Como sempre, o jantar alongava-se na exata proporção do interesse da conversa e do álcool consumido, sendo este último, a bem da verdade, bastante inferior à intensidade da conversa e à duração da refeição. Convém atentar neste detalhe, para que, mais à frente, não se salte precipitadamente para conclusões abusivas e falsas. Digamos que, no restaurante, em breve seríamos os últimos, que o entusiasmo da conversa já incluía o dono do restaurante e o chefe de mesa, e que o álcool – apenas vinho tinto – não chegava a uma garrafa por pessoa, nem de perto nem de longe. Ou seja, era um jantar normal, entre amigos que não se veem todos os dias, num bom restaurante. A propósito de um caso mediático, relações tóxicas, pessoas abusivas e psicopatia acabaram por arredar para canto todos os outros temas de conversa. Mais ainda quando Amália a todos surpreendeu ao revelar que já tinha sido vítima de terror psicológico, por parte de um namorado controlador e ciumento e que, apesar de não ter deixado que o caso se alongasse, chegou a temer pela sua integridade física e mental. Ele perseguia-a desde que saía de casa até que regressava à noite. Nem percebia como é que ele conseguia compaginar os horários dela com os do emprego dele, se é que tinha mesmo um emprego, já que o rol de dissimulações a levou a duvidar de tudo o que ele alguma vez lhe disse. A primeira vez que isso aconteceu, recorda Amália, ele ainda se prestou ao exercício de inventar uma escusa.
Alegou que tinha um assunto a tratar ali perto e que aguardou por ela. Quis saber qual o assunto que ele teria a tratar numa zona exclusivamente residencial, cujo único estabelecimento público era um café/padaria sem qualquer atrativo. Ele esquivou-se. Ela fez que não entendeu, mas registou o insólito numa gaveta reservada a assuntos gravemente preocupantes, onde sexo forçado já marcava presença. A partir daí, como se já nada tivesse a ocultar, o bicho estava à solta. Aparecia no ginásio que Amália frequentava, no seu emprego, telefonava aos seus amigos para confirmar ausências de Amália, fingindo-se preocupado, controlava-lhe o telemóvel, as suas redes sociais… Um dia em que mais uma discussão, motivada por ciúmes cegos e despropositados, subiu de tom e fez escalar a linguagem para níveis inadmissíveis, ele deu-lhe uma tareia monumental. Amália correu com ele. Semanas depois disso, até uma microcâmara Amália descobriu em casa, num candeeiro de teto. Chamou a polícia, apresentou queixa-crime e, sabendo como tudo isso pode ser infrutífero, pediu ajuda aos irmãos. Um deles, por telefone e com a maior destreza, fez-se passar por um investigador da judiciária, intimidou-o e silenciou-o. Nunca mais ouviu falar da criatura. Amália culpabiliza-se por não ter percebido os sinais mais cedo, ou antes, por, tendo-os percebido, não ter agido antes. Felizmente, sempre teve discernimento para não embarcar numa vida a dois sob o mesmo teto. Algo nele não a tranquilizava.
– O amor é assim. Amolece os sentidos e adormece a fera que vive em nós. Tivesse sido um simples vizinho e terias reagido de forma mais pronta e acutilante.
Jorge tentava dar lógica ao relato e acalmar os nervos de Amália, que, percebia-se, ainda hoje vivia atormentada com todo aquele episódio. Talvez Jorge gostasse de Amália. Quer dizer, mais do que algum de nós sabia ou mesmo mais do que ele supunha, ou supunha, mas desvalorizava ou ignorava. Era um assunto a que estar atenta. Houve quem quisesse saber quem era o estafermo, mas ele situava-se num período prévio a estes novos amigos.
– Eu matava o pulha. Juro. – Ana enchia de emoções fortes aquilo que dizia. – Esses seres, homens na sua maioria, são excrementos humanos. Psicopatas. Passamos melhor sem eles, não apenas na nossa vida, mas sem eles no planeta.
Amália, quase num sussurro, disse:
– Eu seria incapaz de matar.
Ana, radical como sempre, não encontrava outra saída.
– És, então, a favor da pena de morte?
A pergunta de Quim não a intimidou. Parecia mesmo ter tudo bem pensado.
– Não a pena de morte enquanto política de ação concertada ou conceito social, consagrada na lei e aplicada em tribunal, apenas a pena de morte instituída e perpetrada por uma vítima sobre o seu agressor. Uma mãe a quem matam selvaticamente um filho tem o direito universal de fazer justiça com as próprias mãos. A uma mulher violada assisto-lhe o mesmo direito. Esses indivíduos são criminosos, todos eles assassinos em potência. Aguardam apenas o momento de se revelarem.
Quim pegou na deixa.
– Todos somos capazes de matar, desde que reunidas as circunstâncias certas a cada caso. Dos mais racionais aos mais destemperados. Assim, todos somos assassinos em lista de espera.
– Não falo disso. – Percebia-se que o assunto entusiasmava Ana. – Falo de gente que premedita, que vive num mundo distorcido, que gira em redor do seu umbigo. São indivíduos com infâncias marcadas por algum tipo de abuso ou violência, egocêntricos, narcisistas, com zero empatia pelos outros ou pelo sofrimento dos outros. São tipos manipuladores, dissimulados, maquiavélicos e sádicos. Não sentem culpa nem remorso. São frios e calculistas. Escondem, todos eles, uma compulsão para matar. São sociopatas e psicopatas. Circulam no meio de nós, mas não são como nós. Mesmo essa seita do demo que são os ‘tóxicos’, mais não são do que exemplares dessa estirpe ainda não completamente concluídos, ou incapacitados para chegar a tal estado. Claro que aí entra a inteligência. Os cognitivamente mais aptos conseguem, durante anos, alimentar com sangue a sua fome de matança, sem que ninguém perceba. São tipos, muitos deles, brilhantes, com vidas e carreiras exemplares, cidadãos modelo, pacatos e até, alguns, beneméritos, com envolvimento na comunidade, onde são respeitados. Os mais burros nem por isso. Ou são apanhados na primeira tentativa ou nem ousam chegar perto disso. Por cobardia e incompetência. Não precisam sequer de um motivo, ou de um motivo substantivo. Aos seus olhos os outros são apenas lixo, pelo que nada há a considerar, nem moral, nem social, nem eticamente. Aceitam-se como seres superiores a quem tudo é permitido. Conseguem mesmo enganar a polícia durante décadas, sendo que muitos nem chegam a ser apanhados. Outros são-no apenas porque a sua compulsão para a morte se descontrola e eles cedem a esse ímpeto, sem os cuidados necessários.
Quim estava siderado.
– Mas, não vês que aquilo que defendes é muito arbitrário? Que qualquer um se pode arvorar em vítima de alguém de quem simplesmente não gosta, ou que apenas o irrita ou lhe tomou o lugar no comboio? Que qualquer um poderia ter o ‘direito’ a matar? Como é que esse teu sistema reduziria a percentagem de erro? Como…
– Quim, ouve-me. Refiro-me a vítimas que viram a besta olhos nos olhos. A quem não restam dúvidas sobre a identidade do autor do crime. A essas pessoas, algo no peito deveria dar ordem e liberdade para agirem por conta própria. Falo de um modelo singular, um tipo de autogestão criminal divina, à falta de melhor palavra. Uma coisa visceral e comum a todos os seres humanos. Mataste algo em mim, vou matar algo em ti, já. O universo deveria fazer uso frequente e racional do karma, há falta de outro nome. Um crime deveria permitir automaticamente o seu ato reflexo, a sua imagem espelhada numa dor tão grande que partia de imediato para a eliminação do criminoso. Sem delongas, sem medos, nem reticências. A justiça deveria ser um bumerangue.
– Ana, deverias enviar um e-mail ao Spielberg ou ao Polanski. Vingança divina e automática, karma, bumerangue? Acho que…
Jorge, seguramente o mais sóbrio, como sempre, pegou na deixa:
– Isso merece um brinde, não acham? À vingança kármica e aos crimes bumerangue e ao assassino que vive dentro de cada um de nós.
Brindou-se, claro, que qualquer pretexto para mais ‘um bota abaixo’ é sempre bem recebido, mas também se voltou à carga. Alex, até aí calada, não largou o tema.
– O Quim tem razão. Concordo plenamente com a ideia de que todos, sem exceção, podemos e conseguimos matar e fá-lo-emos, sem hesitar, se reunidas as devidas circunstâncias, sejam elas quais forem. Todos temos as nossas circunstâncias. Moral. Limites. E julgo que também entendo esse conceito de vingança pura, da Ana, para casos extremados. Situações de crueldade exemplar. Aceito mesmo a pena de morte, como hoje a conhecemos, para esses casos. É cruel, desumana e vai ao arrepio do sentido humanista que o Homem e as sociedades nas quais se organiza deveriam seguir, mas remedeia o irreparável, sossega o coração e impõe uma certa justiça.
– Vocês ouvem-se falar? Assimilam aquilo que dizem? Sim, voltemos à barbárie. Permitam-me que vos diga que não há argumento válido na defesa de uma morte, mesmo de um assassino. Querem maior crueldade do que privar alguém de liberdade, numa prisão…
– Quim, por favor! – Alex estava indignada – Prisões? Muitos nem chegam a julgamento e, em Portugal, com 25 anos de pena máxima e prisões soft consideras que é castigo para o tipo de crimes de que falamos? E as liberdades condicionais a meio da pena por ‘bom comportamento’? Esses vermes consomem duplamente a sociedade. Primeiro, matam a bel-prazer e, caso sejam apanhados, pagamos-lhes nós a estadia em estabelecimentos prisionais onde fazem o que querem, por falta de guardas e de condições. Pode ser muito humano, mas, vais-me desculpar, em nada se relaciona com justiça. É apenas a forma desajeitada de lidar com os cancros.
Jorge, opinou:
– Ok. Percebo a angústia e a ferida no peito de quem ama um filho, um pai, uma mãe, irmã, um amante assassinado. Mas esse princípio de olho por olho abre um processo infinito. Todos são filhos de alguém. Quem mata o assassino também cede o direito a outro alguém de cometer novo homicídio para reparar esta outra morte. A Máfia funciona assim. Achariam mais saudável e civilizado que vivêssemos num sistema que permitisse a perpetuação de crimes hediondos? Seria um convite aberto a matar sempre alguém, por esta ou outra razão, ou sem razão, apenas como forma de reparação de mais uma morte. Reparem como até a língua não está preparada para isso, já que falo em reparação de uma morte quando nada repara uma vida que se perde. Isso é apenas vingança. Nem na selva isso acontece.
Alex pergunta diretamente a Amália:
– Nunca, em momento algum, desejaste matar o estafermo? Nunca o quiseste fazer? Consideraste, sequer, essa hipótese?
– Sim. Percebi que o fim de tudo só aconteceria com minha morte ou loucura. Pensei nisso todos os dias durante muito tempo.
– Ainda assim, afirmas que não o conseguirias fazer? Nem com comprimidos ou veneno? Nem quando ele te batia, apenas para te defenderes?
– Não. Não fui capaz. Nunca fui capaz. Mas o meu irmão foi.
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