Olhou para o telemóvel. Forçou um meio esgar, demasiado deficitário para chegar a sorriso. Já não via nítido àquela distância que sempre tinha sido a certa, a necessária. Tinha de afastar mais o ecrã para perceber os nomes na lista de contactos. Depois dos 40 toda a gente precisa de óculos. Depois, usá-los ou não, depende apenas do tamanho do braço. O seu era longo, estava com sorte. Por enquanto. Por enquanto. Helena Gustavo, era o nome que procurava. Imediatamente antes vinha o de Helena Giesta. Num impulso inusitado, numa pessoa que odiava tanto falar ao telefone que prestava uma verdadeira vassalagem ao e-mail, quase nem se reconhecendo, mas disso tirando um secreto prazer, liga para a Giesta e deixa a Gustavo em banho-maria. Não falava com Helena Giesta, ou apenas Giesta, como lhe chamavam na faculdade, desde… Já nem se recordava bem. Talvez há já dez anos. O último encontro teria sido talvez no jantar que alguns colegas tinham organizado quando completaram os primeiros dez anos sobre o fim do curso. Línguas, pois claro. Uma turma esmagadoramente feminina. Como se tinha arrependido de tal opção e, em parte, precisamente pelo facto de que o ambiente, quase exclusivamente feminino, se revelara demasiado castrador para si. Enfim, o telefone já cumpria o seu dever e ouvia o sinal de chamada.
– Helena?
– Sim.
– Helena, é a Teresa Noronha. Fomos colegas de curso…
– Teresa! Há quanto tempo.
– Bolas, põe tempo nisso. Estava para aqui a olhar para o telemóvel e dei de caras com o teu número e, olha, nem hesitei. Nada tenho para te dizer, mas apeteceu-me tanto voltar a falar contigo. Como estás, miúda?
– Ah, miúda, pois sim.
Riram com a triste constatação de que, há muito que não eram miúdas, mas aos olhos de ambas, eram ainda as cábulas da fila de trás. Mais Giesta do que Teresa. Teresa, após décadas de psicanálise, reconhecia em si a aluna marrona e bem preparada para qualquer eventualidade. Mais medrosa do que Giesta, também e, olhando com a distância que apenas a máquina do tempo disponibiliza, talvez até um pouco depressiva. Era, pelo menos, a mais pessimista do grupo. Giesta era isso mesmo, uma planta bravia, de peito aberto para a vida. Uma lufada de rosmaninho e sumo de limão em qualquer grupo. Teresa insistiu, queria mesmo perceber que estradas tinha Helena Giesta percorrido. Que caminhos a tinham desencaminhado, em que tipo de pessoa se tinha tornado aquela promessa de gente com tanto potencial. Tanto que acabou por arrematar para si a paixão secreta que Teresa acalentava desde o início do curso, pelo professor assistente de Românicas. Tinha mesmo de saber deles.
– Sim, mas conta-me tudo. Estás bem?
– Sim, sim. Ainda estou de cama, imagina tu, por causa de uma gripe brutal, destas novas estirpes. Achei que morria.
– Bolas! Assim tão mau? Nesses casos é atacar logo com antibióticos.
– Pois é, pois é, mas o caso agravou-se ainda mais precisamente porque não podia tomar antibióticos, por causa da gravidez.
– Gravidez? Parabéns…
– Não te entusiasmes, acabei por abortar. Sabes que com esta idade, o ideal teria sido mesmo abortar logo no início, mas como estive acamada seis meses, a gravidez só foi detetada, imagina tudo, demasiado tarde.
– Estiveste acamada? Mas que rol de notícias desagradáveis.
– Pois é, fiz um transplante de rim e acabei por ter um longo e penoso período de convalescença que exigia tantos cuidados que só me deixaram vir para casa há apenas umas semanas. Sem uma perna, acabaria por forçar demasiado o rim ’novo’ e a equipa médica não quis arriscar.
– Desculpa, não percebi. Quem é que não tem uma perna?
– Eu, Teresa. Nem sabes. Tive um acidente de moto, no ano passado, e fui arrastada, para aí uns cem metros, com a perna a ser esmigalhada, comprimida sob o peso da moto e o atrito do alcatrão. Desfez-me a perna esquerda quase na totalidade. Após meses de uma violência brutal, com operações sucessivas – já não estava a aguentar aquilo, juro-te –, olha, gangrena, perna fora. Nem tive tempo de fazer o luto, tão drogada que andava.
– Luto?
Teresa já temia fazer perguntas, mas achava estúpido não ficar a perceber tudo, já que a ideia era mesmo colocar a conversa em dia.
– Sim, o Jorge, meu marido, morreu. Lembras-te do Jaime, o nosso professor assistente? Aquele giraço que te punha louca?
– A ti também Giesta.
– É certo, é certo. Ainda andámos uns largos anos, mas acabei por me apaixonar pelo pai dele. Tínhamos acabado de nos casarmos e íamos dar uma longa volta pela Europa de moto. Eu, porque adoro, ele, porque achou que se sentiria bem mais novo sobre duas rodas, ou apenas para que eu pensasse isso mesmo, que ele não era assim tão mais velho. Pois bem, era ele quem conduzia a moto. Ainda não tínhamos percorrido metade da viagem que tínhamos planeado. Morreu na Bélgica. Nem sequer pude ir ao funeral, de tão entrevada que estava. Felizmente, agora já estou bem.
(Breve silêncio)
– E tu, Teresa? Como estás?
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