Jani ajeitou o avental, no qual, sobre o fundo preto 100% algodão, se espreguiçava, a bege, o esboço do corpo – apenas do corpo, decepado no ponto exato em que começava a cabeça de Jani – de um Adónis indescritivelmente perfeito, musculado, másculo e jovem. Também ele se sentia assim, poderoso, sedutor e ainda mais sexy do que o seu avental. Por baixo deste, Jani usava apenas a sua pele, exfoliada, hidratada, eternamente bronzeada e suavemente perfumada. Assim deve ser a pele de um gigolo. Não que este tipo de checklist esteja inscrita em qualquer espécie de manual ou minuta, em que se determine quão isto ou aquilo deve ser a pele desta ou daquela profissão. Mas se a pretensão é a de ser profissional deste delicado ofício, qualquer estúpido entende a importância de manter a matéria-prima num primoroso estado de manutenção e aromatização. Para ter feios, porcos e tontos, uma mulher não precisa de pagar. Destes, há uma vasta, abundante e gratuita oferta. Por certo, já terá até um destes em casa. Jani estava bem ciente de que estava nos Himalaias do amor de empréstimo, mas não resistiu a verificar a sua imagem no reflexo dos fornos encastrados da cozinha high-tech, onde tinha acabado de preparar um elegante pequeno-almoço, onde jamais faltavam ovos escalfados – que a ‘senhora’ não era pintassilgo a comer -, o qual seguia já sobre uma grande bandeja redonda, a caminho do quarto da sua amante.
Aquela que entendia ser a sua derradeira conquista, a sua real galinha dos ovos de ouro, o que até podia ser entendido no sentido literal, já que a decoração de toda a gigantesca moradia estava minada de ovos Fabergé, entre outras preciosidades de não menor valor. Tantos que, já por algumas vezes, tinha recorrido à subtração de um ou outro ovo de ouro e joias preciosas a fim de fazer frente a algumas despesas prementes: uns sapatos Gucci, um fato Boss, o aluguer de um jet plane e respetiva tripulação, para alguns fins de semana na Sardenha, a fim de suprir estas e outras necessidades vitais à sua vida social, como seja ainda o caso da compra de uma licenciatura, hoje em dia pela hora da morte no mercado alternativo académico. Pela hora da morte é que não parecia andar a sua ‘poedeira’. Margarida de Arrifana, apenas Fana para os mais íntimos, que, não obstante a sua proveta idade, o que a avaliar pela lassidão das peles – já que a idade das senhoras não é um dado factual nem questionável – deveria andar perto das bodas de platina e muitos, apresentava, inexplicavelmente, uma saúde sem falhas de maior e um espírito demasiado em alta para os cálculos que Jani fizera no início da relação, já lá iam cinco longos anos. Anos de enorme desafogo financeiro, de viagens e cenários incríveis, mas também de enorme aprisionamento. Sempre acreditara que Fana, à semelhança de ‘amores’ anteriores, estivesse, no gráfico da vida, numa agradável e consistente linha descendente, mas a irrequieta e endiabrada senhora, parecia rejuvenescer a cada aniversário.
– São os meus feijões mágicos, meu querido. Ser vegan, não apenas está no top trendy do milénio, como tem feito maravilhas pela minha energia e até pela minha cútis. Devia ficar feliz, o menino Januário. Sempre é mais tempo de que beneficia à boleia do meu generoso crédito, não acha?
Sempre que lhe azedava o humor e se sentia no direito de colocar o amante no lugar, a de Arrifana puxava do nome completo de Januário, sabendo bem o espinho que lhe cravava bem no órgão vital da sua vaidade, a ele que era sempre tão zeloso do seu petite nom de pronúncia tão janota e deliciosamente internacional. Jani relativizava. Sabia bem que em qualquer trabalho do universo, todos os patrões usam dos mesmíssimos truques para que os seus subalternos entendam, a cada instante, qual o seu lugar na hierarquia das coisas. Ele sabia bem o seu, mais ainda desde que entrara no universo dos ricos, incapazes de olhar de igual para igual quem quer que fosse que não trouxesse na bagagem séculos de apelidos e heranças consecutivas. Mesmo as fortunas recentes eram olhadas com desdém e desconfiança.
– Ossos do ofício, meu caro, não te atormentes em demasia. Qualquer dia a galinha velha vira canja e tu ficas com a vida arranjada até ao infinito dos teus dias.
Com esta lengalenga se acalmava o ingénuo Januário. Perdão, o charmoso Jani. Tinha apenas de acautelar que Fana não alterasse uma linha à última versão do seu testamento, no qual banqueteava o solícito amante com um menu de degustação com uma infinidade de pratos e vinho do melhor. Para isso trabalhava com afinco e dissimulada paixão o doce e terno Jani, anuindo a todas as loucuras da amante, e não eram poucas. Nas fases em que tomava ginseng, seguindo as dicas energéticas de um qualquer guru do lifestyle da moda, Fana chegava mesmo, imagine-se, a sugerir sessões de sexo ‘festivo’ onde incluía algumas outras cotas. Jani ainda se sentia vigoroso, mas entusiasmo para mais do que uma velha por sessão era exigir demasiado dos seus dotes de ator. Lá se ia desenrascando, mas ficava logo com ganas de subtrair mais um ovo de ouro para acalmar frustrações. Não era dado a moralismos, mas mais do que sete dezenas de operações plásticas demasiado óbvias na mesma cama minguavam, por assim dizer, o seu apetite. Valia-lhe quase sempre a generosa gorjeta das histriónicas participantes e algo extra: um misto de orgulho e ciúme que Fana sempre revelava nessas ocasiões. Percebia que zelava pelo seu gigolo, perante o qual exibia os seus direitos de proprietária. Servia-se dele nessas sessões de grupo, acreditava Jani, mais para o exibir e mostrar como estava bem servida, do que para o partilhar ou por puro deboche.
Jani não podia, sabia-o bem, queixar-se da sua vida, até porque fora a vida que escolhera em consciência. Era ainda um miúdo, e já ganhava dinheiro vendendo sexo às mães dos seus colegas de escola. Uma vida fácil e desafogada que nunca quis ou conseguiu deixar. Alguns investimentos mais ou menos desastrosos impediram-no de se ‘reformar’ aos 40 anos, como inicialmente planeara. Quarenta porque era uma idade que lhe permitia ainda encontrar o amor, formar família, se assim o entendesse, e desfrutar livremente da sua liberdade, inclusive sexual. As velhotas, todavia, tornaram-se um hábito, quase uma dependência, e longe delas Jani não sentia as mesmas capacidades de sedução, o mesmo vigor. Achava mesmo que, uma mulher que procurasse o amor, sentiria a léguas de distância o odor de gigolo que ele exalava. Detetaria o eterno Januário sob o pretensioso Jani. Os seus encantos, tinha-os desenvolvido, limado e burilado com vista a um certo ‘público’. Longe dele, a sua performance não granjearia palmas ou agendamento de mais espetáculos. Essa era a sua nuvem negra. A sua mais terrível certeza. Ele próprio, não sabia se estaria interessado nas contingências de um amor genuíno, tão mais exigente, tão mais sensível e pleno de nuances. Tão mais castrador e manipulador. Junto das suas ‘galinhas dos ovos de ouro’, as regras eram simples e descomplicadas. Ele servia-as, mas ele era senhor do seu tempo, dos seus horários… Seria mesmo? Julgava que sim e só isso já bastava na maioria das vezes. Se quisesse sair, saía. Se quisesse deixar a velhota de vez, fazia-o sem remorsos de maior. Era apenas um serviçal a ter de ser substituído na primeira oportunidade e às mulheres maduras com dinheiro não faltam oportunidades do género.
Já ele tinha de acautelar a sua performance sexual, tornar a sua personagem constante e credível, evitar embaraços e estar atento às deixas. Saber em que círculos ser visível e em quais passar à clandestinidade. Não é complicado. Acima de tudo, não esquecer a boa apresentação e manter em posição medalhada os seus dotes físicos. No caso presente de Fana, além da questão de ela teimar em não envelhecer ou adoecer, como seria previsível, Jani tinha ainda de acautelar as investidas amiúdes do filho-herdeiro. Um gigante das finanças que esmiuçava com olhos de gavião toda e qualquer despesa da mãe. Sabia perfeitamente a natureza da relação de mãe com os jovens. Nunca com tal se tinha atormentado. Preferia mesmo que a mãe pagasse para se entreter, do que esta se apaixonasse e pensasse em voltar a casar-se, desbaratando a fortuna com algum louco inconsequente. No caso de Jani, uma espécie de amante fixo, já com anos de serviço, a coisa já lhe parecia mais delicada. Tinha sido o próprio a elaborar a última versão do testamento da mãe, onde Jani era generosamente contemplado, achando preferível essa jogada a qualquer investida traiçoeira do gigolo da mãe, ou mesmo desta, num qualquer momento de fraqueza sentimental. Assim, controlava ele o jogo e ninguém o podia acusar de falta de humanidade ou de compreensão perante as assumidas necessidades sexuais maternas, uma viúva altamente cobiçada e assediada nas altas e nas baixas esferas da sociedade. Todos buscam uma galinha de ovos de ouro, está quase na natureza humana, pelo que o gigante, com astúcia e nivelados índices de maquiavelismo, entendia preferível ir deixando cair alguns ovos de ouro do bolso do que perder a galinha e todas as suas posturas.
As migalhas serviam perfeitamente Jani, até porque, no patamar em que se movia, estas estavam para as refeições como os Maserati para os carros do comum dos mortais e, a bem da verdade, Fana era, de longe, a sua mais proveitosa conquista, a par de uma excêntrica princesa italiana que, lamentavelmente, morrera antes de assegurar o futuro do seu jovem protegido, que apenas arrecadou, após um ano de babysitting – ou melhor, de oldsitting –, uma pequena moradia na Riviera francesa, nada mais. Fana, por seu lado, começava a revelar-se o oposto da sua principessa napolitana: nunca mais morria ou era acometida por uma qualquer demência tão em voga.
Nos últimos tempos, ao contrário de uma certa insatisfação e vontade de mudar de ‘capoeira’ que experimentara no ano anterior, Jani começava a sentir uma inexplicável ligação afetiva a Fana. Seria agradecimento? Falta de ambição da sua parte? Um sinal claro de que os seus dias de maior vigor se encontravam de malas feitas e viagem marcada? Inquietava-o particularmente a possibilidade de se tratar de… amor. De que outra forma se explicava uma certa felicidade que sentia na presença de Fana, na paixão que ultimamente percebia depositar em cada pequeno gesto que fazia para lhe agradar? Como aquele pequeno-almoço, precisamente?! Seria apenas comodismo? Afinal, partir de novo à conquista de mais uma galinha rica, aliás, suficientemente rica para que valesse a pena sair da cama… perdão, entrar na cama todos os dias… Perdia-se em pensamentos e, sem ninguém com quem partilhar inquietações, que a vida de gigolo parece mas não é fácil e chega mesmo a atingir gritantes níveis de solidão, Jani estava decidido a falar com Fana e até, quem sabe, abordar a possibilidade de se casarem, de se tornarem exclusivos um do outros, de juntarem os seus estupendos guarda-roupas, arrumarem os Porches na mesma garagem…
– Cruzes credo! – Não apenas pensou como disse alto e bom som – Que idiotice é esta agora?! Papa a velha enquanto consegues e logo que adoeça ou morra, então, vais à tua vidinha. Comer galinha dura já é suplício, mas comer galinha dura até ao fim dos teus dias é demasiada penitência. Vai antes de joelhos a Fátima! Acorda, Jani, então, pá!
Reposto do susto e com as prioridades e teorias sobre vida e amor realinhadas, o que o tranquilizou bastante, Jani recuperou o ânimo e a acuidade com que diariamente observava as pupilas, as cores e a coerência do discurso de Fana, na sua incessante busca de frestas funestas que denunciassem qualquer tipo de maleita. Até porque, ainda que fictícias, algumas doenças implicavam a toma de medicação fantástica que retiravam ânimo e mobilidade em idades mais avançadas. Já se imaginava a empurrar Fana na sua cadeirinha de rodas enquanto catrapiscava o olho a uma das suas amigas, condoída e sensibilizada pelas suas demonstrações de amor e afeto para com a pré-defunta.
Foi com estes inebriantes pensamentos que, risonho e bem-disposto entrou no gigantesco quarto com vista para o mar da sua darling.
– Queres pedir-me mais dinheiro?
Jani ouviu estupefacto esta ríspida observação de Fana e congratulou-se por ter enterrado os rasgos de loucura que o acometiam de forma irracional.
– Como?
– Não, quem come sou eu, que estou faminta. Trouxeste-me scones?
Ainda atordoado, Jani aquiesceu. Sim, havia scones, quentes, com a manteiga e a compota a escorrerem para os guardanapos de linho, havia sumo natural e os feijões mágicos os quais, por estes dias, Fana comia a todas as refeições. Malvados feijões, pensava Jani, era sexo a dobrar sempre que Fana comia a sua dose de feijão catarino. Quase perdeu o ímpeto para a conversa agradável que esperava ter com a sua dearest chicken, a quem podia começar a dar a entender que estava com uma narrativa incoerente, que a notava algo debilitada, que necessitava de fazer exames, que aquela cor amarelada nos olhos era estranha e preocupante. Por vezes, os velhotes, adoecem de doenças de que lhes vamos falando repetidamente. A idade adota tiques de hipocondria e, mal se dá por ela, e os velhinhos adoecem mesmo. Muito embora a coisa estivesse azeda para aqueles lados, era esse o seu plano. Ia deixá-la comer algo antes, para repor o humor. Quando toda ela fosse delicodoce, avançaria com sinais de doença e palidez e unhas descoloradas… Tinha de pensar bem em que linha de raciocínio avançaria, já que coerência é vital. Optaria por um qualquer mal físico e enigmático ou para uma demenciazinha? Talvez a demência implicasse apenas um mau médico e um diagnóstico enviesado, já que males físicos quando não despistados por exames acabam por ser negligenciados. Sim. Iria fazê-la acreditar que estava louca. Falar-lhe-ia de coisas que era suposto ela recordar e faria pequenos escândalos sempre que ela dissesse que ele estava louco que jamais tinha falado em tal assunto. Ao cabo de muitas coisas do género, e com algumas das amigas mais tontas a aceitarem a sua versão dos factos, bem como algumas manifestações de afeto ou mesmo de sexo que espalharia cirurgicamente aqui e ali, quem sabe o filho não se preocupasse seriamente com o caso e, ele próprio, aproveitasse a boleia para uma herança antecipada? Era uma ideia a alimentar e a primeira colherada iria acontecer naquele preciso instante.
Fana, todavia, tinha outros planos e desatou ela a falar. Jani não se recorda bem de como tudo começou e se desenrolou, mas sabe perfeitamente qual o desfecho. Fana estava apaixonada, mas por outra pessoa, uma mulher ao que tudo indica. Exultava por ter descoberto o verdadeiro amor e a sua real inclinação sexual, semanas apenas de completar 80 anos – a velha tinha quase 80 anos, nem queria acreditar. De tudo o que foi dito, ainda hoje lhe parece que aquilo que terá sido mais escandaloso foi quando ela assumiu que a vida recomeçava para si, que ele tinha engordado imenso, que tinha já nojo do seu abdómen proeminente, que se embaraçava perante as amigas por estar a pagar um serviço tão caro e ele estar tão aquém dos requisitos mínimos do bom gosto e até do bom tom, que o seu desempenho sexual deixava, nos últimos tempos, muito a desejar… A humilhação foi total, o que Jani encaixaria bem com a ajuda de alguns bons cocktails, mas a dor maior surgiu quando ficou claro que estava excluído, desde a véspera, do testamento. Claro que podia ficar com todas as bugigangas oferecidas ou subtraídas ao seu património, não era senhora para regatear minudências, mas o Ferrari teria de ficar, a pedido do filho que, louco com a nova paixão da mãe, também ele esbracejava para continuar a sacar os seus ovos de ouro.
– Não fiques triste Jani. Sabes que a idade não perdoa e tu estás, obviamente, a ficar fora de prazo. Além do avental, que te fica tão bem, por tapar a tua já demasiado proeminente barriga, onde sobrevivem a custo apenas dois abdominais mal definidos, podes levar dos meus feijões mágicos, querido. Vão fazer-te falta.
Jani percebeu que tinha estado a olhar para o lado errado. A galinha dos ovos de ouro era, afinal, o seu corpo.
Moral da história: A vida, tal como as dietas, é demasiado volátil para dar o que quer que seja como certo. Um dia destes, olhamos e os abdominais partiram para parte incerta.
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