Hansel e Gretel na Versão Entre o Medo e o Cheiro a Gengibre

Ele conhecia bem a rua. Nela tinha nascido e dela jamais tinha saído. Primeiro, no encalço da mãe, esgravatando o lixo, fugindo de arruaças, dormindo em becos escuros e húmidos, pois são esses os menos movimentados, o que sempre permitia um cúmulo máximo de duas a três horas de sono seguido. Coisas práticas que tinha aprendido com a mãe. Tinha-as aprendido melhor do que os irmãos, os quais, aos poucos, se tinham perdido, ou esquecido, da matilha. Tinha ficado ele e uma irmã. A mãe tinha momentos de assustadora preocupação, mas logo passavam, que a fome e o medo não permitem demasiadas reflexões ou contemplações. Também não permitem que se passe demasiado tempo no mesmo lugar. Por isso, deambulavam pela cidade o tempo todo, sob o olhar indiferente de todos os restantes seres vivos, também eles, seguramente, assustados e com medo da fome. Nem sempre conseguiam acompanhar a passada da mãe, por serem mais pequenos e mais distraídos. Outras vezes, paravam a ver e a brincar com qualquer coisa a que a mãe tinha sido indiferente.

Passaram algumas aflições, ao perceberam que tinham perdido a mãe de vista. Nesses momentos, a irmã colava-se ainda mais a si, em busca de tranquilidade, mas apenas para si próprio ele admitia que estava tão ou mais assustado do que ela. A fim de a tranquilizar, sorria e assegurava que a mãe estaria de volta não tardaria. Por dentro, no seu pequeno coração, queria acreditar nisso mesmo, mas receava, com igual pânico, que não voltassem a encontrar a mãe.

 

Foi com ela que ele e a irmã aprenderam a permanecer nas imediações de locais onde as pessoas iam para comer. Uma forma de se manterem quentes, pois eram sempre sítios com fornos, fogões e calores vários, e de as sensibilizar para a sua fome e, quem sabe, acabar por conseguir, com os seus olhos famintos, umas migalhas com que distrair o estômago. Mas o estômago é inteligente, não se deixa enganar facilmente. É de tal forma influente e esperto que, a maior parte do tempo ocupa o lugar do cérebro e todos os pensamentos e desejos se resumem aos do estômago. Apenas o cansaço e o sono conseguem, de facto, adormecê-lo ou anestesiá-lo, mas apenas por curtos instantes, que ele logo reclama e reivindica. O estômago tem um QI elevadíssimo (só pode!), mas também é muito chato. Chega a fazer ruídos assustadores, só para passar a sua mensagem. Se não nos forem familiares, como eram para ele e para a irmã e seguramente também para a mãe, muito embora ela nunca o mencionasse, e dir-se-ia que alguém se aproximava. E sempre que alguém se aproximava, sabiam bem que tinham de fugir em silêncio. Pé ante pé. Sustendo a respiração. Abrindo muito os olhos para ver no escuro.

Com a mãe, a fome e o frio tinham aprendido a aguçar o engenho e a confiar no instinto. Há coisas que não precisam de se materializar perante os nossos olhos ou na nossa mente, para percebermos os sinais de alerta ou de segurança, de reconhecimento, para termos certezas, para agirmos. Um cheiro, um olhar, um passo mais incerto, um som, a velocidade de um carro… São aulas preciosas, as que se têm na rua. Vão servir para toda a vida. Talvez fosse esse instinto, esse qualquer coisa, que não recorre a palavras ou imagens para nos ensinar coisas, que lhes tivesse passado, a ele e à irmã, a sensação de que talvez a mãe não fosse ficar para sempre. Não que não confiassem nela. Não que ela não se preocupasse com eles. Não que não ralhassem quando eles se atrasavam, ou ficavam demasiado para trás, ou não faziam as coisas como ela indicava… Mas… Havia um mas que ambos entendiam, ainda que não conseguissem, ou apenas receassem terminar a condicionante que ele implicava. Concluir a frase seria ampliar a sua solidão e abandono. Sem a mãe, o que fariam? Por isso, ainda que com base em informação credível avançada pelo seu centro de inteligência sensitiva e intuitiva, achar que um dia a mãe não voltaria, ou apenas fugiria deles, era demasiado aterrador.

A mãe amava-os, mas a mãe também sabia que juntos tinham menos hipóteses. Menos chances de sobrevivência. Alguém poderia engraçar com os filhos, com ambos, ou apenas com um, o que poderia ser a salvação de, pelo menos um deles, mas ninguém adotaria toda uma família. Nem nos filmes. Ela não tinha ilusões. Os pequenos ainda as iam acalentando, não obstante a dureza da vida nas ruas da cidade, uma madrasta que lhes retirava parte da energia e do ânimo. Por isso, ele ia acalmando a irmã, assegurando-lhe que a mãe não tardaria, mas sentindo por dentro o receio dessa mesma certeza, a de que a mãe, um dia, talvez em breve, os deixaria para trás. Talvez essa certeza fosse outro ensinamento que mãe já lhes passava, para que quando tal acontecesse não chorassem demasiado, não se afligissem em demasia, que seria para bem deles, ainda que eles assim não o entendesse. Talvez nunca o viessem a entender. Prefeririam morrer todos juntos do que sobreviver separados, mas a mãe não pensava dessa forma. Os filhos tinham de viver e se achasse que sozinhos teriam mais hipóteses, de bom grado ela os abandonaria, numa qualquer praça ou beco da cidade. Não seria bem assim, ela escolheria um bom bairro. Com padarias e pastelarias e restaurantes. Bons caixotes do lixo, boas casas de habitação. Ainda que não os adotassem, por certo os saberiam encaminhar para porto seguro. Tentaria saber deles mais tarde. Assegurar-se de que tinham ficado bem. Sozinha, também ela conseguiria sobreviver com mais facilidade. Para si, uma adulta, o pouco seria suficiente. Seria fácil desenrascar-se, ou apenas morrer, sem ter de olhar o rosto assustado dos filhos. De pouco lhes podia valer, mas aquilo que sabia poder fazer por eles muito em breve, logo que fossem um pouco mais autónomos, seria abandoná-los. Deixá-los à mercê da sua doçura e ingenuidade, da sua beleza e juventude com as quais, estava certa, conquistariam um lugar num sítio quente, seguro e com comida. Alguém que olhasse por eles e os conseguisse alimentar como ela não conseguiria jamais.

Este projeto materno, para a mãe uma certeza dolorosa, pairava no ar e nas mentes também dos dois pequenos, ainda que não soubessem como nomear esse receio premente, esse medo latente. Mas sobre ele andavam alerta. Mais argutos a perscrutar com acuidade os passos da mãe, a tentar avaliar as suas intenções, a escrutinarem a melancolia do seu olhar. Apressavam-se a andar, já sem as primeiras distrações infantis: olhar uma montra, um reflexo numa poça de água, correr atrás do odor quente do interior de uma padaria… Andavam em permanente alerta. Claro que eram facilmente manobráveis, dóceis e obedientes ainda, pelo que não seria difícil para a mãe de os enganar, de os deixar imóveis num local aguardando pelo seu regresso. O seu inexistente regresso. Apenas a ida seria uma certeza. Assim foi, um dia. A mãe saiu e não mais voltou. Não teve coragem de os enganar. De lhes dizer que aguardassem o seu regresso naquele ponto, que ela não tardaria. Não conseguiu imaginar o peso daqueles olhinhos ansiosos, receosos e amedrontados, mas ainda assim obedientes. Ele, seguramente daria uns passos na sua direção, inseguro, certificando-se de que o coração da mãe dizia o mesmo que ela lhes transmitia. Ela choraria um pouco… Não conseguiria. Deixou-os enquanto dormiam, aninhados um no outro, os manos, a aquecerem-se mutuamente. Havia um bom contentor por perto. Daqueles que passam bem por despensas, tal a quantidade de alimento ainda bom que armazenam, dentro de latas semiconsumidas, de pacotes de bolachas ainda com bastantes migalhas… Sobreviveriam. Aquele era um bom bairro. De gente cristã.

Acudir-lhes-iam. Rezaria por eles e neles pensaria a cada segundo da sua vida. Podia nem vir a comprovar-se tudo isto, mas era nisso que agora precisava de acreditar, para ter forças para deixar aquele beco. O dia estava quase a nascer. Tinha de ser célere. Mais importante. Não podia olhar para trás.

Quando acordaram, ele primeiro do que ela, mas apenas por alguns segundos, souberam. Souberam logo. Claro que a procuraram. Claro que chamaram por ela. É igualmente certo que choraram. Que se consolaram e que, finalmente, perceberam que estavam entregues a si próprios. O medo de se perderem, também eles, um do outro, era gritante. Andavam com os corpos colados. No encalço um do outro. Jamais se afastavam um passo que fosse. Jamais um disse ao outro, fica aqui que eu já venho. Juntos. Para sempre. Ainda bem que se tinham um ao outro. Não se lamentaram. Não pensaram mal da mãe. Acreditaram até que ela podia voltar ou, mesmo que não o fizesse de livre vontade, que eles, com toda a determinação e resiliência do mundo a encontrariam. Um desejo que guiava os seus passos e os fazia aventurarem-se para lá das ruas que já conheciam. Bem para lá do bairro de gente cristã para onde tinham ido naquela última noite com a mãe.

Não tardou a que reparassem neles. Dois irmãos tão adoráveis. Levaram-nos a andar de carro. Já os tinham visto, mas nunca tinham entrado num. Parecia divertido e assustador ao mesmo tempo, mas ambos vomitaram. Parece que não o deveriam ter feito, pois a casa para onde os levaram devia ser o sítio dos castigos para quem vomita no carro. Foram fechados num sítio que mais parecia uma caixa de ferro. Cheirava mal. A chichi e a medo. Era a casa da bruxa má. Tal como a mãe a tinha descrito: linda e encantadora por fora, com gente simpática e sorridente, mas horrenda por dentro, onde os poderiam esperar tenebrosos castigos. Um lugar de onde deveriam fugir. Havia mais nas mesmas condições. Brancos, amarelos, pretos… Todos famintos e amedrontados. Tinham de fugir às garras daquela gente bruxa. Daquele cheiro paralisante. Das correntes e… Abre-se a porta. Separam-nos. Sem pensar, sem avaliar riscos, sem temer o que quer que fosse, mesmo que fosse a morte, mordeu sem largar a mão daquele homem que se atreveu a agarrar a irmã à força.

Podia ser pequeno e insignificante, mas não era fraco. Percebeu que no peito ebulia coragem e resiliência. Morreria ou salvar-se-iam. Com sorte, seria este último o destino que os aguardava. Fez cair um objeto vermelho, cilíndrico. O homem feriu-se no pé. Outro veio em seu auxílio. O homem ferido perde os sentidos. Vêm mais homens, com roupa estranha. Talvez médicos e bombeiros, mas veio mais gente. Surgiu a oportunidade. Agarrou na irmã e em todos os outros que os quiseram seguir e fugiram por uma porta entreaberta. Na rua, todos se separaram, correndo para onde calhava, apenas cientes de que deveriam alargar o espaço entre aquela casa de horrores e as suas vidas. Todos se separaram, menos eles, colados por forças magnéticas. Juntos, para sempre.

Os dias que se seguem são dolorosos. Não se atrevem a sair da sombra, nem a encarar o dia. Esgravelham o lixo à noite. Dormem quando e onde conseguem. De dia, escondem-se nos becos, atrás de carros, caixas e contentores. Abraçam-se. Choram por turnos, pois é bom que um esteja sempre responsável pelo papel do otimista. A vida corre neste sobressalto, mas a rotina torna-se mais difícil com a chegada das primeiras chuvas. Do frio. Da neve. Têm medo. Têm fome. Têm frio e os corpos molhados. O calor um do outro já não chega para se confortarem. Adormecem, um dia, achando que pode bem ser o último, ou nem pensando, que quando o fim se aproxima de verdade ninguém o quer ver ou nele refletir. Nessa noite, cheio de vontade de proporcionar à irmã, um pouco de calor arrisca algo que a mãe sempre os proibiu de fazer: entrar numa casa. Com sorte, podiam não dar por eles e, logo que o dia nascesse, pisgar-se-iam, aproveitando uma outra fresta ou janela… Logo pensariam nisso.

A irmã arrastava-se atrás de si, mas aceitou sem medo ou sobressaltos que arriscassem um ‘assalto’. O que lhes podia acontecer de pior, do que mais outra noite ao relento quando os termómetros marcavam temperaturas negativas? Correram. Entraram. Esconderam-se. Acharam-se a salvo. Estava quente. Cheirava bem. Cheirava a floresta. A pinho. A comida e a mais qualquer coisa que não sabiam identificar. Num canto escuro e escondido, debaixo de umas escadas de acesso ao piso superior. Aí ficaram. Não se atreviam a aventurar-se pela casa. Mal se atreviam a respirar, não fossem dar pela sua presença. Não sabem ao certo quanto tempo aí ficaram, o certo é que adormeceram. Estavam exaustos. Estavam frágeis e debilitados.

Sonharam com a mãe. Com caldos de galinha, luzes, aquecedores e mantas de lã. Sonharam com coisas de meninos. Sonharam. Isso era bom. Uma mão acarinhava-os. Afagando as suas cabeças, enrolando seus corpos magros em panos quentes. Levando-lhes à boca comida moída, para melhor a mastigarem. Parecia um anúncio de Natal. Mesmo no sonho, esse cheiro tranquilizante, que se misturava ainda com o de leite morno. Devia ser o paraíso. Tinham morrido e estavam no céu. Talvez fosse seguro abrir os olhos. Mas se os abrissem, não se desfaria todo aquele mundo irreal que o calor lhes tinha permitido inventar? E se fosse apenas ele a sonhar todas aquelas coisas boas? E se a irmã, coitada, estivesse a viver os mesmos pesadelos de todos os anteriores dias? As aflições e medos de sempre? Tinha de lutar contra as pálpebras. Abrir os olhos.

Conseguiu forçar os olhos a abrirem-se. A verem. A surpreenderem-se. Vários olhos o observavam, várias mãos lhe tocavam. Estranhou toda aquela gente tão perto de si, ele que costumava ser transparente para todos. Agora, o centro das atenções. Algo estava mal. Mas o seu corpo não respondia bem aos seus impulsos. Libertou-se. Abriu a boca e os olhos, de medo e raiva. Sentiu-se preso, não via a irmã. Perceberam a sua aflição. Levaram-no até ela. Espasmem-se. A irmã brincava com uma criança. A irmã tinha o cabelo todo eriçado e sedoso. Brilhante. A irmão correu para ele. Beijou-o e informou-o. Ele tinha tido febre, por isso ainda aguardava a sua vez de tomar banho. O banho era uma coisa fantástica, com água quente e espuma branca e toalhas fofas. A comida era ótima e não tinha fim. Também vinha de um pequeno contentor, mas era toda para eles. Os outros nem sequer comiam o mesmo. Eram todos simpáticos. Havia camas à sua espera. Havia cheiros bons e nem sequer a necessidade de saírem, mas podiam fazê-lo sempre que quisessem.

Para o jardim da casa, nem precisavam de pedir autorização, para a outra rua, rua, rua mesmo, era sempre na companhia de mais alguém. Ele quis muito acreditar em tudo aquilo, mas desconfiava que tudo o que ouvia fosse possível. Quem estava com febre era a irmã. Tinha de a salvar. De a tirar dali. Tinham de fugir. Não foi capaz. Tropeçou. Caiu. Quando voltou a acordar, a mesma lengalenga. Os mesmos cheiros, as mesmas certezas da irmã. Olhou em redor. Baixou a guarda. A irmã estava irreconhecível. Cheirosa. Linda! Deixou-se levar. Primeiro deram-lhe medicação. Depois, banho. Comida. Uma cama. A ‘sua’ cama. Parecia mesmo verdade. Manteve-se aos cantos. Reservado. Meio encolhido. Cabeça baixa, mas olhos erguidos, na defensiva. Visitou a rua-jardim de que a irmã falava. Cheirava a pinho e a aventura. Um gato observava-o. Um esquilo também os visitou, mas logo voltou para a copa da sua árvore. Nisto, as mãos protetoras de gente-anjo, não duvidava, que exalava igualmente aquele odor de que tanto gostava, mas que não conseguia identificar.

As mãos traziam coisas. Primeiro deram à irmã, que já se passeava com uma fita de seda ao pescoço. Depois, foi a sua vez. Um colar com chapas e medalhas penduradas. Uma tira colorida para os guiar. A chapa em feitio de osso da irmã dizia Gretel. A sua, Hansel. Entretanto, entendeu o que era aquele odor que docemente os rodeava, tal e qual como aquele que se libertava de uma fornada de bolachas de gengibre acabadas de sair do forno. Só podia ser. Quase receava verbalizá-lo. Cheirava a casa.

Moral da história: Casa e família são lugares onde somos amados. Todos os seres vivos merecem e têm direito a um lugar desses. TODOS!

Sebastião, Emília, Rafa, Baltasar, Niki, Eva, Tita e Arya

     

 

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3 Comments

  1. Flor

    Fiquei de lágrimas nos olhos. Também adoptei duas manhãs em semelhantes condições…
    Um belo conto de Natal.

    • Marina Rocha Ribeiro

      A sorte que as ‘suas manas’ tiveram e a gratidão que lhe devem ter! Feliz Natal, Flor.

  2. Flor

    *manas

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