Jota – apenas para não cair na desgraça e no simultâneo embaraço de dizer que se chamava João Jacinto José Jaime Januário, como se fosse filho, neto e bisneto de padres ou apenas fruto de gente sem apelidos ou imaginação e escolaridade suficiente para chegar a outras letras do alfabeto –, olhava para a chefe em modo de observação pura. Tentando avaliar qual seria a resposta correta àquela pergunta manhosa. Tão simples e direta. Aquilo só podia trazer rasteira.
– A que se deve o seu atraso hoje?
E ela a dar-lhe. A insistir na mesma tecla. Com assertividade e num tom de voz entre o calmo e o enfado. Assim como quem não está a dar grande importância ao assunto, mas está determinado em apurar a verdade. Quase ao estilo policial. A que se devia o seu atraso? Pois se há meses que chegava sempre àquela hora ou mesmo bastante mais tarde, a que se devia aquilo agora? Assim? De rompante? Ao fim de meses, senão mesmo anos, a chegar-se a uma determinada hora, emprega-se a usocapião. Há muito que ele tinha conquistado esse direito previsto na lei. Não era agora – instituído um hábito, praticamente uma tradição pessoal – que se encontrava legitimação para tal abuso. Aquilo trazia água no bico. Aquilo não era inocente. Por isso, Jota matutava. Polia a sua agilidade mental para descortinar, em tempo útil, a resposta certa àquele enigma. Tinha de ser inteligente e rápido, pois ela já denunciava impaciência. Tinha ainda de ser implacável.
– Estive a ultimar os preparativos do funeral da minha mãe.
Pimba! Como é que ela se iria sair desta? Jota estava ansioso por perceber a mudança repentina da expressão no rosto da chefe, mas se houve de facto alguma alteração, ela não foi, por aí além, visível a olho nu, tal era a seriedade com que a chefe se lhe endereçava desde o início.
– Lamento imenso a sua perda. Como foi que morreu?
– Quem?
– A sua mãe!
– Oh, sim, claro. Doença prolongada. Prolongadíssima. Há semanas que começávamos o dia com penosos tratamentos hospitalares.
Jota 2 – Chefe 0
De uma assentada, justificava não apenas a sua ausência durante toda a manhã desse dia como as que se estendiam por semanas.
– Porque não avisou os Recursos Humanos?
– Como?
– Porque não avisou os Recursos Humanos? Tem direito a dias nestas circunstâncias e ter-me-ia poupado ao constrangimento de estar a ter esta conversa consigo logo hoje.
– Julgo que por dois motivos: Não sou abusador e achei que seria melhor tornar este dia o mais banal possível, para não pensar na dor, para não sofrer tanto. Não sei!
Jota apostava que por esta é que ela não esperava. Tanto sofrimento e hombridade encapsulados no discurso humilde e sofrido de um funcionário que tem para uma questão comezinha a resposta que carrega todo o universo sobre os ombros. A morte da mãe. Imbatível.
– João, compreende que a conversa que estamos a ter, lamentavelmente num dia tão particular, não se deve ao atraso de hoje, verdade? Sabe que é o culminar de uma carreira de atrasos que o profissionalizam enquanto faltoso. Esta não é a exceção, esta é a sua norma.
O que responder agora? Calma, Jota. Tu és inteligente. Inventa uma verdade à prova de contestação, vá. Atira-lhe com mais um dos teus feijões mágicos, desconcerta-a com a tua vasta sabedoria, aquela que só os preguiçosos puros dominam.
– Não fosse o caso de eu ser um doente crónico…
– De que sofre?
– De uma horrível e dolorosa paralisia aguda crónica e seletiva, rara no mundo, que não me permite andar antes das 11h da manhã. Por vezes, arrasta-se mesmo até às 15h.
– Então, como passou a manhã de hoje a tratar do funeral da sua mãe?
– Fiz tudo online. Tudo, tudo online.
– Quero que me entregue uma cópia do atestado médico com essa informação, o qual deverá entregar aos Recursos Humanos.
– Até trazia, não fosse o especialista ter morrido num brutal incêndio que arrasou toda a sua investigação.
– Já percebi que os seus problemas são reais e são graves.
– A quem o diz, a quem o diz. Sou um sofredor.
– Quem acompanha agora o seu caso de paralisia aguda crónica seletiva?
– Apenas eu. Seguindo as instruções do especialista queimado vivo, o coitado. Apenas eu, sozinho no mundo, contra uma doença raríssima, mal compreendida pelos demais e do mais incapacitante que possa imaginar.
– Quer dizer que a sua doença é única e unipessoal, ninguém mais no planeta sofre dela e que apenas um médico a estudava? Especializou-se num único paciente, é isso que me diz?
– Exatamente! Isso mesmo.
– Percebe quão extraordinário é tudo isso que me diz?
– Absolutamente e não sabe a chefe da missa a metade.
– Não serei a pessoa indicada para lho sugerir, mas você precisa de acompanhamento psicológico. De alguém que o ajude seriamente a vários níveis. Percebe o que lhe estou a dizer?
– Perfeitamente, apenas a minha religião não o permite.
– Como não permite?
– Sou Jeová do Último Minuto do Sétimo Dia Evangélico e só nos podemos abrir com Deus.
– E dentro dessa sua religião, não há um pastor, alguém a quem possa recorrer?
– Até há, mas não tenho como deslocar-me à única igreja do mundo, que fica na cidade mais pequena do planeta, Hum, na Croácia.
– Humm, estou a ver.
– Não, chefe, Hum, só com um M.
Jota rejubilava com os seus avanços e dava graças a Deus por não perder um número da revista Superinteressante, onde descobria estas e outras preciosidades. Já o nome da sua seita religiosa, isso foi lavra da sua profícua e abençoada criatividade.
– Não tem carro? Talvez umas férias com destino a Hum não fosse mal visto, João. Já pensou nisso?
– Sim, mas não posso conduzir.
– Porque não? Vejo-o chegar sempre de carro…
– Isso era antes.
– Antes? Ainda hoje veio a conduzir.
– Antes ainda inclui hoje, mas será o último dia pois já não aguento o cheiro no carro.
– Explique-se por favor, e seja breve, já me sinto idiota com tanto disparate.
– Era bom que fosse disparate, mas se tivesse um corpo em decomposição na sua bagageira e com este calor que teima em manter-se acima dos 30 º, gostaria de perceber se diria o mesmo.
– A sua mãe está no carro?
– Claro que não! Por quem me toma? Quem está é o meu vizinho do terceiro esquerdo. Escondeu-se lá de um ataque de fúria da mulher e eu nunca mais me lembrei disso. Agora, que já não há nada a fazer pelo pobrezinho, não posso simplesmente desfazer-me do corpo, não é?! Ainda iam achar que eu é que o tinha matado. Como poderia esclarecer isto à polícia? Daí que talvez ainda comece a chegar mais tarde, pois sem carro…
Estava nitidamente em vantagem. Jota sentia-o em cada interstício do seu ser, em cada molécula de lógica que lhe inundava o seu ágil e destemido cérebro. Que raciocínio tão afoito, que apurada racionalidade. Em resumo:
. Tinha chegado tarde nesse diz porque morreu a mãe.
. Tinha chegado tarde nas muitas semanas anteriores por causa dos tratamentos da mãe.
. Antes disso, chegava sempre tarde devido à sua prolongada doença raríssima de cariz agudo e crónico.
. Não se podia tratar pois era caso único no mundo e o único especialista tinha morrido queimado e com ele ardeu toda a investigação que o poderia ajudar.
. Não pode recorrer a tratamento psicológico pois a sua religião não o permite.
. Não pode recorrer-se da sua religião pois o único templo fica na mais pequena cidade do mundo, na longínqua Croácia.
. Não pode ir à Croácia pois não pode guiar.
. Não pode conduzir, pois tem o corpo do vizinho do terceiro esquerdo a decompor-se na bagageira, e o cheiro torna o seu carro impraticável.
Genial! Não apenas tudo isso, no mais perfeito encadeado lógico, como ainda avançou com a desculpa para futuros atrasos: era, a partir de hoje, um homem doente, dependente dos transportes público. Tunga! Que cabazada!
Nisto, toca o seu telemóvel. Sem olhar para o visor – o que de resto exigiria que procurasse nos bolsos os óculos de ver ao perto –, e mostrando como era um homem diligente e atarefado com o seu trabalho, o qual jamais descurava no tempo que lhe dedicava, diz à chefe que deve ser um cliente, ela que desculpe, mas que tem mesmo de atender.
– Estou?… Olá mãezinha…
Foi pena que o estrondo provocado pelo gigante, ao cair dos céus – o que abriu um hercúleo buraco no teto do escritório da chefe de Jota – verdade, verdadinha, que aqui não há lugar para mentirosos compulsivos nem inverdades desbragadas –, não tivesse acontecido antes. Podia ter-se salvado um bom teto, ainda em ótimas condições.
Moral da história:
O melhor do mundo, afinal, não são as crianças.
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