Lá estávamos nós. No ar. Suspensos no pulo. Sacudindo o pó do chão e os anos do corpo. Subtraindo à vida anos de consumo efetivo. Saliva e suor parados no instantâneo das fotos, enquanto cabelos em desalinho substantivavam o movimento, a euforia e mostravam à compreensão a música que os ouvidos não podiam ouvir. Qual seria naquele momento?! Uma velharia qualquer, das boas. Uma velharia como nós. Quando foi que começámos a falar de joanetes e implantes mamários para insuflar o ego a peitos descaídos? Quando entraram as limpezas de ouvidos frequentes e a falta de visão ao perto e ao longe nas nossas vidas? Quando foi que crescemos sem disso dar conta? Afinal, o que seremos quando formos grandes agora que já o somos? Somos sequer adultos? Ser adulto é apenas isto? É sermos miúdos com mais idade, é isso? Mais altos, gordos, carecas e enrugados? Não há mais nada? É só isto? Então e a experiência e a sabedoria e o tal juízo acertado?

By Philippe Halsman

Enquanto isso, nós por ali, imobilizados no ar, congelados no movimento aleatório, olhos fechados, cabelos em desalinho abraçados a uma música qualquer, pois apenas desejávamos sentir-me vivos, novos e muito frescos. Quando, afinal, já crescidos, isolados a um canto pelos mais novos. Achar-nos-iam patéticos e ridículos? Velhos, na verdade? A idade está no olhar e no sentir. No olhar deles a acharem-nos velhos tontos. No nosso sentir, onde se subtraíram todas as coisas que envelhecem.

Dois balões mirrados assinalavam a dourado um número inconcebível: 60. Seriam 60 anos?!?!? Como assim? Ainda ontem 6, joelhos curados com mercurocromio, lágrimas por tudo e por nada, pânico de vacinas… Hoje… Hoje que foi logo no dia seguinte, 60. Como foi isto acontecer? Quando o teu irmão mais novo faz 60 anos, tu não és apenas velho, como engrossas já a fila da despedida. Junto à porta de saída. Um adeus que já se ouve. Um até nunca mais sussurrado no ouvido louco e pressentido no pacemaker.

Sim, um de nós com pacemaker. Não podemos falar de doenças, isso, sim é velhice. É o assomo da morte de todos aqueles que sabem fazer contas e o cálculo é o que é: Já se viveu bem mais do que se pode ainda viver. Tão simples. Tão premonitório. Tão fatal. Podem vir curas e paliativos, mas quem é que quer viver com fraldas, sem reconhecer aqueles que mais ama e mais o amam? Quem no seu perfeito juízo deseja anos de vida vividos já na morte. Uma vida que se cava no esquecimento.

Photo by tricialynntomas

Falar de doenças é já a velhice. É já o fim. Seguem-se raspadinhas e tiradas a lamentar a atual juventude a saudar os tempos de outrora e a falar deste tempo como se não fosse já o nosso. Todo o tempo é nosso enquanto aqui estamos a vivê-lo e com ele a envelhecer. Quer dizer, o tempo não envelhece, apenas progride. Quem me dera ser tempo ou espaço e calcorrear eternamente. Os únicos que mesmo velhos se transformam, evoluem, renovam e continuam ad eternum. Mudam de configuração, mas não de natureza nem de matéria, nem abrandam o ímpeto, nem a energia renovadora.

Lá estávamos nós, a flutuar, envoltos no fumo dos cigarros e charutos que a nossa geração abraçara sem medos e que por ali sublinhavam o ar de bas-fond dos locais que a nossa adolescência guardava no bolso das relíquias. Por lá se experimentara o primeiro cigarro, o primeiro beijo na boca com direito a lavagem de dentes automática, a primeira bebedeira… A primeira tentativa de dar sentido á vida, em conversas belas, loucas e infindáveis que pareciam colar-nos uns aos outros com adesivos de eternidade. Éramos belos, todos nós, infinitos e indestrutíveis. Iríamos viver para sempre, todos juntos. Esse cheiro a ingenuidade, a energia pura, esse odor de juventude, colado a olhos rebeldes e inconformados, amassando a plasticina do universo como quem masca pastilha elástica. Aquilo que ardia nos nossos peitos era indestrutível e não queimava, como agora acontecia com a nicotina que tinha enegrecido os nossos pulmões e esmorecido a nossa fé.

By Philippe Halsman

Podíamos ter esbracejado sempre, como fizeram o Desidério e a Luísa. Ele, um génio da matemática, com o mais belo cabelo preto dos meus mais secretos afetos, perdido no êmbolo da inconformidade tornada raiva e logo depois loucura. Ela, a mais livre de todas as miúdas que alguma vez conheci, precocemente difamada e arredada de qualquer possibilidade de sucesso dentro do sistema, que se reinventara numa carreira artística, único lugar onde a fama de prostituta lhe aumentava a aura. Ambos, à sua maneira, mantiveram a chama acesa, sem nunca cederem um centímetro. Sem compromissos, nem contrapartidas. Desidério, livre na sua loucura numérica e diamorfínica. Luísa, num mundo à parte que criara à sua medida e onde outras tantas almas se reconheciam e encontravam. Um mundo onde literal e metaforicamente se estava nas tintas e nos tintos. Uma Luísa fiel, resiliente. Aguentou o escárnio, a traição de homens e mulheres. A nossa própria traição. Sim. Entrámos no mundo dos adultos, fechámos a porta e por lá ficámos, transformando-nos gradualmente em novas versões dos adultos que odiávamos e onde a Luísa era, tantas e tantas vezes, um real embaraço. Com as suas mãos sujas de tinta, o peito sem sutiã a insinuar-se nas conversas, os cabelos desgrenhados, mas sedosos e brilhantes, mas não tanto como a sua mente perspicaz e sedutora apoiada em eternos porquês e comos a que ninguém conseguia dar resposta certa ou adequada. Luísa. Vibrante Luísa.

By Lev Borodulin

Perdoa-nos, Luísa, pois não sabíamos o que fazíamos. Não percebemos, então, como bem compreendemos agora, que o teu era o trilho certo. Que não poderíamos nunca ter entrado na idade adulta. Deveríamos ter resistido ao seu charme encantamento. Fechar os ouvidos aos seus cânticos e os olhos a todos os outros chamarizes. Prisões disfarçadas de liberdade e autonomia. A única liberdade genuína é a autenticidade, a errância e o inconformismo. A fome e a simplicidade. A frugalidade e a felicidade enquanto objetivo. Aceitar o trabalho é transformar-se no trabalho. Aceitar o medo é ter medo. Aceitar a brutalidade e ficar bruto. Nós não vimos. Tu, sim. Viste e desviaste-te. Viste e soubeste. Reinas agora sobre a nossa mediocridade bem paga, senhora de uma bolsa de valores emocionais, afetivos que nos faz morrer de vergonha e remorso. Enquanto tu vives, nós simulamos felicidades plásticas numa encenada sobrevivência.

Lá estávamos nós, a pairar na falsa assunção de que tínhamos feito tudo o que precisava de ser feito. De que tínhamos alcançado todo o nosso potencial, contribuído com a nossa parte, dado o nosso melhor. Iludidos. Perdidos. Esquecidos. O mundo não recorda pessoas iguais, apenas destaca os diferentes. Nós enveredámos pelo espectável. Éramos adultos calibrados. Dóceis e domados, como todos os restantes adultos encaixados no grande puzzle da vida, com a foto sensaborona no tampo da caixa, para que ninguém descurasse o seu papel, o seu lugarzinho na mais ampla arquitetura das coisas. Pobres criaturas. Tristes pessoas. Presos a um passado de pressupostos e hipotecas e de olhos postos num futuro que se encurtava. Um de nós com 60 anos. Quantos mais? Quanta vida restava? Quanta liberdade perdida. Quanta liberdade desconhecida. A carne aquietada. Os sentidos dormentes pela pressão na normalidade, pelo exemplo de todos os outros pacíficos seres do mesmo rebanho.

O falso riso de felicidade preso nos implantes ainda por pagar, conectados a créditos malparados e a sonhos que nunca o foram de verdade. Logo que o pé tocou o chão, os cálices estatelaram-se e as estrelas embaciaram-se no firmamento que deveríamos ter almejado. Era esse o propósito. Como foi que não o vimos? Quando foi que nos perdemos? Em que curva nos despistámos? Será que nos reconhecemos, empoleirados em sapatos de adulto que nunca nos serviram? Recordo os pés descalços do Desidério.

Ainda aí estás, Luísa?

 

By Philippe Halsman

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