Amira segurava o menino contra o peito. Amarrado nos seus braços com um forte e sôfrego nó feito das suas mãos. As suas mãos enoseadas. Apertava-o contra o coração. O coração batia descompassado. Aflito. Dorido. Amedrontrado. Não. Apavorado. Os batimentos arritmados do seu músculo vermelho a compasso com a forte batida das ondas no bote. Um bote de borracha. Uma onda forte e mais outra e as batidas do seu coração a adivinhá-las, a acompanhá-las, a antecipá-las, já. Os batimentos do mar. Os batimentos do coração. Os de um pareciam ecoar no outro. Uma sinfonia de pavor e esperança. Fé na terra firme. Pensamento na praia distante. Tudo isto ia o seu coração dizendo ao menino, naquele brutal silêncio forçado, sem palavras. No estrondo ruidoso do mar e dos gritos dos outros. De tantos outros. Ombros com ombros. Peitos contra peitos. Peitos contrafeitos. O menino entendia. O menino tinha medo. O menino chorava. Em total silêncio, chorava. Chorava a fome do estômago, o medo que lhe sussurrava exaltado o coração da mãe, chorava o pânico das gentes, chorava a ira do mar e a fragilidade do barco. Um bote. De borracha inchada, mas já não o suficiente.
O silêncio absoluto da mãe era mais assustador do que os gritos dos outros. De muitos outros. Demasiados outros. O menino chorava. Tinha nascido ao relento, forçado pela mudança de lua e pela ansiedade da mãe. Tinha nascido na praia. Longe de qualquer casa. De qualquer sossego. O medo susteve quase a respiração de ambos. Do menino e da mãe. Susteve ainda o leite no peito da mãe. Mas viviam ainda. O pai inventou leite de coco e inventou água e a mãe fez o leite voltar ao seu peito num derradeiro ultimato. No desespero da fé. Na esperança que o menino lhe dava. O menino nunca chorou. Filho do Diabo, logo disseram. Muitos se recusaram a embarcar no bote do menino amaldiçoado. Mais espaço fica, segredou o pai à mãe, tentando, em vão, acalmar sustos e alongar e prolongar sorrisos raríssimos. Não. Não havia mais espaço. Talvez menos morte, mas não mais espaço. O menino sabia. Ainda não nascera e já sabia. Conhecia a importância do silêncio, mais do que a das palavras. Conhecia a exaustão da mãe – e adivinhava através dela o cansaço do pai – durante a longa caminhada. Conhecia as suas lágrimas que, à conta de não saírem pelos olhos, escorriam para dentro. O menino tinha-as bebido, uma a uma. Conhecia-lhes o sabor agridoce. Sabia o peso exato de cada lágrima da mãe, o seu formato e o seu odor. Estava habituado a ouvir os sussurros dos pais. Os segredos contados ao ouvido. A partilha dos receios. A medição da aflição. A luta insana entre a estúpida vontade de ficar e a obscena necessidade de partir. O menino sabia que teria de nascer em silêncio. De não incomodar mais do que o estritamente indispensável. Chorar não era uma opção. O menino sabia uma imensidão de coisas mesmo não cabendo ainda elas no seu pensamento. A mãe também sabia. A mãe sabia que o menino chorava para dentro e que tinha fome e medo. Muito medo. Um medo que paralisa quase a respiração. Um medo tão agudo que chega a matar.

By Joyce Tenneson
Ainda viviam. Comunicavam pelo coração. Cada batida uma palavra. Cada respiração uma pontuação. Cada grito sufocado uma entoação. Não precisavam de palavras. Suspensos naquele bote, não precisavam sequer de leite. A mãe assim disse ao menino. Não podia soltá-lo daquele nó. Desatar as mãos e segurá-lo apenas com um braço… Não podia. Não o faria. Antes morrer de fome nos seus braços do que lançado à água. O pai pisava com toda a sua força os pés da mãe, sobre os quais se sentara. De frente para a mulher, tinha encaixado as pernas de ambos. Alternadas. Uma perna dele, depois uma dela, outra dele e a segunda dela. Com os longos braços negros e indistintos naquela noite escura, abraçou depois as pernas de ambos, com o peso do seu rabo sobre os pés da mulher. Conseguiam, assim, maior estabilidade. Contra os balanços e pinotes do mar. Contra os encontrões de quem caía desamparado. Contra o mundo todo. Todos se olhavam. O pai olhava a mãe. A mãe olhava o pai. Os dois olhavam longamente o menino. Olhos que falavam, que acalmavam, enquanto brilhavam de terror. Ninguém sabia nadar. Ninguém sabia fosse o que fosse. Uma coisa os unia. A todos. A urgência da fuga. O medo. A guerra. A fome. A pobreza. A miséria. Todos tinham sido privados de amanhã. E sem amanhã, um homem não vive. Nem sequer sobrevive. O mar piorava. O fundo do bote sacudia as pessoas como pulgas de um lençol acossado pelo vento norte. Amira e Zézet tombaram de lado. Como um só corpo o faria. Sem se descolarem um centímetro. Pai, mãe e filho. Todos num só organismo vivo.
A cabeça do pai sobre a do menino. Para proteger. Para mostrar os dentes ao menino. Uma tragédia de sorriso. Um drama de boca. Ainda assim, um sorriso. Dentes apertados. Rangentes. Brancos. Como estrelas. Era esperança. O ruído do mar e das gentes ensurdecia, pelo que, silêncio. Sobre ele, nem uma palavra. Respiração, apenas. Ar que entra. Ar que sai. A aflição esticou o tempo e aguçou memórias. De dias felizes. Dias com comida. Com sol. Em terra firme. Os braços de um pai velho. O colo de uma avó. O suco de um fruto. As brincadeiras das cabras. O som de um rio imaginário sobre as pedras duras da desolação. Cores. Sabores. Outra onda. Gente cuspida. Braços bramindo no ar. Gritos estridentes. De morte. Gritos de ajuda que, sabem-no, não terão. A vida dos pais hipotecada até à eternidade por uma passagem para a morte. Uma última lembrança. A mão ainda à tona. Escuro. Nada se via. Agora, só os gritos do mar naquela sua brincadeira endiabrada. Sem misericórdia. Bravo. Violento. O tempo não se mede na aflição. Apenas a vida. Nesta, os ponteiros apenas marcam estou vivo. Quando param, já não é a vida que se mede. O menino já não chorava. A mãe sentiu quando o choro interior do menino se calou. Um olhar de pânico da mãe. O pai que não compreendia porque é que Amira abanava o menino daquela maneira. O menino abriu os olhos. Uma lágrima solitária. Apenas uma. Zézet compreendeu. Limpou-lha. Sorriu. Amira já não sentia os pés, ou as pernas. Zézet parecia cada vez mais pesado sobre os seus pés. Era o peso extra da dor e da aflição e da água que os encharcava de medo e frio. Era o peso da incerteza. Ainda viviam. As ondas mais curtas. Mais baixas. Mais espaçadas. De repente, quase não há ondas. Mais conversas. Menos gritos. Estamos perto. Pensaram. Estamos salvos. Quiseram acreditar. Zézet mostrou os seus dentes gigantes a Amira. Ela ainda não conseguia. O menino olhava a mãe. Sorria? Mandaram-nos sair.
Pular para a água. Amira não conseguia levantar-se. O seu corpo era apenas a parte superior. Tudo o resto, dormente. Esquecido. Trôpego. Zézet compreendeu. Levantou-a nos braços. Zézet era enorme. Muito mais alto do que qualquer outro passageiro. Um gigante. Uma girafa. Ergueu-a como pôde. Amira erguia, por sua vez, o menino nos braços. A água a roçar-lhes os queixos. A água a engordar o seu peso. As pernas que não avançam. O mar que empurra. Menos água. Menos água. Água pelos joelhos magros de Zézet. Amira no chão. Na água ainda. Mas já areia sob o seu corpo inerte. Levanta-se. O menino nos braços. Zézet empurra-os. Caem na areia firme. Não chega. Zézet quer que avancem mais. O mar sabe nadar. É preciso ir mais para dentro. Luzes na sua direção. Homens vestidos com muita roupa. Luzes e mais luzes. Amira deixa de respirar. O menino é-lhe tirado dos braços. Amira e Zézet avançam aos tropeços. Correm. Gritam. Agora, gritam. Recuperam o menino. Sorrisos. Querem destapar o menino. Vê-lo. Amira percebe que lhe perguntam se tem leite. Vira a cabeça num não resoluto. Uma mulher sorri-lhe. Parece querer dizer-lhe que está tudo bem. Que já compreendeu. Leite para o menino. O menino transpira de tanto beber leite. Amira só retoma a paz quando o volta a atar junto ao seu peito.
Zézet coloca-lhe a mão sobre o ombro. Sem mexer, os lábios sorriem. Os olhos riem. Separam-nos. Gritam-se nomes. Tocam-lhes com luvas e usando máscaras. Levam os homens para um sítio. Juntam as mulheres com as crianças. Voltam a encontrar-se. Precisam de papéis. Querem que escrevam. Dizem-se nomes sem fim. Uma enfiada de nomes que encheria o mais longo colar de nomes do mundo. Amira diz o seu. Zézet repete ambos os seus nomes até que parecem entendê-los. Mostram-lhos escritos. Parecem-lhes bem. Aquelas letras são diferentes das poucas que conhecem. Querem saber o nome do menino. Amira e Zézet olham-se. Silêncio. Segredam. Sussurram. Esperam. Apressam-nos. A fila não para de crescer. Jésuck, dizem por fim. Jésuck. Bebem. Comem. Agasalham-nos. Enviam-nos num outro barco. Outro sítio. Mais mar. Mais medo. Decidem fugir. Outros decidem igual. Muitos outros já o haviam decidido, como em breve descobrem nos caminhos pejados, já não de gente. Refugiados, cospem-lhes ao ouvido. Parece que refugiados não são gente. Dormem na rua. Na estrada. Nas matas. Na praia. Onde calha. Também, dormem tão pouco! Andam. Andam muito. O caminho não parece ter fim. Mais papéis. Mais leite para o menino. Vacinas. Línguas de fora. Exames e perguntas. Regressar, não. Para já, regressar é um nunca mais. Seguir em frente. Nada mais importa. Ontem está lá atrás. Já não serve. As cidades são feias e frias. O menino já chora. Também ele não gosta.
Zézet consegue encontrar trabalho. Um dia não regressa. Está na Alemanha e, como não tem os papéis certos, não o deixam sair. Por agora. Quanto tempo é agora, quer Amira saber. Também a ela negam tempo. Tem de seguir. Partir para onde há ajuda humanitária. Uma tenda. Água. Roupa. O menino já não chora. Compreendeu que não adianta. O silêncio é melhor. Calam-se. Sonham com Zézet. Zézet regressa. Mais um acaso do que conhecimento. Era o destino, diriam um ao outro enquanto se abraçavam com força. O menino no meio. Corações que falavam amor e sorrisos. Mas Zézet calou a sua verdade. A sua louca perseguição da mulher e do filho. Zézet sabe que quando um homem quer muito uma coisa, nada nem ninguém o impedirá de a conseguir. Zézet quis muito encontrá-los e quis com a força necessária. Estava certo de que o conseguiria. Conseguiu. Fugiram nessa noite. Turquia, para já. Se fosse possível. França era o derradeiro sonho. Tinham muito que caminhar. Mas estavam juntos. Em terra firme. Tinham pernas fortes, tinham fé na terra firme e sabiam chorar para dentro.
Deixe um comentário