório. Desconfinamento obrigatório. Teletrabalho obrigatório, ou talvez já somente sugerido. Já pouco importava. Tudo estava de pantanas. Dia não sei das quantas. O despertador que tocava na mesma às 6h30. A higiene matinal. A azáfama diária do pequeno-almoço e o café tomado antes das nove, hora a que ligava escrupulosamente o computador. Tudo para manter a ideia de normalidade de início de dia de trabalho. Tudo para recriar a ilusão mental de que nada de extraordinário ou excecional se passava, mas o raio do fato de treino que agora substituía a ‘roupa de sair’ não permitia enganar o cérebro. Não possibilitava que o passe de mágica acontecesse. O corpo pode fazer de conta, mas o cérebro não se deixa enganar com falsos cenários, com realidades alternativas e maus guiões. O cérebro ressacava da falta de horas passadas no trânsito, concentrado na condução, distraído pelo stress permanente e pela constante urgência de chegar a horas. O cérebro é arguto. O corpo nem tanto. Desde que confortável, o corpo aceita qualquer indumentária, qualquer combinação de cores. Já o cérebro é exigente e estupidamente fashionista. Deteta a menor discordância de tons e é sensível à falta de esmero, a começar pelo desleixo do guarda-roupa e o excessivamente confortável pé, agora a nadar em fofos chinelos. Ainda tentou dedicar algum esmero ao visual, mas cedo percebeu que não era prático quando exigências culinárias se misturavam com a rotina profissional, que os almoços e os jantares, os lanches e os snacks não se faziam sozinhos e um blazer era até patético, quando se trabalha em casa.
No início, naquele novo mundo de cabeça para baixo, foi desgastante, já que havia que assegurar novos procedimentos para conseguir tornar possíveis simples operacionalidades mínimas. O receio constante da rede doméstica, até então exclusiva de atividades lúdicas, era agora uma guilhotina periclitante capaz de decepar horas de trabalho. Vivia no arame, sem rede, ou com pouca rede e sempre dependente desse fio de rede mal tecida, mas pela qual pagava um pacote mensal nem por isso barato. “As redes estão sobrecarregadas”, explicavam assistentes com pouco expediente e em tom de enfado do outro lado da linha, sempre que reclamava da internet, e dos dados que não rolavam céleres no tabuleiro. Por outro lado, no início foi curioso. Tudo era novo e, por isso, um desafio que estimulava a perspicácia e a capacidade de adaptação, onde a resolução de novos problemas esmerava a acuidade, punha à prova recursos mentais e estratégias cognitivas.
Recuperavam-se saberes e conhecimentos, já que, e ainda que trabalhando em rede com a restante equipa de trabalho, tudo dependia mais agora de cada um. Não dava para solicitar os serviços informáticos, ou financeiros, ou qualquer outro a cada instante, para tirar pequenas dúvidas, já que não estavam à distância de um nome chamado no open space do escritório e nada chegava por via de uma breve e pronta resposta, quando assim era, claro está. Tudo implicava e-mails, chat, telefonemas, videochamadas e só isso reduzia em muito o tempo útil para executar todas as tarefas diárias impreteríveis. Havia que gerir bem o tempo e os recursos disponíveis e as exigências domésticas, que uma mulher em casa não para. Há sempre alguma coisa a requerer a sua atenção. Algo que sobressai e que necessita de ser feito. A louça do pequeno-almoço, que pede agora para ser limpa antes de se lhe somar a do almoço, o qual, por frugal que seja, implica planeamento e execução, mais lavagem, mais limpeza. Um desgaste que somava irritabilidade a tudo o resto.
Tudo isto já era sobrecarga suficiente, mas a cabeça ocupava-se ainda por antecipação com tudo aquilo que estava para vir. O mundo não tinha apenas mudado, como tinha mudado para sempre. Jamais voltaria o mundo anterior a este. Jamais regressaria a ‘normalidade’ de ontem. Nada voltaria a ser o mesmo. Nada se repetiria, ou regressaria ao ponto em que estava quando o ‘bicho’ chegou. Não nos estávamos apenas a habituar e a adaptar a uma realidade provisória, exigida durante um período fechado, por um tempo mais ou menos definido. Estávamos a entrar numa nova realidade. Nada voltaria a ser igual. Mesmo com cura, mesmo com vacina, nós e o mundo, todo o nosso universo se tinha alterado. Para já, para diferente. Era cedo para perceber se para melhor – tendo em conta possíveis melhorias comportamentais, ecológicas, económicas ou outras que se viessem a verificar –, ou para pior. De repente, era obviamente pior. Não havia beijos, nem abraços, nem saídas, nem jantares fora, nem teatro, nem cinema, nem concertos, nem festivais, nem amigos por perto, nem pessoas nas ruas. Tudo era cenário de Vanilla Sky, de pesadelo e artificialidade perante a realidade que até ontem era nossa e imutável. Jamais imaginámos que um inimigo invisível se impusesse de tal forma na nossa existência, nos nossos modos de ser, estar e fazer as coisas. Todas as coisas. Pois ele aí estava e tudo aquilo que mudou era incomensuravelmente desproporcional e inverso ao tamanho do agente provocador de tal mudança. Um vírus coroado, vindo de Leste, quando nos tinham ensinado que a Leste nada de novo. Era mentira. Tudo aquilo que era a nossa santa verdade é agora mentira. Já há nova sinalética a ensinar-nos o nosso lugar nos espaços. Há novos requisitos de higienização e desinfeção, novos conceitos de proteção individual e de grupo, novas etiquetas, incluindo respiratórias, e há distâncias sociais que não prestam apenas um serviço cívico, mas sanitário, e máscaras que impedindo de ver os rostos dilatam ainda mais qualquer distância imposta pelo receio de contaminação e contágio. Não é uma questão de mera higiene, mas de sobrevivência, do indivíduo e das comunidades. Do eu e do tu. Raio do vírus!
By Rodney Smith
O novo mundo, na versão telemundo, em que tudo nos chega à distância, em que tudo é visto ao longe, a uma distância de segurança vital, trouxe ainda outro receio premente: o do lay off, o do desemprego, o da perda de casa e conforto, o da fome e da morte por miséria. Depois de nos tirar família e amigos, depois de nos roubar liberdade e mobilidade, o bicho ainda queria mais. Muito mais. Queria tudo. Tudo mesmo, a vida incluída. E eram já tantas. Aqui, ali. Por todo o lado. Em todo o mundo. Um planeta à deriva, a bordo de um bote furado. Somos agora todos migrantes, em barcos que não flutuam em pleno Mediterrâneo e sem porto que nos acolha. “Vamos todos ficar bem” era apenas mais uma ilusão, uma miragem fruto do tempo passado de cabeça descoberta ao tórrido sol no tal bote que naufraga. Não vamos ficar todos bem. Uns ficam mortos. Outros órfãos e viúvos, outros sem filhos, sem netos e sem amores, outros sem emprego. Quem fica, fica com nada ou muito pouco. Não vamos ficar todos bem. Ficarão bem quem navega em barcos com bons motores e tripulação. Ficarão bem quem tem coletes de salvação. Ficarão bem aqueles que já estavam bem. Que sempre estiveram bem e que tenham a sorte de não apanhar a doença, ou, apanhando-a, de lhe sobreviver. A tempestade é igual para todos, mas as embarcações são de tipos bem distintos. Não vamos ficar todos bem, até porque já não estamos todos bem. Enquanto o novo mundo que acabava de chegar não impunha as suas novas regras e delas não tomássemos conhecimento, tudo girava ainda em torno do dinheiro. Também da solidariedade e da empatia, diriam alguns. Também, é certo, mas acima de tudo, era ainda o capital quem ordenava e comandava. Também ele assustado, mas resiliente no seu papel, zeloso do seu espaço e dos seus poderes, como velho patriarca que se recusa a passar o testemunho a gente mais nova e mais capaz, entendendo que ninguém como ele saberá desempenhar tão complexa tarefa. Tanto engano. Tantos enganados.
Discorria sobre tudo isto e muito mais, enquanto se informava dos números diários da desgraça. Do deve e haver de vida e morte. Aqui e pelo mundo. Havia, porém, um inesperado aspeto que não tinha ponderado. Não era apenas ela quem teria de ficar em teletrabalho. O marido também ficara. Um problema acrescido, pensou. Inicialmente foi com agrado e alguma surpresa que se viram, frente a frente, na grande secretária improvisada, cada um a trabalhar no seu universo, mas presentes. Fisicamente contactáveis. E algumas vezes, sem as devidas distâncias, que o amor julga-se imune a tudo, ‘contactaram-se’ física e sexualmente, em horas despropositadas, tal era a novidade do convívio forçado. Era meio divertido. Era meio estranho. Foi engraçado, na primeira semana. Na segunda, já estavam mais ou menos em velocidade cruzeiro, quase se ignorando no meio dos primeiro grandes problemas que cada um teve pela frente. Depois, veio a logística doméstica. Pôr e levantar a mesa. Quem o fazia? Almoço e jantar. Quem preparava? Lavar e limpar louça. Quem se voluntariava? Cada um a empurrar para o outro, já que a cozinha era o temido Adamastor lá de casa. O primeiro que chegava tentava desenrascar qualquer coisa, mas agora estavam ambos em casa, ‘regressavam’ do trabalho em simultâneo, ou quase, e nenhum com vontade ou iniciativa para mais essa estopada diária, que se multiplicava vezes quatro refeições. Uma nova rotina que esbarrava de frente com a constante presença de ambos em todo o lado. Nunca tinham estado tanto tempo juntos sem interrupções. Nunca. Nem mesmo em contexto de férias. Nunca mais do que quinze dias, dedicados ao lazer, ao ócio, a atividades de que ambos gostavam, ou apenas em casa a descansar ou a tratar de assuntos e reparações urgentes para as quais não havia tempo nem cabeça senão nas férias. Nunca mais do que quinze dias e em ambiente favorável, já que as férias, mesmo que sem viajar, são sempre períodos agradáveis, apetecíveis e muito desejados. Como se dariam? Seriam compatíveis a esse nível? Bastaria o amor para colar todas as rachas de um tão intenso convívio forçado e confinado? Sem possibilidade de sociabilização ou um copo ao final do dia, ou encontros com amigos? Haveria respeito entre ambos para sobreviverem a uma tão obsessiva e obcecante rotina? O dia todo a cruzarem-se, a verem-se, a cheirarem-se e a esbarrarem no mesmo espaço-tempo? Pareciam dois cães numa mesma box. Dois prisioneiros numa mesma cela. Dois corpos numa mesma tela de onde não podiam fugir, por determinação do pintor.
Foi com surpresa e felicidade que descobriu que ele era mesmo simpático. Boa pessoa. Boa onda. Alguém com quem era sempre bom estar. Mesmo naquela ‘prisão’ domiciliária, mesmo a toda a hora, mesmo sem roupas giras a permitir seduções, mesmo sem perfumes estratégicos. Ele trazia felicidade ou, pelo menos, a seu lado ela encontrava-a facilmente. Tinha ainda um sentido de humor inesperado, acutilante e inteligente de que ela nem sempre se recordava. Passavam, de facto, muito pouco tempo juntos para se apreciarem devidamente. Como era superiormente agradável e compensador passar com ele, o homem que ama, todas as dez ou doze horas que antes dedicava aos mentecaptos, idiotas, gente zangada e mal-humorada a que o trabalho a forçava a estar rodeada. Trabalhar em casa, nesse sentido e noutros, começou, por volta da terceira semana, a ser uma agradável rotina. Descomprimiu um pouco e baixou os níveis de stress, através de uma inesperada e nova capacidade de relativizar as coisas. Sentiu-se bem, durante essas horas em que tal aconteceu.
Ao cabo de dois meses, ela não suportava o barulho dos ténis dele a roçarem no soalho inglês, de madeira de carvalho, por baixo da secretária, o som do telefone dele, as videochamadas de colegas histriónicas que terminavam sempre com “Tchau, querido”. Tchau, querido? Isso era tratamento profissional? Nem social. Quem diz isso a um colega? Dengosas! E a quantidade de café que ele bebia por dia era enervante, tal como era enervante a pilha de chávenas no lava-louça, nunca sobrando chávenas de café lavadas quando ela, que só bebia dois cafés por dia, precisava. Ele tinha imensos tiques. Ela não tinha ideia. Ele só conseguia falar ao telefone em andamento, batia com a caneta do tampo da secretária… Era por demais. E era sacana, o tipo. Encontrava sempre um telefone ou tarefa urgente mesmo rente à hora em que era previsível que alguém avançasse com a confeção da refeição seguinte. Quando se esquecia de o fazer, apenas se levantava da secretária depois dela com a pergunta mais irritante de todas: ‘Então, o que é preciso fazer?’ Ela já nem respondia. Apetecia-lhe sair. Deixá-lo sozinho a descobrir resposta para as suas perguntas idiotas, para não dizer gozonas. Estafermo.
Tinha saudades da sua empresa, dos colegas, da copa, dos almoços, do trânsito, dos seus programas de rádio, das pastilhas e dos cigarros que consumia num ápice, de estar atrasada. Sentia falta do stress, dos serões de trabalho, de chegar tarde a casa, de se deitar sem jantar, menos ainda sem ter de se preocupar com o jantar. Tinha saudades de ter saudades de casa e do marido. Agora estava farta de tudo isso. Não podia ver a casa, as limpezas e arrumações de que necessitava, mas para as quais não tinha tempo nem pachorra, apenas consciência. Não suportava que todos andassem por aí a dizer que a clausura lhes dava para as limpezas e pinturas e reparações…, como se teletrabalho implicasse menos horas de trabalho e tempo extra para limpezas. Ela não tinha tempo nem para se coçar, continuava ocupada e cumpridora e quando terminava só já tinha tempo para as malditas refeições. Muito e muitas vezes se comia por ali. Estava igualmente farta do marido. O dia todo a espelhar-se à sua frente. A discutir assuntos em voz alta que não a deixavam concentrar-se, enquanto martelava as teclas do computador como se fossem pregos a abater sobre madeira dura. Que ódio tão grande! Que tormento tamanho. Sentia-se estúpida por não poder sair ou aventurando-se, por causa de toda a logística e procedimentos que isso implicava. Máscara. Luvas. Desinfetante. Na ida, era pacífico, mas no regresso a casa era o pânico. O que tirar primeiro? Onde e como deitar fora? Sapatos à porta de casa. Compras na rua para serem ‘lavadas’ com água e detergente antes de entrarem em casa. Duche a escaldar com litros de géis e desinfetantes diversos. Só faltava bochechar com lixívia, mas para lá se caminhava, que isto de agir como se toda e qualquer pessoa estivesse infetada era aterrorizador e desgastante. Não toca, não mexe, não respira. Até quando? Até quando?
Foi quando colocou esta pergunta que decidiu. Não se sujeitaria mais a tudo isso sem saber um fim à vista. Viver assim, não era viver. Não tinha o mundo anterior de volta? Então, arriscaria ficar contaminada. Assim como assim, já não se sentia viva. Ainda tudo isto assentava arraiais na sua mente, em pleno centro decisor do seu cérebro, quando ele começa de novo com aquela síndrome da perna inquieta que fazia com que a sola dos ténis fizesse a madeira do chão guinchar de dor e de irritação. Foi o suficiente. De fato de treino, cabelo (mal) apanhado, luvas calçadas, máscara no rosto, o que implicou que o sorriso fosse na mão, ela saiu de casa. Já não queria saber. Entre ter coronavírus ou liberdade, escolheria sempre a segunda hipótese. Mesmo sendo uma liberdade solitária, que não podia ser partilhada com quem quer que fosse. O que tivesse de ser seria. Se o novo mundo era um desconhecido, ela apressava-se a apresentar-se. Olá!
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