A nossa mãe passou pela vida como um cometa flamejante, abrasador e abrasivo. Uma mente escaldante, raciocínio cáustico e sem freios, adornado de uma linguagem crua, cirurgicamente certeira naqueles alvos emocionais que magoam mais do que dolorosas perdas afetivas, mais do que o amor que não aconteceu ou o gelado que não se provou. Mais do que o fio de uma navalha em carne distraída. Uma locomotiva sem freio, direção ou destino. Apenas a ânsia de magoar para não sofrer primeiro. Apenas o desejo de mostrar uma doentia inteligência, nunca aferida em sede de QI. Seria inteligente, de facto, como ela acreditava e apregoava, ou apenas velhaca? Um ser superior e à parte da molecularidade humana, ou apenas uma reles sádica? A sua ruindade destruía cidades, intoxicava planetas e torna infértil o mais exuberante delta.
Tal como uma maestrina, bastava-lhe erguer a batuta para mover fios invisíveis, manietar sentimentos e deitar por terra o mais inflamado, sólido e fantasioso castelo no ar. Comandava mares e oceanos, decidia marés e fases da lua, conduzia alcateias na escuridão e feria como bactéria resistente. Os antibióticos que inventávamos na ofegante defensiva surtiam pouco efeito, porque logo a nossa mãe se tornava imune à droga. Logo incorporava o agente, manipulando-o a seu jeito como o faria um entendido farmacêutico. Galgava passos na absorção de informação como sapiente alienígena. Era fogo e água, tempestade e relâmpago. Sangue a bulir com os nossos nervos. A recordar-nos, a cada instante, a sua brutalidade fatal. A sua monstruosidade e a nossa pequenez. O seu domínio sobre o mundo. Não o mundo enquanto universo, apenas o nosso mundo enquanto família. Tudo feito à sua imagem e vontade, sem espaço extra para o resto, e os restos éramos nós, despejados da berma do prato, no final do seu gorduroso repasto. A família. Um pai que habitava apenas na sua cabeça para não ter de pensar no que ficava de fora dela. Quatro filhos carentes, amedrontados e traumatizados, achando que não havia espaço no espaço nem tempo no tempo que nos contemplasse, nem onde coubessem as nossas vozes, vontades ou necessidades. Tudo tão exíguo para lá da exuberância da nossa mãe que, sem disso nos darmos conta, nem ousávamos pensar. Apenas obedecíamos. Apenas cumprimos os loucos caprichos de uma mulher que todos tomava como escravos. De todos fazia gato-sapato.
O meu pai, que era artista plástico, transformou-o ela em tristeza. Apenas isso. Nem artista e já nem plástico, apenas um homem triste. Triste e alcoólico. Claro que há coisas que naturalmente se emparelham como o fazem certos vinhos que se harmonizam com a comida. Apenas, aqui, se reforçava o desgosto e não o gosto. Começou por decidir os marchants da sua predileção, que nada entendiam do percurso estético em que o meu pai definia caminhos, pioneirismo e coisas nunca vistas. Claro que estas demoram a fazer caminho no mercado e isso não interessava à luxuosa estroinice macaca da nossa mãe. Se não dá lucro é porque não fala às almas contemporâneas, logo, não interessa, que isto de reconhecimento e honras póstumas não compra carros desportivos com que manobrar outros assuntos, incluindo do foro sexual, outra área que lhe era muito querida. Os marchants chegavam com alterações e edições abruptas na obra, pincelando ideias, conjeturando caminhos e oferecendo encomendas, caso aquilo tudo mudasse um pouco. Talvez mais azul, talvez rostos mais felizes, umas linhas mais harmoniosas, composições que se ajustavam à decoração das casas e não à alma do meu pai artista. O meu pai registou, ofendeu-se e grasnou, mas a falta de dinheiro numa casa de quatro crianças acabou por forçar algumas cedências, mas só até estar recomposto, com mais um ano de escolas pagas ou mais um inverno de aquecimento… Não houve caminho de volta ao único caminho que criara do nada, onde tudo era novo e brilhante, como raio de sol refletido em diamante lapidado. Veio a opacidade, ferida já pelo fundo de garrafas com diferentes conteúdos desde que anestesiantes. Um novo caleidoscópio de deformação permanente.
Depois de moldar o artista, a verdadeira criadora de mundos concretos, que a abstração não ficava bem com o seu guarda-roupa, a minha mãe tinha apenas pela frente quatro criaturinhas enfadonhas e sempre carentes de qualquer coisa. Não éramos um verdadeiro projeto, apenas seres a quem exigia obediência cega, não obstante a sua total negligência e ausência, física e emocional. Não sei como o conseguiu fazer. O certo é que éramos marionetas nas suas experientes mãos nodosas. Repetíamos apenas os gestos e movimentos que ensaiava no ar, sem nunca nos tocar. Sem nunca nos tocar. Mas tocava-nos tão fundo!!!! Tocava-nos na mais sombria paisagem de nós mesmos. Em lugares e paisagens emocionais que desconhecíamos ter. Que preferíamos não ter ou, apenas, não ter descoberto.
Gabriel, o mais velho, assistiu ao maior degredo. Ninguém para o proteger. Ninguém para lhe tapar os olhos. Ninguém que lhe sussurrasse: ‘Vem antes para aqui. Não entres nesse quarto. A mãe está a dormir (com um dos muitos amantes) não vamos incomodá-la. Anda antes brincar à apanhada no jardim, ou lanchar, ou contar histórias’. Ninguém. Isso foi o que Gabriel fez por nós, até ganhar envergadura de asas, abrir a janela e voar. Sempre idolatrei a forma suave como se libertou: em voo. Como um pássaro. Quem o viu, diz que parecia ter nascido para voar. Leve. Flutuante. Destemido. No ar. Sem peso. Sem mágoa. Gabriel foi magia.
O Gil ainda agora se emociona quando fala desse salto de fé. Dessa aventura que não finda nunca mais. Desse voo eterno. Uma janela que dava para o mundo todo, escancarada a todas as possibilidades e aventuras. Uma janela de liberdade absoluta. Gil era o seu maior e mais fiel companheiro e guarda no peito a insuportavelmente pesada dor de nunca mais o ter visto. Gabriel nunca mais regressou. Nunca mais o vimos para lá das salas da nossa memória, nunca mais o avistámos fora das divisões do nosso amor. Um herói para todos os restantes três fedelhos, os quais sempre defendeu como foi capaz, enquanto se sentiu capaz e até que se sentiu incapaz.
Gonçalo, porém, lembrava, e bem, que a Mãe não era o único diabo do universo. Todas as aldeias, vilas, cidades, povoações e lugares do planeta acolhem de igual forma as boas e as más pessoas, havendo exemplares de cada uma delas em qualquer recanto. Mesmo dentro de cada um, habitam porções de maldade variáveis. Devemos estar atentos para que não ganhem terreno e venham lá de baixo, desde os pés até à cabeça. Seria trágico, repetia Gonçalo. Aprendi a saber o significado de trágico e foi dramático. Outra palavra que rima com a primeira até no significado e que muito me atormentou. Não tanto como a nossa Mãe, claro!
– Gustavo, um dia matamos a coisa ruim.
A primeira vez que Gil mo disse gelou-me o peito todo, deixando estalactites penduradas no meu coração. Tão fortes e aguçadas que me iam perfurando o pulmão. Uma condição física que ainda hoje me acomete e que requer toda a minha capacidade de aquecimento, com a qual limo as arestas mais perigosas, sempre que estas ganham dureza. Acima de tudo, temo ficar ruim. Não me posso permitir.
– Gil, não digas isso! – Solucei na altura e sempre que tal desejo despontava na boca de Gil.
– Gil, não digas isso. Não sejas como a mãe.
Uma observação simples, vinda de um pirralho de narinas dilatas pelo ranho, mas que sempre surtira efeito. Não tínhamos apenas medo da nossa mãe, nem tão-somente raiva dela. No ponto matriz de onde nascera toda a nossa vida e capacidade sensitiva e pensante, sentíamos todos uma furiosa vontade de não sermos como ela. Nunca! Não o permitiríamos e, quanto a isso, éramos polícias de nós mesmos e uns dos outros.
Gonçalo, Gustavo e Gabriel desbaratavam brigas na escola e por onde calhava, num primeiro ímpeto replicativo da agressividade gratuita da mãe, presenciada diariamente, mas nunca gratuitamente. Defendiam sempre os mais pequenos e fracos, dos maiores e mais brutos. Uma senda com e sem glória, que lhes permitia exorcizar o Diabo e exaurir a coisa ruim que todos temos cá dentro e que não podemos alimentar. A mim, nunca me deu para isso. Moldava tudo pela imaginação, com a ajuda de letras e pinturas. Era, e sou, talvez, a versão mínima do nosso pai, mas ainda sem o alcoolismo. Era, por isso, o mais desprezado pela nossa mãe. Pelos meus irmãos, sempre que era chamada a escola, por conta de mais um desacato ou linguagem desadequada, a minha mãe chegava a simular algo que poderia ser lido como orgulho pelo modo violento como os filhos se expressavam. Defendia-os de forma tão superior e aguerrida, com argumentos pedagógicos e pseudo-didáticos rebuscados em interpretações abusivas de velhas cartilhas, que os professores a temiam mais do que nós próprios. Deixou de ser convocada. Bilhetes e e-mails foram substitutos indevidos, que em nada impediam as suas idas sanitárias ao gabinete da direção, lançando granadas de mal-estar em todo o conselho diretivo, e aliviando provisoriamente a bílis. A nós, dava-nos imenso jeito, pois aliviava ligeiramente a maldade diária que nos dirigia, sob qualquer pretexto.
Lembro-me de passar a infância agarrado às suas pernas, numa tentativa vã de a impedir de sair de casa, ou de avançar indelicadezas sobre um dos outros Guês… Era sacudido o tempo inteiro, mas, tal como um cão maltratado pelo dono, eu lá regressava a um adas suas pernas. Não o fazia quando a minha mãe estava de saias curtas, pois conhecia de cor os castigos rancorosos de quando lhe rasgávamos meias de vidro ou uma saia de seda fina. Ainda que crianças, e nada entendidos em fibras naturais ou sintéticas, apurámos a capacidade de distinguir bons tecidos de tecidos que poderíamos agarrar, numa tentativa infantil de parecer que éramos acarinhados. Agarrar uma perna da mãe em substituição de um abraço que jamais receberíamos. Em busca de um safanão que pudéssemos disfarçar de beijo. Um quadro que só agora, que o olho à distância, ganha todas as nuances da profunda tristeza de representa.
Não sei porque estou com isto agora, mas sei que este agora é apenas mais uma conta na fiada infinita de contas diárias em que percebo que algo decorre dos abraços que não aconteceram e dos beijos que nunca se ofereceram. Trauma. Uma mãe filha da mãe deixa marcas para lá do concebível. Para lá do possível… Não devia estar com isto logo hoje, o dia em que Gil, finalmente, cumpriu a promessa. Gil libertou-nos a todos. Não se limitou a salvar-se, saltando no espaço, fugindo ou tornando-se num psicopata, aliviando a sua dor na dor dos outros. Mitigando os seus males infligindo-os aos demais. Não. Gil libertou-nos e cumpriu a promessa que sempre me fizera e que tanto atormentara os meus pesadelos de criança e os meus tormentos de adulto. Gil cumpriu o seu propósito. Gil matou a mãe. Finalmente. Cumpriu a sua promessa da forma mais sublime e poética, mas sem ocultar a fonte de dor que o inspirou. ‘Matei a minha Mãe’, uma obra aclamada pela família, o mais exigente público. Um dedo a pressionar a ferida que todos fingem não ver e que coloca a maior fonte de trauma no seio de todos aqueles que deveriam ter como missão primeira a proteção. Um ninho desfeito, graveto a graveto que humilhou a matriarca e libertou as suas crias. Um pai enlouquecido, uma mãe tirana, o amor em falta e quatro irmãos unidos por aquilo que nunca deveria unir: o ódio.
Uma glória tardia e pífia. Uma glória inglória do tipo que ninguém procura ou deseja. Um grito de desespero lançado ao vento que remoinhava nos nossos peitos infantis e carentes. As asas de Gustavo a levarem-nos dali para fora, nas palavras de Gil, na solidão de cada um, na fraternidade omnipresente de quatro homens órfãos.
A mãe passou pela vida como ave de rapina. Uma senda autofágica que se alimentava das entranhas das suas próprias crias. Alimento parco, tóxico e corrosivo. A nossa mãe passou pela vida como napalm em brasa, destruindo a única coisa que a poderia salvar da solidão podre onde encenava uma vida estranha. Uma mulher estranha que demos para adoção, sem remorso ou comiseração. Sem olhar para trás. Sem braços apertados em torno das suas pernas, sem receio das meias de vidro rasgadas. Nada. O seu ódio que já não chegava ao destino, a sua maldade que já não feria, pois não se fere o que já morreu. Não se despedaçam corações partidos. Nada. Os fios invisíveis com que nos feria foram cortados logo que se tornaram visíveis aos olhos da adolescência. Nada. Restava-nos nada. Mas nada é bem melhor do que pouco. Sobre nada podem voltar a crescer coisas novas e viçosas, já sobre o pouco, apenas poeiras desérticas e ervas raquíticas.
O Gil matou a mãe, como tantas vezes me prometera, quando isso ainda me assustava mais do que o olhar demoníaco da nossa mãe. Quando o meu coração pequenino recebia cada gesto de indiferença como amor puro e confundia a ausência com segurança. O mal vestindo-se de bem numa peça mal-amanhada e eu que ainda aplaudia.
Hoje aplaudi de pé o mais sábio dos nossos Guês. Aquele que melhor leu e definiu o guião dos nossos destinos.
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