Tinha apenas fechado os olhos. Um segundo? Não mais do que isso, estava certa. Podiam ter sido cinco minutos, vá, que o tempo é traiçoeiro e a sua cabeça funcionava num outro fuso horário, mas… Aquilo era ridículo e desprovido de qualquer pingo de lógica. Não havia explicação, nem recorrendo à fantasia. Como é que o calendário anunciava já de novo o 25 de dezembro para daí a uns dias? Estaria louca? Teria terminado mais uma volta inteira em torno do sol com o speed de um velocista ou num inconsciente estado comatoso? Inclinava-se, claro, mais para a segunda hipótese, que a corrida não era o seu forte. Podia ainda ter-se dado um caso de amnésia, do qual, obviamente, não se poderia recordar, ou possivelmente um somatório de 365 dias tão monótonos e entediantes que o seu cérebro apenas os apagou. Neste último caso, porém, porque não apagaria de igual forma esta infernal semana de Natal, ou porque não apagar apenas esta? Não percebia mesmo porque não tinha apenas apagado esta semana a par de todas as restantes semanas de Natal da sua vida.
Sempre odiara o Natal. Era a época do ano em que os pais mais discutiam e isso marcou todos os seus Natais de criança e adolescente. Felizmente, com a maioridade veio a possibilidade de poder passar a quadra sozinha, refugiada num qualquer hotelzeco de montanha, vazio nessa quadra. Isso, porém, nunca aconteceu. Entre a pena e o receio de deixar os pais entregues a si próprios nesta altura do ano, entre as habituais desavenças sobre o volume de trabalho para receber toda a família, comprar presentes “com significado” – nas palavras da mãe –, sobreviver às correrias aos hipermercados e centros comerciais, cozinhar para um exército que enfrentava uma nova idade do gel e se preparava para marchar eternamente, decorar a casa por dentro e por fora – o pai era norte-americano e o excesso do kitsch de luzes e enfeites natalícios era humilhante –, aguentar a infinitude de beijos, abraços e piadas de pessoas da família que jamais saberia quem eram ou quereria saber, a ausência dos amigos, todos envolvidos naquele mesmo pacote de loucura familiar apenas numa outra morada… Apregoa-se o amor ao outro, a paz no mundo e as melhores rabanadas do planeta, enquanto em casa já mal aguentamos cruzar-nos, esmagados com o peso de tanta fraternidade e saturados de fritos. Natais houve em que acreditou que seria o fim do casamento dos pais, sempre tão irritados nesta época de “boa-vontade entre os Homens”. Maldito Natal! Era seguramente um dos níveis do Inferno de Dante, tão no fundo da espiral que nem era mencionado. Como se não bastasse, agora era sempre noite de consoada na sua vida. Acabava de sair de um Natal para acordar no outro. Esperava encontrar Mr. Scrooge, ou outra qualquer personagem perversa de Dickens, que tentaria, em vão, mais vale dizê-lo já, fazê-la ver a beleza da data, mas esta era uma quadra que na sua vida não rimava nem alegrava. Era apenas temida e odiada com pureza.
Era de novo Natal. Só podia ser um pesadelo ensaiado por uma daquelas almas transtornadas que se dedica a realizar telefilmes de Natal, que enchem os maus canais de janeiro a dezembro. Filmes por onde passava a vista sempre que necessita de aliviar o estômago. Gente de plástico, amantes de excessos de patetice, amor que nasce de um doce de abóbora, um pequeno arrufo de permeio e o final sinalizado, sempre, mas sempre, pelo primeiro e muito púdico beijo de superfície do casal de protagonistas, sempre um casal cisgénero heterossexual. Mal de nós se o amor não se propagasse apenas entre homens e mulheres de bem, capazes de procriar e salvar o mundo com criancinhas ranhosas, irritantes e carentes como são as crianças reais ao invés dos querubins dóceis e sem profundidade psicológica ou emocional destes filmes que abominava, ou qualquer outra personagem desses lamentáveis enredos onde se desbarata a falta de talento, com incompreensível orgulho. Deus nos livre disso tudo! Nisto, lembrou-se das suas próprias crianças, das longas e agora confinadas férias escolares, dos trabalhos de casa, da necessidade de os alimentar o dia todo, de mediar conflitos, desempatar birras, acertar na roupa que desejam vestir, aturar aborrecimentos e ceder contrariada a inúmeros pedidos apenas para se preservar da exaustão e da loucura. O ódio que tinha ao Natal era comparável ao que sentia em relação à cozinha e ao marido nesta altura. De uma maneira ou de outra, tudo acabava em cima dos seus ombros, da sua decisão, escrutínio e execução, enquanto ele se assumia incapaz, palerma e mentecapto para tomar a mais pequena decisão ou fazer a mais ínfima tarefa. Escudava-se no odioso argumento de que ela não confiava nele, nem gostava da maneira como ele fazia as coisas, pelo que mais valia que fosse ela diretamente a tratar de tudo, sem intermediário, para não se andar a fazer e a desfazer. À boleia dessa estupidez, já era a si quem competia comprar os presentes até para os pais do marido, que acabava todos os anos por repetir presentes e ignorar gostos e tamanhos, idades e interesses…
Recordou os pais, o que o Natal fazia à sua relação e percebeu como também ela e o seu próprio casamento ocupavam já o mesmo lugar deles nesta loucura. Ela era a sua própria mãe e o marido o seu pai. É insano o que o Natal nos faz ou aquilo que nós fazemos ao Natal? Era indiferente a ordem dos fatores. Queria apenas odiar primorosamente o Natal, sem avaliar, justificar ou interpretar. Sem sonhos e azevias, bolos caseiros, mil e uma maneiras de matar o bacalhau e mais uma centena sobre como empratá-lo. Sem a halitose do Vasco e as bebedeiras da Bia. Sem piadas privadas ou públicas, sem Missas do Galo no gelo da noite, quando por sua vontade já teria matado metade da família. Sem couves nem castradores azeites virgens ou de outra natureza, que a vida sexual do azeite (ou o seu signo zodiacal) deveria ser o que menos importa. Sem brindes, nem crianças aos gritos e pais treinados na representação da distração, para não desatarem à bofetada aos filhos, ou estes aos pontapés aos pais e avós. Pais que fingem que não veem, que não ouvem e nem sentem os olhares desesperados daqueles que percebem os tímpanos a despedirem-se da vida ativa, mas sem intimidade e à-vontade para fazer reparo na educação das crianças dos outros. Dos outros quando não são as nossas e nos cabe a nós esse papel de mula paralítica, fazendo de conta que não vimos, ouvimos ou sentimos, para que ninguém perceba como os miúdos são estúpidos e mal-educados e nós perfeitamente insuficientes para a parentalidade. Sem os olhares de gozo e desprezo dos adolescentes e sem a sua fúria mal gerida quando o presente que que desembrulhavam não era aquele que aguardavam (sempre mais um telemóvel de última geração e os telemóveis têm mais gerações do que os ‘Cem Anos de Solidão’ de Gabriel García Márquez) . Sem o choro desinteressante e sempre enlutado dos mais velhos a recordarem os mortos, como se não houvesse outros dias e outras noites para os recordar com detalhes macabros sobre como morreram. Sem os rancores e as zangas do passado a ensombrarem a sobremesa e a azedarem o queijo fresco logo à entrada. Sem ter de pensar em roupa elegante e confortável, que acabará babada ou rasgada com os amassos das botas dos miúdos, meio desmaiados quando os tiver de colocar no carro.
E ainda a porra dos filmes de Natal, onde tudo é perfeito e manadas de gente se diverte a cozinhar bisontes para a ceia, cheios de alegria e energia e ainda com espaço para elegantes copos de vinho que vão bebericando enquanto riem e cozinham mais um pouco, como se tudo não fosse feito com uma perna de borrego às costas e uma esfregona nas mãos por causa da farinha e da gordura e do raio que parta o Natal. No desespero da sua cozinha o vinho sai diretamente da box e é parcimoniosamente dividido entre as suas aflições e a carne assada. Sim, na sua família há quem não se fique apenas pelo simples bacalhau com couves, nem no dia seguinte com a roupa velha e suja da noite anterior e exija carne, sangue e lágrimas à mesa. Mais um banho, mais uma refeição, mais um almoço e mais gente, mais crianças e berraria e momentos embaraçosos, ultrapassados com comentários ou sugestões de paz ainda mais constrangedores e os grotescos olhares lânguidos da eterna noiva do tio Gustavo sobre todos os mancebos da família, o seu próprio marido incluído. Mais meias de vidro para o lixo e aquela vontade de libertar o estômago dos maus fígados de tudo aquilo. Mais presentes ridículos para desembrulhar com olhar de espanto e felicidade, ensaiados ambos, o espanto e a felicidade, no espelho retrovisor do carro, enquanto se amanham os restos do rímel da noite anterior e se tenta encontrar o raio de um lugar de estacionamentos nas cidades esgotadas, também elas.
É que o Natal são dias infinitos de mesas cheias de refeições e de gente. Os primos com as suas terceiras mulheres e crianças novas a cada ano, as primas com os amantes à pendura, um tio que fuma charros à frente dos adolescentes, sem perceber que estes o acham apenas assustador ou pedófilo. A velha trica entre irmãs que acaba sempre abafada ao som de infernais músicas da época. Porque não deixá-las expelir a bílis de uma vez? A disputa sobre quem cozinha melhor o bacalhau e se este deve ou não ser previamente cozido numa ‘pinguinha’ de leite (que horror, para alguns), a fim de levar um primeiro ‘entalão’, e ela já completamente entalada entre o assomo do primeiro ataque de ansiedade e a hiperventilação. E ainda os olhos da sogra a acompanhar o movimento dos copos de cada um, para garantir que acabam por aterrar graciosamente e sem turbulência sobre as bases para copos, concebidas para salvar a sua preciosa mobília de algum traço de vida e de uso (Deus que nos livre disso também). E o marido a pedir que ela tome mais atenção aos miúdos que andam para ali aos gritos e ela a fulminá-lo com os olhos e ele a calar-se, aflito e já muito arrependido, assim que percebe o fogo do Inferno nos olhos dela.
Que estupidez tão grande! Que ódio tão monumental. Como poderia ser possível que fosse de novo Natal?! Onde ficou o restante ano? As outras partes do ano? Quem as viveu por si? Que foi feito da primavera e do verão? Como saltaram de um Natal para o outro? Deus deveria andar a jogar Monopólio com aquela merda toda, munido de três dados, e tinham sido todos forçados a avançar para a casa Natal sem passar pela partida nem receber qualquer tipo de bónus. Se lhe oferecessem mais um pedaço de farinha frita fosse de que maneira fosse, ou matava o marido, ou beijava o namorado da tia. Um tipo novo na família com quem engraçava fisicamente de forma bastante acutilante.
Pior do que o ódio que sentia era a felicidade genuína que parecia perceber em todos os outros.
– Oh, que época tão linda, a mais bela do ano!
– Adoro o Natal, o frio, a comida, as luzes…
– Por mim seria Natal todos os dias.
Não sentiam a hipocrisia do encontro anual? O gasto de dinheiro e de energia? Mais valia que doassem o dinheiro dos presentes desengraçados para, realmente, salvarem o mundo, como tanto desejavam. Podiam começar por a salvar a ela de toda aquela pepineira e ainda da visão tenebrosa de crianças vestidas de igual até aos 12 anos. Que a poupassem ao ridículo. Uma família de classe média a fazer-se passar por betos frente à restante família que apenas vê no Natal. Começou por desligar as luzes da árvore de Natal – medonha, por sinal –, a qual, de seguida, despenteou de cima a baixo, para animação da gaiatada que já jogava à bola com cabeças de Pai Natal possuídas pelo demónio, e cujos olhos refletiam a tristeza no escuro. Depois, levou a garrafa do Porto de mil e tal anos à boca e bebeu tudo em dois momentos, pois necessitou de arrotar a meio. Apontou o dedo indicador ao nariz do marido e avisou:
– Livra-te de me perguntares se estou a usar as cuecas do Pai natal ou de tentares sexo natalício esta noite, quando te deitares com cheiro a coscorões com mel e o corpo descansado do muito que não fizeste, meu grande traste.
Tinha de fechar a porta àquele deprimente quadro natalício, embora acabasse de perceber que não odiava o Natal. Nem sequer odiava o que o Natal fazia às pessoas singulares e aos coletivos familiares. O Natal é apenas uma forma vazia, neutra e sem intenções. O Natal é aquilo que dele fizemos e fazemos.
Ela percebeu que odiava pessoas. E percebeu ainda outra coisa, aquele Porto era mesmo bom!
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