Detestava sair de casa antes de anoitecer. Pior, não suportava a ideia de forçar-se a despertar artificialmente, com a ajuda de relógios esganiçados a anunciarem horas pré-definidas, que em tudo contrariavam a vontade natural do seu corpo, habituado a dormir entre doze a dezasseis horas. Além de que, mesmo depois de acordada, não se podia precipitar, de rompante, para os afazeres do dia. Precisava, como era óbvio, de algum tempo. Tempo para se ‘aclimatar’ ao estado de vigília, à temperatura do dia, aos ruídos, tempo para se espreguiçar durante mais uma ou duas horas entre os lençóis de algodão egípcio de mil e tal fios, planeando o resto do dia mentalmente. Sim, era uma mulher organizada, disciplinada, mesmo, e sem tempo a perder. Podia ter apenas cinco horas pela frente para organizar, mas fazia-o de forma exímia, rigorosa, detalhada. Conseguia fazê-las parecer uma eternidade, além de que detestava perder tempo, pelo que era imprescindível que marcasse horas em restaurantes, pontos de encontro de fácil acesso com os amigos, decidir ainda em modo faz de conta que roupa vestir, a fim de poder servir todos os compromissos desse dia, quer dizer, desse fim de dia…

Tudo isto é deveras cansativo e precisava de tempo e espaço mentais e algum gin para alinhavar o plano diário antes de o colocar em prática. Só percorrer o closet e encontrar rimas perfeitas de roupa, sapatos e acessórios podia demorar horas, sem falar nas vezes que já se tinha perdido lá dentro. Uma das vezes foi mesmo imperiosa a intervenção de uma equipa cinotécnica, mas como levar os cães a encontrar o rasto de uma mulher num local empestado com cheiro e roupa dessa mesma mulher?! Foi moroso. Foi penoso. Não queria repetir a experiência. Para tal, tinha inventado ela própria, com a preciosa ajuda da sua Vitória – a mais antiga e fiel das ‘criadas’, sim, lá em casa quem não era da família era criado e malcriado – um sistema de cordas de diferentes cores que, em caso de deambulação prolongada e errática, lhe permitia sair, sem demoras, do mais recôndito canto do quarto de vestir. Engenhoso, mas simples. Complexo, mas prático. Uma das ‘traquitanas’ mais estupendas lá de casa, como costumava dizer, orgulhosa, sem se deter no facto de não ter sido nem ideia nem execução suas. Ficou tudo a dever-se ao expediente, engenho, inteligência e habilidade de Vitória, que servia a família há quase tantos anos quantos tinha de idade, e já estava saturada de passar semanas naquele quarto de vestir em busca da ‘menina’. Porém, como era ela quem diariamente colocava à prova as capacidades do invento, considerava-o seu, ao ponto de confundir a autoria da sua conceção. Além de que todo o design, estética e feng shui eram da sua autoria, já que foi ela quem elegeu as cores das cordas a utilizar e determinou a que altura do chão deveriam estar, e tudo isso conta muito na hora de registar uma patente.

Este, porém, era um dia, enfim, um fim de dia extraordinariamente atípico na vida de Marianinha Foxtrot – isso mesmo, dos donos do Foxtrot, família que vivia, ainda hoje, à conta dos royalties deste passo de dança, recebendo-os de cada vez que alguém toca ou dança este género musical. Uma espécie de conta-contas gigantesco e à escala mundial, que sempre permitira todo o tipo de caprichos a um sem fim de familiares, não obstante outros géneros musicais subsequentes com muito mais saída, hoje em dia, nos clubes e discos, festas de Natal e todo o género de encontros privados e afins. Marianinha Foxtrot preparava-se para receber Graça, a ‘piquena’ com quem o filho mais velho teimava em casar-se o quanto antes. Estava tudo muito bem, tudo muito certo, não fora dar-se o aberrante caso da miúda ser do mais puro povão. O apelido era Silva, o que inicialmente ainda entusiasmou Marianinha, por causa do tio Picardo, do banco e tal, mas tudo não passou de um engano. Silva, tão somente Silva, era o solteiro apelido de Graça. Este Silva fazia parte do apelido mau e não do apelido bom, se é que entendem. Ainda se alegrou, supondo que, então, só poderia ser do lado do tio Chapa-Limão, mas, horror dos horrores, também não era. Graça simplesmente não era uma das suas. Como apresentá-la às amigas, sem resposta correta às normais perguntas de ocasião? De quem era filha? Se ainda era Silva por parte dos Espírito & Quanto? Se tinha casa na Comporta… (Se calhar até tinha, mas seria sem porta, pensou hilária.) O que dizer? Não podia mentir, mas a verdade magoava incomensuravelmente. Só conseguia digerir tudo isto com algum consumo de vodka, que já dormia à sua cabeceira, para alguma eventualidade noturna e não só. Por vezes, vezes boas, sonhava que Graça tinha sido adotada e que acabaria por descobrir um pai-tio-avô-padrasto, cheio de dinheiro e apelidos apresentáveis e tudo se recomporia no mundo sagrado da betolândia. Depois, acordava e vinham-lhe à cabeça imagens de familiares com buço e empréstimos bancários mixurucas. Bendito vodka.

É sabido que o filho mais velho, e único, Bernardo Bernardo Foxtrot, não primava pela inteligência, à conta de consanguinidades várias, não muitas, mas desastrosas, e ADN pouco expedito e criativo. Uma bagatela tendo em conta o preço que teriam de pagar se não tivessem concordado em baixar o nível e qualidade dos exemplares da família. Era a pobreza garantida. Caso não tivessem amado dentro dos vários ramos familiares, a pobreza ter-se-ia instalado entre os Foxtrot há tempo suficiente para que hoje pudessem ser tão pobres quanto Graça. Teriam por esta altura tanto charme quanto o vira ou o malhão. Cruzes credo, nem é bom mencionar tal hipótese. Vencidos tantos desafios, e eis que BêBê, petit nom de Bernardo Bernardo, rebenta em casa esta verdadeira bomba de neutrões doméstica.

– Acalme-se, menina. Por vezes, para que tudo fique na mesma, algo tem de mudar, como é sabido. Quem sabe a ‘piquena’, sangue novo para variar, não nos traz coisas boas? Não gostaria de ter netos normais e espertos?

Assim tentara acalmá-la a sábia Vitória. Mesmo não entendendo tudo o que a criada dizia, Marianinha tinha achado fascinante e até sagaz aquilo que esta lhe dizia. Tinha-se rendido, em particular, à ideia de crianças inteligentes. Era uma variante bem-vinda, não havia dúvidas. Seriam uma raridade, esperava que não fossem vítimas de bullying por parte da restante família… Bom, cada coisa a seu tempo. Para já, havia que preparar o jantar para conhecer a criatura. Perdão, Graça. Pelo menos, o nome não era a maior das lástimas. Um simples diminutivo e já soava melhor. Começaria já a chamar-lhe Gracinha, para que não tivesse hipótese de torcer o nariz, mais tarde, a estas demonstrações de superioridade.

Claro que, quando, às 18 horas, surgiu na sala, já Vitória tinha tudo preparado: uma ementa de cinco pratos, mesa posta com baixela de prata, serviço de porcelana, copos de cristal, toalhas de linho selvagem bordado à mão e até já dois cocktails prontos para que Marianinha repousasse depois do esforço de se vestir. Percebeu pelo olhar aprovador de Vitória que estava deslumbrante, à altura de arrasar qualquer pobre que lhe pusesse os olhos em cima, ou mesmo em baixo, já que La Terla e cremes de caviar vestiam-na na intimidade. Marianinha congratulava-se com esse lado perverso de Vitória. Ela própria era do mais pobre, mas chamava a si o pedigree da família que servia, para se superiorizar em relação ao restante universo. Era a divertida e macabra hierarquia de downstairs, da criadagem. Por vezes, nem tinha de se preocupar em estar sóbria ou fazer avaliações. Bastava que no dia seguinte perguntasse a Vitória o que achava de fulano, o que pensava do novo romance de beltrano… Vitória era letal e incisiva. Nada lhe escapava. E não era completamente burra, verdade seja dita.

Cansada, com todos os preparativos, nos quais, na realidade não tinha participado, Marianinha esparrama-se no sofá. Não tinha ainda terminado a primeira bebida, quando BêBê surge com Graça Silva a tiracolo. A cara e jeito de pobre da garota fazem-na tomar de um trago o resto do cocktail. Tentou sorrir, mas estava em choque. Tudo piorou quando levou com dois beijos, um de cada lado da cara, e a ‘piquena’ se lhe dirige nestes termos:

– Olá sogrinha! Muito prazer em conhecê-la.

Quase perdeu os sentidos, estava frente a frente com uma filha do proletariado que não era sua criada. Nunca tal havia acontecido. ‘Sogrinha’? Pediu licença e refugiou-se na copa. Precisava de descomprimir. Vitória, que a tudo assistira, estava de igual forma com os nervos em franja, e todos sabem como a franja passou de moda.

– Menina, temos de agir. É pior do que eu pensava. Não há sangue novo nem netos espertos que justifiquem tamanho sacrifício. A menina viu o tecido rasca do vestido? Não chega, sequer, a terylene. A cor do cabelo? As unhas de gel com bandeiras de vários países pintadas? O perfume rasca? A carteira de plástico disfarçado de pele sintética?

Vitória chorava baixinho. Mas logo se recompôs. Bebeu vodka diretamente da garrafa, para espanto de Marianinha, que logo a imitou, e disse sem interrupções:

– Vamos livrar-nos dela, hoje mesmo, menina. Vou colocar tantos talheres, copos e pratos na mesa que a miúda não vai saber o que fazer com tudo aquilo. Mais. Vou substituir um dos pratos, servir marisco, ver como ela se desenrasca e deixar claro ao menino BêBê que não pode trazer ‘aquilo’ cá para casa.

Marianinha ficou mais tranquila. Nada como uma pobre para combater outra pobre. Que alívio. Não teria de se preocupar mais com o assunto. Mas foi sol de pouca dura. Graça falava pelos cotovelos. Nada detinha aquela pestinha. Ficou a saber que… Custava-lhe dizer isto. Talvez apenas sussurrando: Graça era cabeleireira, a mãe era cabeleireira, a tia era cabeleireira, havia uma tia esteticista especializada em manicura e diplomada em gelinho, o avô pescador, o pai era um metalúrgico desempregado. Felizmente, a avó paterna era cartomante, sempre era giro e útil e dava para falar disso às amigas, todas pessoas crentes e de fé inabalável no além. O pior é que Marianinha não entendia metade do que a ‘piquena’ debitava, a uma velocidade que não era chique. Dizia que achava divertidas e muito originais as solas ‘vermelhas’ dos sapatos de Marianinha, que já tinha ido ver uma ‘vivenda’ com BêBê, o seu ‘chuchu’, e que apenas não tinha gostado das ‘sanitas’, usava diminutivos ao desbarato: vinhinho, queijinho, gostinho, gatinho, fresquinho…

Vitória, de olhos esbugalhados e dentes cerrados, temia que não conseguisse parar aquela locomotiva de pobreza, que se preparava para cilindrar a sua família-bem. Marianinha, de boca aberta, e em total silêncio, questionava-se sobre se haveria vodka suficiente em casa… BêBê babava-se com toda e qualquer barbaridade que a ‘piquena’ debitava, de forma cada vez mais veloz, ou seria o cérebro de Marianinha que parava? Sentia-se a cinco segundos do intervalo de um reality show, que teimava em não acabar. Nada parecia salvar a situação, já nem sequer a ideia de netos saudáveis. Que mal havia em crianças retardadas pela consanguinidade? Desde que louras e de olhos azuis, claro! Coisa que dali não viria. A avaliar pelos traços rústicos de Graça, deveriam nascer já com buço e a berrar e o mais certo seria que vomitassem ao invés de bolsar… Não havia vodka para tanto, seguramente, aterrorizava-se Marianinha.

Vitória percebeu que tinha de tomar outras medidas, mais drásticas e óbvias, quando a criatura se queixou de que a sopa estava fria. Era uma vichyssoise, por amor da santa! Debaixo de que pedra tinha a criatura saído? Vitória, já naquele tom roxo que antecede uma explosão humana, não se coíbe e repreende a ‘piquena’:

– Olhe a etiqueta, menina Graça! Olhe a etiqueta, que isto não é uma tasca e exige-se bom tom.

Para espanto geral, Graça leva a mão à parte de trás do vestido e, entre um meio arroto indisfarçável, garante:

– Juro que cortei todas as etiquetas, não me digam que me escapou alguma! Vou já à casa de banho e aproveito para mijar, estou aflitinha.

As lágrimas assomaram os olhos das duas mulheres. Ama e criada, ainda mais unidas naquela desgraça.

De facto, isto de ter filhos com défice intelectual nem sempre compensa, lamentava-se Marianinha, já completamente embriagada. Tinha de avisar o seu bebé. Podia divertir-se a brincar aos pobrezinhos sempre que quisesse, mas, por amor de Deus, jamais assinasse qualquer papel que aquele exemplar exacerbado de pobreza lhe colocasse à frente. Tinha também de lhe falar sobre preservativos, achava que nunca o tinha esclarecido muito bem acerca do assunto contraceção. Tantas preocupações. E não obstante o número ridículo de talheres e obstáculos, a miúda simplesmente agarra numa colher, a mesma que utilizará durante toda a refeição, e deglute tudo à colherada, marisco incluído.

Vitória preferia matar a garota. Ácido sulfúrico, repetia. Marianinha acalmou-a. Tinham de ser inteligentes, que com vinagre não se apanham moscas, como a própria Vitória passava a vida a repetir.

– Duas mulheres estupendas como nós, somos mais do que suficientes para derrubar aquela habitante de bairro social. Concentre-se Vitória. Preciso de si no seu melhor, vá lá. Recomponha-se e pense, que eu, neste estado de profunda incredulidade, não consigo raciocinar. Já está? Já pensou?

Mas Vitória não encontrava, a seu ver, um plano que suplantasse a eliminação cabal de Graça. Marianinha percebeu que tinha de lhe dar um tempo. Compreendia que dificilmente Vitória esqueceria uma das tiradas da ‘piquena’, quando esta, ao serem servidos crepes Suzette, dispara em todas as direções daquele reino:

– Que giro! Também tenho uma prima Suzete, e vão desculpar-me, mas ninguém iguala os rojões que ela faz. Também lhe chamamos rojões Susete.

Ninguém esquece uma coisa destas. Nem com álcool.

De regresso à sala, Marianinha, já demasiado ébria para usar de filtros, puxa dos galões de décadas, quase séculos de pertença à classe social dos tios-sem-sobrinhos, e avança que nem soda cáustica sobre a ‘piquena’.

– Vou passar a chamar-lhe Sem-Graça, que me diz, minha querida? Tem algum plano para eliminar essa borbulhagem da cara? Com tanto expert esteticién em casa e não há uma alma caridosa que lhe esfolie esse ar rasca?

Acontece que Marianinha estava demasiado embriagada para perceber que já era o dia seguinte, que quem estava junto de si eram as amigas com quem tinha combinado almoço para o dia seguinte e que o plano para humilhar Gracinha sem graça talvez não tivesse ocorrido como imaginara: com a miúda a desfazer-se em lágrimas e a jurar nunca mais voltar. Ao aperceber-se do engano, lá avança para cumprimentar as amigas e lamentar-se, quando Catuxa, Giribiticha e Xiribitó gritam de horror ao perceber que Marianinha estava a distribuir dois beijos a cada uma delas. Era o fim da linha.

– Queridas! Mil vezes perdão, mas é que esteve aqui uma pobre e, depois de aviar beijos aos pares, embalei nesta coisa hedionda dos dois ósculos e… Desculpem, não estou em mim.

Depois de ouvirem o relato, de quase sentirem o cheiro a terylene e outras fibras sintéticas, do emprego do verbo mijar e de perceberem que a garota vinha daquele universo onde existem sanitas e coisas vermelhas, todas se abraçaram a Marianinha numa clara e sincera demonstração de solidariedade. Mandaram-na, de seguida, tomar banho, que nestas coisas de contágio, mais vale prevenir. Entre todas, Vitória incluída, decidiram que a batalha seria ganha no campo da inimiga. Ela teria de escandalizar a equipa adversária, da mesma forma que Graça a tinha horrorizado. Tinha de aterrar na família Silva que nem asteroide em rota de colisão com o mau gosto, que nem bomba de hidrogénio, e frisavam ‘génio’. Melhor, espalhar napalm, para que nem descendência fosse possível.

– Mas como?, questionava-as Marianinha de cabeça perdida.

– Querida. Basta seres tu mesma. Nada de álcool, já percebemos que a bebida enfraquece a tua tiazice.

O convite para conhecer os Silvas, lá surgiu, quase forçado por Vitória, que disse à criaturinha que tinha de saldar a amabilidade e a enorme honra de ter sido convidada para se refastelar junto daquela família-bem e cheirar os seus perfumes raros e exclusivos.

Parece que os pobres não jantam. Preferem reuniões matutinas, para refeições a que dão o nome de almoço e em torno das quais se juntam logo por volta do meio-dia. Meio-dia da manhã e não da noite. Um horror! Marianinha optou por não se deitar. Mais valia uma direta do que dormir quase nada.

A ‘vivenda’, morada atual do puro kitsch, na qual se acotovelavam mulheres gordas sem cintura a cheirar a fritos, naperons, homens de pele curtida e sem dentes em número suficiente para povoar uma aldeia do interior, retratos de pessoas que não são da família, santas e santinhos em peanhas, milhares de gatos de porcelana barata, todos os vasos e vasarecos do mundo, e todo um universo paralelo de forras de plástico para tudo o que era peça de mobiliário, em particular, assentos, era ME-DO-NHA. Um pardieiro de matarruanos. Elas cozinhavam como se não houvesse minuto seguinte e eles bebiam como se o mundo já tivesse acabado. Juntou-se a eles, claro, sempre dispunha de algum álcool. Até era divertido. Eram uns shots de cerveja, servidos em garrafas ‘piquenas’ de cor castanha. Bem sabia que não devia alcoolizar-se, mas aquilo era coisa de meninas. Aguentava bem dez coisitas daquelas, sem que lhe fizessem mossa. Tapou o nariz durante uns dez segundos, para se abstrair do cheiro do ‘comer’ – que era a forma como aquelas pessoas se referirem à comida –, e avançou com o seu plano buldózer, para arrasar aqueles projetos de pessoas civilizadas.

Foi brutal. Foi arrasador. Foi… em vão. Ninguém entendia o que Marianinha dizia. Desconheciam o conceito de ironia, achavam-na exótica, uma espécie de aberração. Quando percebeu que já não se dignavam ouvir aquilo que dizia, e prestes a rebentar de cólera, principalmente depois de perceber que alguns dos comensais já se empanturravam à mesa, onde se aviava quem primeiro chegava e onde tudo se comia à mão ou com recurso a uma simples colher, vira-se para o pai desempregado da criatura Sem-Graça, e avança, num português tão básico que achou que todos perceberiam:

– Porque não arranca esse dente da frente? Ter apenas um dente é por demais decadDENTE (que divertido!) até para uma família de vira-latas como a sua, não lhe parece?

O desdentado ri, escancarando o buraco preto da boca, de onde emergia um único e amarelado exemplar de marfim, ou tártato, não dava para perceber com exatidão. As mulheres juntam-se a Marianinha, dizendo que estava coberta de razão, que até já lho tinham tentado tirar com martelo e escopo, enquanto ele dormia depois de uma monumental bebedeira. Que era um desmazelado, que tinha uma dentadura linda, mas a qual não usava ia para 12 anos… Marianinha sentiu-se a perder os sentidos. Dirigiu-se ao lava-louça e bebeu água de um copo que estava na bancada. Nisto, toda aquela família Felliniana desata a rir. Que Marianinha era demais. Que era uma das suas… Não é que ela tinha bebido a água com lixívia onde guardavam precisamente a dentadura do patriarca? Marianinha gelou. Bolsou. Rezou um terço e anunciou a BêBê que tinha de a levar ao hospital para uma lavagem ao estômago completa. Tinha de alinhar os chakras e fugir para longe daquela gente. A sua saúde estava em risco. Mas BêBê não entende a gravidade e dedica-se, com algumas das matriarca e gaiatas da família, a guardar os restos do almoço em tupperwears, onde se misturam as sobras dos pezinhos de coentrada com o que restava do flã de pacote. Tudo nos mesmíssimos recipientes. E quando acabaram as marmitas, viraram-se para os sacos de plástico. Marianinha lá perdeu os sentidos. Os pobres apreciam uma fraqueza e perdem-se de encanto com a pobrezinha, que é débil de saúde. Fazem imensas perguntas, para saber se é contagioso ou não. Marianinha acorda, mas sem estar apta para guiar. Pergunta a BêBê se consegue levar o carro. Este responde:

– Claro que sim, o mais possível. Sempre que ando sozinho, geralmente sou eu que conduzo, mãe!

 

Foi aí que o caldo dos pobres se entornou. Uma mãe fisicamente frágil e mentalmente instável, aceitavam. Era até chique, segundo lhes parecia. Era coisa de gente moderna e ‘sofistricada’. Aceitavam até que tivesse distúrbios alimentares, já que bem perceberam que nem sequer tinha provado os pés de porco e que até o pouco que vira os outros comer tinha-o vomitado de seguida. Tudo isso era quase folclórico, numa família cheia de idiossincrasias e disfuncionalidades como era a de Graça. Agora, um pretendente às saudáveis carnes de Graça com limitações ‘cogonotivas’, isso nunca!!!!! Como seriam os netos? Uns lingrinhas sem cérebro? Jumentos? Por amor de Deus, eles eram Silva. Não podiam permitir isso. Mais valia que Graça se casasse com o Zé Manel, um moço muito jeitoso que tinha oficina ali perto e que sempre tinha gostado da miúda. Era um homem garboso, com um físico que vendia saúde e tinha jeito para o negócio das baterias. Graça aceitou as reservas da família, já que a alusão ao corpo do mecânico sempre a destabilizara um pouco. Mas gostava tanto do Bernardo Bernardo. Ele simplesmente fazia tudo aquilo que ela mais queria quando ela queria. Bastava pedir. Porém, enquanto amante… Também não era bom em trocos, nunca sabia quanto era muito ou quanto era pouco. Também falava com um português estranho, tal e qual como o da mãe dele… Se calhar, havia ali coisa ‘genérica’, daquelas que andam de gestação em gestação, tal como o metro.

Não valia a pena perder mais tempo. À queima-roupa, diz ao futuro ex-noivo:

– Chuchu, não te quero ver mais. Vamos pôr ponto final no namoro, ‘tá?

– Claro, não me vais ver porque vou levar a mãe ao hospital. Mas será apenas uma reticência.

– Não. É o fim, fim. Já não namoramos. Acho que já não gosto de ti, percebes?

– Perfeitamente, Graça, querida. Acho o máximo. Mas mantém-se o casamento, certo?

Moral da história:

Os extremos são sempre uma miséria. Mantenha-se no centro da linha, como o comboio. Caso contrário, o descarrilamento é inevitável. Ainda assim, hilariante.

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