– Escolho o dia de hoje.
Ana tinha decidido. A escolha estava feita. Assertiva e resoluta, Ana não teve um segundo de hesitação sequer, quando anunciou ao Júri Vitae sobre qual o dia em que recaía a sua decisão. O brilho nos seus olhos pintava-os de um tom de verde impossível. Tão impossível era aquele verde que os jurados, treze ao todo, como de resto em todas as deliberações, estava prestes a dar o caso por encerrado, quando – já o tatuador se preparava para gravar na pele de Ana a data eleita –, se fez ouvir a voz de um dos jurados. Uma das mulheres do grupo, a mais velha de todos eles. A mais velha. Quase anciã. Quase santa. O membro mais honorário daquele conjunto de jurados. De conselheiros profissionais. Os mais velhos eram venerados com cega devoção, numa sociedade esmagadoramente jovem, imberbe, inexperiente. Uma sociedade à beira da irresponsabilidade. No limite da criancice.
– Porquê tanta pressa, Ana?
Foram estes os sons que interromperam aquela espécie de encantamento esverdeado que ainda pairava na sala. A voz da jurada começou por soar a isso mesmo. A um somatório aleatório de sons, quase ruídos que incomodaram o verde, o qual se foi aclarando até à transparência, até à sua total camuflagem com o ar invisível daquela sala, clara e ampla, por onde bailavam os últimos raios de sol daquele dia primaveril. Quando o verde deixou de o ser, e porque se tornou óbvio para a mulher que ninguém teria verdadeiramente compreendido e assimilado as suas palavras, ela retoma:
– Tens noção plena do que estás a decidir?
– Sim – foi a seca e singela resposta de Ana. Ainda sorridente, ainda segura.
– Porquê tanta pressa, Ana? Porquê hoje?
Ana sorriu ainda mais.
– Porque hoje estou verdadeiramente feliz. Tão feliz que sei que jamais voltarei a ser tão feliz na vida. Hoje foi o dia mais feliz da minha vida.
– Mas a tua é ainda uma vida muito curta. Como podes ter tanta certeza de que não virão dias mais felizes? Mais completos e satisfatórios?
– Porque há coisas que se sentem cá dentro e trazem certezas.
– Que coisas?
– Estrelas, brilhos, cores, sorrisos soltos, um bem-estar sem igual, como quando o sol aquece a nossa pele e nos amorna por dentro e por fora.
A mulher sorriu e baixou os olhos, fixando-os nas suas próprias mãos, cruzadas, onde os polegares rodavam um sobre o outro. Um sinal equívoco, que tanto podia denunciar calma e paz como inquietação e dissimulado alvoroço interior. Olhava aquela jovem, uma criança apenas. Treze anos são quase nada. Como se pode parar uma vida aos treze anos? Deveriam alterar a lei? Determinar uma idade limite? Não seria isso absolutamente injusto em casos de doença ou mera cobardia? Como decidir algo tão importante na vida de alguém? Com que direito decidir por outro algo tão vital?
Pensou no seu próprio percurso. Jamais, aos treze anos, lhe ocorrera parar de ‘crescer’. O seu ato de interrupção, o seu momento de escolha, só se lhe apresentou bem mais tarde na vida, aos 57 anos. Uma raridade, é certo, mas apenas nos dias de hoje, em que se tornou moda uma verdadeira precipitação. Casos de mortes acidentais, de doença e sofrimento, físico, mental e emocional, relatos dolorosos, notícias fatídicas, antecipavam na mente dos humanos a urgência de escolher o seu Dia Eterno, aquele ao qual ficariam presos para todo o sempre. Aquele, cujas emoções experimentariam ininterruptamente, independentemente de o dia poder decorrer de forma distinta daquele em que pararam o seu crescimento físico. Uma invenção que a ciência tinha proporcionado há já quase um século e que, em plenário mundial, se tinha adotado como prática universal. Vinha no rescaldo de uma pandemia que quase dizimara o planeta de qualquer tipo de vida e que a química conseguira equilibrar.
Ficar preso a um dia. Ter de escolher um dia para viver dentro dele para sempre, é algo extraordinário. Extraordinário e sufocante. Claro que havia urgência de escolher, já que, incapazes de prever o futuro, todos se viam na contingência de encontrar o seu dia antes de morrer, caso contrário não havia segundas possibilidades de o fazer. A morte continuava inevitável, não obstante uma cada vez mais ampla esperança de vida, que ninguém apostava em ver cumprida, que ninguém arriscava comprovar. Razões de sobra para que este fosse o mais jovem planeta Terra de sempre. Ninguém queria arriscar deixar passar demasiado tempo, pelo que eram numerosos os casos de óbvia precipitação, que conduziam à frustração e à inveja. Devido à ânsia de escolher, todos se consolavam em ficar retidos no primeiro dia em que achavam sentir-se felizes, quando, depois, por comparação com os dias eleitos de outros, mais satisfatórios e felizes, ainda que apenas aparentemente, seria um espaço vazio e insignificante.
A escolha do Dia Eterno ganhou, então, contornos de sentença de vida. De sentença de morte. Ana tinha ainda tanto para experimentar na vida. O amor, o sexo, a possibilidade de filhos, de sucesso ou até de fama ou de qualquer outro tipo de realização pessoal ou profissional. Acreditava seriamente que a lei teria de salvaguardar erros crassos, precipitações vãs, crianças e jovens iludidos com aproximações de felicidade, com quase verdades. Porém, como poderia outro ser humano viver com a culpa de recusar um Dia Eterno a alguém que poderia morrer atropelado no dia seguinte? Que capacidade teremos de decidir por outrem, por mais jovem que seja? Se até o poder parental se priva de tal atrocidade, como pode a lei ocupar esse lugar? Ainda assim, não deveria? Não deveria ser esse o seu papel primordial? Acautelar falsas felicidades? Mas com base em que critérios? Ancorada em que valores?
– Tens apenas treze anos, Ana. Não imaginas dias melhores pela frente? Com mais estrelas ainda, com novas cores e sensações de plenitude ainda mais profundas e entorpecedoras? Não gostarias de te apaixonar?
Ana corou. Mas Ana não perdeu o sorriso ou a seriedade. Nem a voz denunciou reticências quando voltou a reiterar que aquele era o seu dia.
A mulher silenciou as suas inquietações, mas manteve o equipamento do tatuador longe ainda da pele de Ana. Não que o tivesse pronunciado, não que o tivesse gesticulado, mas naquela sala branca, ampla e clara, quase iluminada por um qualquer clarão espiritual, todos perceberam que ainda não estava completamente conformada com as explicações da pequena Ana. A mulher lembrava a sua própria escolha. Para si, tinha eleito o dia em que o médico lhe havia diagnosticado cancro na mama. Um dia péssimo. Pleno de emoções potentes e de dor interior. De raiva e ódio contra tudo, contra todos, contra si própria, acima de tudo o resto, por não ter eleito outro dia qualquer dos muitos que já vivera. Um dia com mais sol, para que se sentisse sempre quente e confortável. Mas era inverno e jamais deixou de sentir os 7 ºC que o termóstato, numa rua da baixa, lhe apresentara ao sair da clínica. Não podia recriminar quem quer que fosse. Tinha, com as suas cautelas e lógica cartesiana, decidido desde sempre que o seu Dia Eterno deveria ser o seu seguro de vida. A garantia a prazo para uma qualquer eventualidade. Pois ela ali estava.
Chamava-se cancro e apelidava-se de drama. Impedindo o seu crescimento, bom, no seu caso seria mais o seu envelhecimento, também estaria a controlar a doença. O cancro estagnaria. Não evoluiria e ela acabaria apenas por morrer, um qualquer dia do universo, de qualquer coisa, mas não de cancro. Achou-se muito inteligente. Uma sortuda, por ter tido a coragem de aguentar até tão tarde para eleger o seu dia e, assim, deliberar sobre a sua sorte, sobre a sua doença, no fundo, sobre a forma como morreria. Não seria de cancro. Pelo menos, não daquele, na mama.
Sem grande tato, atirou a Ana:
– E se amanhã te for diagnosticada uma doença grave? Poderias, se ainda não tivesses eleito o teu Dia Eterno, recorrer a ele e salvar-te.
– Salvar-me do quê? Não vamos todos morrer? Podem dizer-me amanhã que tenho o mais terrível dos males, mas eu continuarei a viver as alegrias do dia de hoje, independentemente do que a doença traga. Não é bem melhor?
Tão melhor, pensou a mulher. Tão melhor, Ana. Ela tinha, de facto, salvado momentaneamente a sua existência física, mas jamais perdera a violência do baque, o estremecimento brutal de quando recebeu a notícia. Emoções violentas que acompanhavam todos os seus dias desde então e com os quais morreria, um dia.
Apenas não daquele cancro que vivia nela, mas também ele sem capacidade de se desenvolver ou provocar mal. A fim de se salvar, tinha eleito um dos piores dias da sua vida. Aprende-se a viver com tudo, mas não se consegue afastar a nostalgia, a melancolia. Ana, com os seus olhos de pequena sábia, de novo impossivelmente verdes e brilhantes, parecia tudo saber. Parecia ler no rosto desta mulher serena e tranquila todo o sofrimento do mundo. Todas as possibilidades deste estranho puzzle para o qual os humanos se tinham atirado, também eles em desespero de causa, em desespero de pausa. Famintos de uma solução urgente, tinham apanhado a primeira barca para o inferno, com receio de que outra não viesse, ou que chegasse demasiado tarde, para qualquer efeito. Macabro destino, termos de nos condenar a um jogo cruel em nome da aparente salvação. Uma longa pausa no lugar de um game over. Apenas uma suspensão, jamais uma solução, e um sofrível play daí em diante. Adiante.
Adivinhando um sem fim de inquietações, camufladas no olhar pacato da mulher, mas sem qualquer tipo de provocação ou impertinência, apenas a curiosidade e a vontade de ajudar, Ana ousa uma pergunta à sua interlocutora:
– É feliz?
A mulher olhou-a. Sem surpresa. Sem amargura. Olhou-a apenas, percebendo o quanto Ana já sabia da vida, pelo menos, daquilo que importava saber da vida. Deixou de tratar Ana como uma criança. A pequena provava merecer bem mais do que isso.
– Estou em paz.
– Isso é bom –, assentiu a ‘idosa’ Ana – Isso é muito bom –, repetiu num quase silêncio, numa aproximação de sussurro.
– E tu, Ana? Estás segura de que isso que sentes no coração é felicidade e não apenas contentamento?
– Sim.
A pequena era sempre breve, mas clara. Sem reticências, nem exclamações. Apenas segurança e tranquilidade. Apenas aquele verde inenarrável. De uma forma inexplicavelmente comedida, Ana vibrava. Ana devia ser, seguramente, feliz.
– O que teve este dia de tão especial para ti, Ana? –, quis saber a jurada.
– Ah!
Afinal, uma exclamação, observou em silêncio a mulher. Um pequeno frémito, uma onda quase invisível, percorria o pequeno e magro corpo de Ana, envolvido agora, todo ele e já não apenas o olhar, num intenso e absoluto tom de absinto.
– É que hoje… Fiz um amigo. Um cão vadio escolheu-me para sua amiga e isso é coisa dos anjos, não acha? Um mundo cheio de gente, uma rua cheia de crianças e ele escolheu-me, a mim, de entre todas elas. Hoje sou especial. Hoje foi o meu primeiro dia perfeito. Tenho um amigo desinteressado, um amor verdadeiro. Um cão para sempre. Deve ter chegado à minha vida para substituir o meu pai. Sim, hoje a minha mãe mandou-o definitivamente embora. Nunca mais seremos maltratadas. Um cão e paz. Há melhor do que isto, na vida?
Que maravilhosa forma poética de percorrer nossos conflitos. Quanto mais repito a leitura, novos tons aparecem e sou até capaz de ver o verde impossível.
Parabéns e nunca pare de escrever.
Muito obrigada Sílvio, e que nunca pare de viajar nas letras, onde não há verdes impossíveis!