Gostava de vos falar dela. Desta mulher, quero eu dizer. Tenho o peito cheio dela e de coisas dela, e de como lhe aconteceram, e de como as relata, e da cor que lhes dá, e do vocabulário que emprega para as contar com vivacidade e humor. Tenho a cabeça cheia de histórias inacreditáveis que lhe aconteceram, ou que sucederam a gente que conhece de perto, ou que apenas inventa para manter a atenção da sua audiência. Sim, claro, ela tem sempre uma fiel e atenta audiência. Quem se atreveria a perder uma das suas aventuras, uma das suas perspetivas alucinantes sobre episódios do quotidiano? Um dia, uma rotineira ida rápida ao supermercado, à hora de almoço, onde tinha ido apenas para comprar uma sopa ou um folhado com que entreter o estômago, sem interromper o muito que tinha para fazer no escritório – “Vou num pé e venho no outro”, tinha dito a si própria, para convencer as mãos, que mesmo depois de já se ter levantado da secretária, ainda continuava a teclar no computador, a acompanhá-la, que isto de não andar com mãos não é prático –, acabou num desacato e, mais tarde, numa espécie de part-time em versão voluntariado.

By Vivian Maier

Tudo porque tinha ficado absolutamente indignada com um erro ortográfico. Na secção de cozinha, uma das prateleiras de copos anunciava um preço fantástico para um modelo de: ‘Calçe’. Sonoramente mais próximo de cale-se, aquela palavra parecia dizer-lhe para se deixar estar sossegada no seu canto e seguir caminho, até às arcas da comida pré-preparada. Mas aquilo era demais para si. Aquilo era um insulto. Com a pressa com que estava, caso tivesse antes sido assaltada pela excitação de um tarado sexual, o mais certo era nem lhe dedicar dois segundos. Mas assaltada e enxovalhada por um letreiro com um desgraçado mau português que somava, no mínimo, dois erros ortográficos… Não aguentou. Lançou um grito estridente que apregoava a urgência de um supervisor de corredor, ou de bancada, ou de línguas, ou apenas alguém com a farda do estabelecimento. Sufocava. Parecia asmática. Não tardou a ficar rodeada de pessoas, funcionários e não funcionários, que julgavam estar a salvar a vida àquela mulher. Logo que recuperou o fôlego, e satisfeita, por ter sido ouvida, anuncia que precisa de falar com o supervisor dos supervisores. Não havia bem aquela função, mas havia um diretor de loja, que não se encontrava, talvez um vice, ou… Um corajoso, daqueles empregados que vestem o avental e dão a cara pelos estabelecimentos que lhes pagam o pão da manhã, lá avançou, achando que aquilo se resolveria com um copo de água com açúcar. Coitado. Ele ainda não sabia, mas não tardaria a aprender. Na presença de um ouvido atento que se dedicava a ouvi-la, passou da fúria ao tom acusatório-paternalista, que é aquele que dá uma no cravo e outra na ferradura.

– Vocês não serão quem tem a culpa, essa é de quem prefere pagar mal, quantias abaixo do ordenado mínimo, para explorar, bem para lá do previsto ou suportável, a funcionários a quem a vida deveria ter dado tempo de acabar a escolaridade e a quem os pais poderiam, ainda que com sacrifício, ter comprado um livro, um dia. Importa-se de ler o que está neste papel promocional?

O homem tentava manter a boca fechada, em sinal de autocontrolo, mas estava sem domínio sobre as pálpebras, que abriam tudo aquilo que a boca não podia, parecendo que os cantos dos olhos acabariam por ter de se rasgar se o movimento basculante não fosse interrompido a tempo. Parecia ainda que tentava compreender, mas era óbvio que não entendia. Começou a denunciar um tique nojento, que consistia em deitar a língua de fora, numa espécie de lavagem ou apenas hidratação rápida de lábios, a qual recolhida com a rapidez de um camaleão. Um nojo, aos olhos dela. Aquilo começou a dispersar a sua atenção, mas ela retomou o fio à meada.

– Leia-me, por favor, o que aqui está escrito.

A medo, desconcertado, achando que aquilo deveria querer dizer algo mais que também não entendia, o homem obedeceu ao terror e leu:

– Cálce.

Um homem, que viria mais tarde a identificar-se como um agente de uma qualquer autoridade à paisana, acabado de chegar ao agrupamento e achando que aquele funcionário mandava calar uma senhora, foi-se metendo na conversa. Ela aproveitou para pedir ao gentil homem, que saíra em sua defesa, que lesse o que estava no papel.

– Ah, agora compreendo, desculpe, achei que estava a mandar calar a senhora e não a falar de ‘cálces’ de conhaque.

Ainda lhe apeteceu estender o exercício de leitura a mais algumas pessoas, mas achou que já bastava de horror. Acossada por um ataque de riso, correu à procura de uma sopa, enquanto o grupo se condoía com a loucura daquela mulher “tão jovem e tão bonita”. “Era uma pena, de facto.” Quando se preparava para pagar, o supervisor da loja, que tudo presenciara de perto, e que já devia ter lido uma ou outra coisa na vida, desculpou-se, assumiu culpa e responsabilidade, e garantiu que estariam mais atentos de ali em diante. Para despachar o assunto e porque não suportava a ideia de tropeçar noutro erro ortográfico, o único crime capital na sua visão do mundo, ofereceu-se, sem grande hipótese de recusa para o homem, que achou que tudo era melhor do que outra cena ou o livro de reclamações, mais ainda no seu turno, para rever TODOS os letreiros manuscritos da loja. Ainda hoje o faz, via Skype.

Tudo nela era extraordinário. No início, achei que seria uma daquelas pessoas-ímã, especializadas em atrair acontecimentos específicos. Há pessoas que atraem desgraças e tudo parece acontecer-lhes, outras são umas cabras sortudas que parecem receber dicas preciosas sobre onde estar e a que horas e tudo o que é bom lhes cai no colo, sem sequer o solicitarem. Há depois os hipocondríacos, felizes por acolher qualquer vírus ou adotar bactérias, reais ou imaginárias… Depois, simplifiquei, e rotulei-a apenas de mentirosa compulsiva. O tipo de pessoa que necessita de atenção, por falta de colo paterno, dirão os mais freudianos, ou apenas gosta de conversa e vai inventado para que nunca falte assunto. Não tardei a perceber que não havia mente criativa capaz de inventar tanto disparate, nem manter aquele registo entre o surreal e o hilariante.

Gostava de vos falar dela, mas receio não conseguir reproduzir as suas saídas à noite, por exemplo. Eram sempre às quartas-feiras. Dia em que os miúdos ficavam em casa do pai. Dia de blazers de dupla face, que mandava fazer de propósito, já que costumava ir direta para o trabalho e não gostava que os chefes percebessem que usava a mesma roupa do dia anterior. O cheiro a bas-fonds e fim de festa tirava-o com champô seco e água de colónia.

– Jamais perfume, que tudo piora, menos ainda desodorizante. O segredo está numa ligeira colónia de aroma fresco.

As coisas que aprendi com ela e que jamais me servirão de préstimo, caramba! Nessas noites, destinadas exclusivamente a encontrar sexo e, com ele, talvez, algum amor, tudo podia acontecer, pelo que tudo acontecia, de facto. Certa vez acabara por levar para casa um sem-abrigo, por este ter um cão e ela não suportar a ideia do bichinho dormir na rua ao relento naquela gélida noite de janeiro. Claro que conhecera o sem-abrigo por ela própria se ter deixado dormir no papelão do homem e do cão, depois de ter perdido os sentidos no passeio onde ambos moravam, após profícuo vómito, que ainda era detetável nos sapatos dela, por ter servido de fixador a purpurinas de uma festa de que não se recorda bem. Ainda manteve o homem em casa durante uma semana, mas as férias de carnaval obrigaram-na a ter de o tirar de casa, onde o homem e o cão eram figuras clandestinas, pois não queria que os filhos o vissem e fossem contar ao pai, que ainda lhe poderia tirar a guarda dos pirralhos. Comprou-lhe uma tenda de campismo e pagou-lhe o aluguer durante um ano num parque da cidade.

– Onde quer que eu vá ganhar a vida, neste ermo?

– Agora, desenrasca-se que é o que todos fazemos, não é? Já tem casa, cama e água para tomar banho. Toca a esgaravatar, que a vida é apenas isso, esgaravatar. Vamos embora.

Ainda visita o homem, agora já empregado e com casa. Parece que é bem giro, afinal, e que têm sexo ocasionalmente.

By Vivian Maier

Gostava de vos falar de como, apesar destes grandes gestos de solidariedade, capazes de transformar do avesso os azares da vida de um homem, ou antes de um cão – era sempre mais sensível aos animais –, de como era incapaz de prestar atenção aos outros. De como não sabia sequer ouvir. De lhes prestar o mínimo de atenção. Como se esse fosse um exclusivo seu: o de falar e de se fazer escutar. Era simplesmente incapaz de prestar atenção a algo que saísse da sua esfera de interesses pessoais, mesmo quando os outros se dispunham a falar, ou principalmente quando tal acontecia. Desabafos e confidências, nem pensar, que não estava para isso, o que era, desde logo, óbvio, havendo muito poucos que ousassem tal coisa, exceto se ainda iam às cegas, achando que quem enchia tanto os outros com coisas suas, esperasse o mesmo em troca. Como estavam enganados! Ela não trocava mercadoria. Ela livrava-se apenas da sua e isso era quanto lhe bastava. Largava lastro, não comprava sucata. Agia como se estivesse perante a maior afronta. Pensariam os outros que tinha tempo? Disponibilidade? Vontade, sequer, de ouvir as suas coisinhas e problemazinhos e historietas do dia a dia? Todos têm dia a dia, não há necessidade de levar com o dos outros. É certo que ninguém tinha a sua surreal capacidade de entreter. De manter a audiência em suspense em busca de mais e mais. Mas nem mesmo pessoas com semelhante e apurada veia para contar captavam o seu ouvido. Este não ouvia baixas frequências, nem altas, nem medianas. Estava programado apenas para o seu tom de voz, as suas narrações, a sua linguagem. Tudo o resto era uma planície de silêncio à sua audição apurada e seletiva. Logo que uma boca se abria, decidida a participar naquilo que achava ser uma conversa, ela fazia as malas, virava costas e partia para bem longe, ou apenas falava por cima, repetindo as mesmíssimas coisas que tinha acabado de dizer, como se fosse louca ou desmemoriada. Seria? Podia apenas ser sinal de que já contara a mesma história em tantos e tantos círculos, que poderia já ter perdido o fio à meada e achar que estava a ser inédita para aquele agrupamento. Tudo sem a menor cerimónia ou delicadeza. Sem se preocupar com aquilo que os outros pudessem ficar a pensar. Não era bem isso. Era antes, não conseguir perceber que os outros poderiam pensar dela coisas que não lhe ocorriam, a ela, o centro dos centros, a oradora por excelência. Por vezes, parecia um caso clínico. Uma patologia. Uma incompetência social. Falta de ferramentas adequadas para todas as situações. Sim, julgo que é mais isso. Gostava de vos conseguir explicar tudo isto melhor, mas eu não sou ela.

Gostava de vos falar do à-vontade com que descrevia a sua coleção de dildos, de como achava que todos os homens apreciam estimulação perianal e o dizia alto e bom som, sem se incomodar com quem ouvia. De como tinha uma teoria rebuscada e (pseudo)erudita sobre qualquer assunto, bem como explicava tudo e mais outro tanto, com teorias sexuais. Na verdade, agora que penso nisso, ela falava imenso de sexo. Seria por ter muito ou pouco? Pode não ter a ver com isso e ser apenas uma forma de escandalizar ou reter atenção. Por vezes, olho-a e acho-a enigmática no seu tipo de loucura. É uma espécie unipessoal, que até hoje só conheci nela e que não reconheço em ninguém mais. Nunca é exatamente do mesmo tipo ou com a mesma intensidade…

Gostava de vos falar da forma como era ordinária e vulgar, sem nunca o ser verdadeiramente. Sem jamais utilizar um palavrão. Era até divertida a forma como contava a maior escandaleira pornográfica, com detalhes descritivos, utilizando o mais sofisticado vocabulário, incluindo termos anatómicos que raramente saem dos compêndios médicos. O modo como podia tornar banal e educado o episódio mais sórdido e miserável, de sexo em grupo de gente promíscua, a que tinha assistido por engano – diz ela, claro – numa festa pós-concerto muito alternativa. Saiu ‘ilesa’ do aperto, até porque não gosta de multidões, mostrando-se muito aberta e descontraída e metendo a mão em tudo quanto era braguilha, enquanto se desculpava a cada instante de maior aflição, de uma cólica infernal. Acabou por fugir, graças à providencial diarreia, munida apenas de botas, soutien e a chave do carro. Era quanto bastava. Foi pena ter perdido neste desvario um bom casaco de face dupla, lamentava.

Gostava de vos conseguir descrever a sua capacidade inimitável para perder tempo e fazer os outros perdê-lo, também e muito! Demasiado. Enleando conversas atrás de conversas, não deixando ninguém falar, o que impedia as pessoas de se puderem desculpar e sair dali a correr, como lhes apetecia. Sim, ela falava muito. Tinha piada, como se percebe, mas era demasiado intensa com o seu eu e as suas coisas e um intrincado de histórias que nunca mais acabava. Cada uma mais estapafúrdia, ao ponto de já não as distinguirmos ou nelas já nem acreditarmos. Cansava-nos. Todos gostamos de participar numa conversa, certo? Monólogos vamos vê-los ao Teatro uma vez por ano, que mais do que isso também aborrece. Mas ela precisava de palco, de atenção, de luzes, palmas e risos. Vivia num constante stand-up qualquer coisa. Por vezes, naquilo que entendo ser desespero por mais uns minutos de plateia, chegava a ser indiscreta, contando intimidades e coisas de família em ambientes pouco propícios. Entendia sempre que tinha de ciceronear qualquer conversa, mesmo que não a tivesse iniciado, mesmo que num grupo que mal conhecia… Por vezes, era embaraçoso. Apetecia avisá-la. Mas ela lá se safava, com alguma graça, ou despropósito e como não deixava de ser uma louca, tudo era facilmente encaixável. Mesmo as mais bizarras idiossincrasias, escatologias e bizarrias. Seria nossa a culpa? A das pessoas mais educadas e introvertidas, que continuávamos a ouvi-la, mesmo quando já não nos apetecia assim tanto e o sorriso falso já nos provocava dores no maxilar, e os pés já se dirigiam para a saída mais próxima? Seria dela, que não tinha noção de quando parar e de quando estava a martirizar o público? Um pouco de tudo isto, seguramente.

Gostava de vos falar dela, mas ela não existe. Vou-a inventando enquanto escrevo e tenho pena disso. Que ela não exista. Que o seu coração não pulse fora dos limites destas linhas. Que ela não seja real. Será mesmo? Ainda assim, como eu gostava de vos falar dela. Gostava também que gostassem dela como eu. Que lhe achassem piada, para que pudesse voltar a contar-vos mais algum episódio, ou apenas continuar a falar-vos dela, de vez em quando.

Partilhar